quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ARTIGOS - SOBRE UM POEMA LONGO DE FERNANDO MONTEIRO - NELSON PATRIOTA

Nelson Patriota

Como o mar de Valéry, que vaza incessantemente do seu “Cemitério marinho”, o poema longo de Fernando Monteiro, intitulado “Vi uma foto de Anna Akhmátova” avança e reflui, num recomeço obstinado e fiel a uma lógica interna inalcançável ao leitor, como a indicar que esse é um tributo a que o poeta não se pode furtar: repetir-se para finalmente encontrar, após esse sísifo retorno sobre si mesmo, um rumo novo que finda se negando mais na frente; ao retorno sobre os seus próprios pés.
É por essa razão que certos poetas, sobretudo os niilistas como Fernando Monteiro, encontram na prosa um sucedâneo à poesia que se lhes subtrai, como Dafne a Apolo. Essa e outras razões levaram o poeta Fernando Monteiro a mitigar a sede de poesia que lhe propiciara escrever suas primeiras obras – por acaso, iniciada com “Memórias do mar sublevado”, um “poema longo” (outros poetas teriam sobreposto à palavra poema algum adjetivo mais específico: épico, romântico, trágico etc., adjuntos que teriam ao menos uma vantagem sobre o impreciso designativo “longo”: esclarecer a natureza do poema, ao invés de buscar um referencial “numérico”). A propósito, poemas longos são um gênero familiar aos pernambucanos Alberto da Cunha Melo e Marcus Accioly, como se dá com “Meditação sob os lajedos”, e “Yacala”, do primeiro, e “Latinomérica”, do segundo.
O Fernando Monteiro do poema longo “Vi uma foto de Anna Akhmátova”, porém, é um escritor em plena maturidade de sua arte, erigida sobre a trilogia Graumann, entre outros romances e contos, além de estudos biográficos sobre o faraó Akhenaton e o arabista T. E. Lawrence.
O processo criativo de “Vi uma foto de Anna Akhmátova” obedece à lógica estabelecida há muito pelo visionário William Blake do verso: “to see a world in a grain of sand/ and a heaven in a wild flower” (ver um mundo num grão de areia/ e um céu numa flor silvestre). De fato, a corrente de versos que transborda do livro foi desencadeada pela visão de uma foto da poetisa Anna Akhmátova num sebo recifense. Na pluralidade de sugestões que a foto lhe suscitou, Fernando encontrou seu grão de areia há muito perdido; reencontrou sua poesia.
Esse reencontro, todavia, não se dá de modo tranquilo. O poeta está diante do seu leitmotiv como ante um caleidoscópio: a visão se mexe e se move em muitos sentidos, obrigando-o a seguir ora nessa, ora naquela direção. Cada trecho iniciado com o verso “Vi uma foto de Anna Akhmátova” descerra uma cortina, afasta uma névoa, clareia um desvão escuro que dificultava a visualização plena dessa cujo enigma está não no sorriso, como a Mona Lisa, mas na penumbra que cai levemente sobre seus olhos, obnubilando-os com imprevisível vagar.
O poema longo de Fernando Monteiro não poderia portar o atributo de romântico, porque não há lugar para lirismo em suas linhas. Poderia, porventura, autoproclamar-se de trágico, porque por ele transitam crimes imperiais, guerras indefensáveis e as cinzas de um mundo que passou. Poderia, ainda, denominar-se “nostálgico”, porque é isso que seus versos destilam pausadamente: de um passado que se repete como sucedâneo para o desencanto com o mundo atual.
De fato, entre o hic et nunc (“aqui e agora”) dos epicuristas e o nec metus nec spes (“nem medo, nem esperança”) dos estóicos, Fernando Monteiro seguramente optaria pelo credo destes, como deixa entrever na crítica que faz aos poetas contemporâneos no corpo do seu poema longo, que deixa atrás de si um cenário de escombros e ruínas. À trindade modernista formada por Carlos, Mário e Manuel, ele prefere Maria Ester Bueno, Éder Jofre, Noel Rosa. É em busca da Rússia longínqua que ele parte na esperança de encontrar explicação para “as semelhanças dos loucos e dos santos no Nordeste delirante”.
Entre tantas digressões, Fernando Monteiro conserva firme nas mãos o fio de Ariadne do seu poema longo. Por isso, chega (ou é levado) ao porto último. Não sem antes permitir-se um furtivo intermezzo lírico e interrogativo: “Todos os pássaros cujo piar nublado/ eu escutei nascendo na dobra/ de uma manhã do passado/ estarão mortos?”.


* Nelson Patriota é escritor, tradutor, jornalista e membro do Conselho Estadual de Cultura do RN - autor de vários livros, entre eles Vozes do Nordeste.

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