Cineasta norte-americano mais influente sobre o melhor cinema europeuNicholas Ray estaria completando cem anos, se vivo fosse (faleceu em 1979).
Para muitos, Raymond Nicholas Kienzle entraria como o terceiro na lista dos mais “autorais” realizadores ianques de todos os tempos, com o antigo nome –herdado do avô alemão – transformado em “Nick Ray”, muito longe da pequena cidade de Galesville (no mesmo Wisconsin de Orson Welles) em que veio ao mundo o diretor de Rebel without a case, precisamente no sétimo dia de agosto de 1911.
Das vastas pradarias do centro-leste para Washington, foi uma trajetória que passou pelo teatro militante de esquerda durante um bom tempo – no coletivo Theater of Action –, até levá-lo para a Califórnia dos estúdios do cinema nos qual se tornaria diretor só aos 35 anos, disposto a todas as experiências que lhe fossem permitidas no ato de testar teorias alheias e próprias: “Um bom diretor é aquele que viola constantemente as próprias teses” (Nicholas Ray, Sur la direction d’acteurs, Paris, Ed. Crisnée, s/d).
Foi assim que abriu seu caminho até a consagração, estrangeira, como um dos três pilares da teoria do Cinema de Autor. O que é essa “teoria”? No França, foram os então jovens críticos da primeira fase da revista Cahiers du Cinéma (François Truffaut, Jean-Luc Godard e Jacques Rivette) que, no começo dos anos de 1950, voltando os olhos para o cinema dos EUA, plasmaram a expressão “politique des auteurs”, com a finalidade de distinguir cineastas cuja obra apresentassem a força de uma afirmação pessoal em termos de estilo e tema, “mesmo naqueles casos de diretores subordinados aos grandes estúdios”.
Para ser exato, Alexandre Astruc já falava, em 1948, no semanário L’Écran Français, numa câmera-caneta que poderia eventualmente fornecer, ao diretor cinematográfico, uma camera-stylo como instrumento “tão maleável e sutil quanto a linguagem escrita”.
Nascia, assim, a primeira especulação formadora da tese de uma autoria cinematográfica que, paradoxalmente, encontrava na indústria de Hollywood o celeiro dos casos mais flagrantes de criação obstinada – até porque ali se tratava de trabalhar sob as ordens de chefes de estúdio, ou seja, numa linha de montagem na qual tudo contribuiria para apagar, em princípio, os sinais “subversivos” da visão pessoal de verdadeiros artistas empenhados em fazer mais do que retornar, unicamente em vil metal, os milhões de dólares investidos em filmes pelos magnatas de Los Angeles.
Nesse caminho de obstinação pela assinatura mais pessoal possível, alguns terminavam fazendo aquilo que, para o núcleo duro da célebre revista francesa, seria a melhor essência da chamada sétima arte: o “produto” levando a assinatura de um autor. Entre esses, o rebelde “Nick” recebeu, pelo menos da parte do mais intelectualizado daqueles jovens franceses, a famosa conceituação firmada em bases de admiração absoluta: “O cinema é Nicholas Ray”. Assinado: Jean-Luc Godard (o que não é pouco).
A FORMA ARQUITETURAL
Ray começou por ter formação privilegiada, como estudante: ele gozou do privilégio inicial de uma bolsa de estudos que incluía as aulas de ninguém menos que o gênio da arquitetura Frank Lloyd Wright. Isso, sem dúvida, foi fundamental na educação da sua visão e capacidade de pensar por imagens, potencializando o espaço como meio expressivo dilatado 24 quadros por segundo, nas mãos do futuro homem de cinema.
Anos mais tarde, contumaz nas respostas de reconhecido cínico com um tapa-olho de pirata – ou trânsfuga dos estúdios –, esse diretor só concederia em reconhecer a influência indireta de Wright no seu admitido “gosto pelo Cinemascope” (rs rs). Todos sabem, porém, que havia muito mais do que isso no partido que o ex-aluno de FLW tomou por forjar imagens criadas, desde o primeiro momento, para ultrapassar diálogos rabiscados por roteiristas assalariados e mais as intenções rasas – embora claramente restritivas, artisticamente falando – dos poderosos produtores para os quais viria a trabalhar sob contrato etc. Seja como for, eles confiavam no artesanato propriamente fílmico, digamos, que o Nicholas Ray do teatro só iria aprender nos seus anos como ator e assistente de direção do injustiçado Elia Kazan (um homem de três metros de altura para a conformação do cinema como arte narrativa maior apesar de ter sido menor, na vida, ao denunciar os colegas aos macacos engravatados da famigerada “caça às bruxas” do gorila-mor da política americana, o senador “Joe” McCarthy).
Quando se dá o caso rumoroso das infelizes delações do mestre Kazan, “Nick” está partindo para a construção da sua rica filmografia de 24 obras entre 1948 e 1978, que somam trinta anos de uma carreira um pouco menos atribulada do que a do seu conterrâneo Welles.
O primeiro filme de Ray, They live by night, seria, potencialmente, apenas mais um vulgar filme noir – o que já estaria de bom tamanho para o bolso dos tycoons financiadores da RKO. Entretanto, havia um jovem diretor fadado a ser autor, por trás das câmeras, esforçando-se na tarefa auto-imposta de elevar a trama banal para o nível de um bem mais interessante drama psicológico no qual Farley Granger, frágil e assustado, tenta fugir ao mesmo tempo da polícia e do bando de gângsteres que eram, afinal, a sua “tchurma” – ou, em termos mais tradicionais, o único tipo de família que o personagem havia conhecido na vida.
É um filme “antecipador dos road-movies”, para Win Wenders, o talentoso alemão apaixonado pelo gênero. E, de fato, a fuga do jovem bandido Bowie Bowers vai ao encontro da América profunda, vista pelos olhos abertos, por fim, de um quase Billy Budd sem culpa e cuja remissão (cristã?) só poderia se realizar pela morte.
Filme primordial, ali se encontra, já, a chave pela qual pode ser aberto o cofre de pelo menos meia dúzia de obras-primas que Ray iria legar ao cinema, lidando com personagens que irão conhecer – e reconhecer, às vezes – todas as suas fraquezas, a partir de expostas por alguma circunstância geralmente inesperada. Quase todos os seus filmes, a partir daí, terão marcas autorais, e pelo menos dois entram para a história geral do cinema, fora da tese francesa do auteur, respectivamente como formador de um mito (“Juventude Transviada”/James Dean) e reformador de uma saga (o velho Oeste) pela visão de um diretor às vezes operístico, no melhor sentido dessa palavra não totalmente estranha no ambiente dos estúdios (basta lembrar Lang, Stroheim, Visconti e Kubrick, além do próprio Ray)...
Aqui, ela se liga, especificamente, ao cineasta encarregado, em certa altura, de dirigir um western rotineiro para a Republic Pictures, e que – até por “odiar o roteiro” – resolve estilizar ao máximo esse gênero massacrado por talentos menores. Em suma, ele pega a história improvável de uma taberneira e de um pistoleiro com um violão, e a transforma num melancólico olhar sobre a vida ameaçada e os amores perdidos. Estou falando é, claro, do compulsivo Johnny Guitar, faroeste de uma intensidade, para dizer o mínimo, completamente fora dos padrões artesanais da Hollywood da época, ao propor o tratamento – meio à Puccini? – de uma “fita de cowboys” na qual é a personagem feminina que avulta como heroína ao avesso. Trata-se da madura “Vienna” representada pela máscara grega de Joan Crawford, mulher amarga e disposta a usar a arma com a fatal elegância de uma fúria de Micenas, naquele cenário “matuto” de fazendeiros em guerra contra um saloon obscuro. E a música-tema, hipnótica, o tempo todo pontuando o esquisito drama: Toca outra vez, Johnny Guitar/ Eu não sei bem se partirás um dia...
Se um algum western puder ser confortavelmente chamado de excêntrico e estrambótico (se não escalafobético), esse western é Johnny Guitar, na linha oposta da pureza homérica das obras de um John Ford, ou cavalgando na direção contrária ao carrossel de ação bem articulada dos vigorosos filmes de um Raoul Walsh. O primeiro western de Ray – e ele ainda iria dirigir uma cine-biografia de Jesse James bem ao modo da sua “arquitetura” cinematográfica – ainda hoje nos surpreende pela subversão do gênero, com um duelo final (entre duas mulheres!) que também muda o cenário tradicional da rua única entre as falsas-fachadas para uma varanda num altiplano qualquer de fim de mundo. É a marca Nicholas Ray, que primeiro fascinaria os jovens franceses até à devoção mais declarada.
MELHOR COMPRENDIDO LONGE DE CASA
“Nick”, para a maioria dos seus compatriotas, seria somente mais um cineasta trabalhando para os produtores que ele retratou impiedosamente no impecável In a Lonely Place, do começo da década de 1950. Para os europeus, entretanto, representava não menos que o Cinema atrás do cinema.
Nisso quer dizer que a alquimia do seu trabalho se dava no coração da indústria traiçoeira, sendo capaz de transformar, muitas vezes, o sheet usual em imagens de 24 quilates de significado e, claro, qualidade irretocável. Entregar um roteiro para Ray dirigir, era poder esperar mais do que centavos – e um clima bem diferente do script original eventualmente bem comportado, com o acréscimo de sentido que esse artista consegue dar, por exemplo, ao tema da “juventude transviada” (nada mais banal, nas mãos de um Michael Curtiz qualquer, que trabalhasse de cabeça abaixada). Quanto a Nicholas, ele mirava os píncaros, realmente, talvez daqueles projetos do seu antigo professor de arquitetura tentando transformar casas de milionários em comentários sobre a modernidade complicada da vida no século que já passou – que pena! – a ofertar diretores, escritores e artistas em quantidade que talvez jamais voltemos a ver, nesta nossa época de conformação com a baixa temperatura artística dos talentos à W(C) Allen...
Na Europa, o diretor encontrou a acolhida de fãs do calibre não só dos críticos da Cahiers, a revista que orientava a admiração cinéfila também fora da França. Na Alemanha, ele foi recebido por um então jovem Win Wenders disposto a homenagear o mestre alcoólatra e, inevitavelmente, desempregado. Respeitoso, o diretor de O amigo americano (1977) escala o mito Nicholas Ray para aparecer como ator-ícone nesse filme, e, mais adiante, realiza um comovente documentário sobre os dias finais do cineasta já doente e sabedor da proximidade do fim. Ou seja, disposto a enfrentar a morte como enfrentara a vida no “país meio selvagem” dos versos do poeta americano Ezra Pound: “Por três anos/ desafinado com o seu tempo/ tentou ressuscitar a arte morta da Poesia./ Errado desde o início,/ não rigorosamente/ mas vendo que havia nascido num país meio selvagem/ fora de época.”
Autor dedicado aos personagens sós, falhados ou então à beira de alguma tragédia sobre a qual não terão nenhum tipo de controle, o antigo menino vindo das solidões do Wisconsin tentou criar uma arte nova sobre a cinza do passado das artes tradicionais que alimentaram a sua formação, até pisar num dos grandes estúdios da Idade de Ouro hollywoodiana.
Decidido a realizar, ali, filmes artisticamente memoráveis, nem sempre conseguiria driblar as tesouras da mediocridade, e, nos seus últimos anos, iria se tornar uma espécie de apátrida, vagando pelo velho continente no qual o reconhecimento, unânime, chegou talvez um pouco tarde demais para não soar quase tão amargo quanto os versos que ele pôs na boca do roteirista Dixon Steele, o personagem vivido por Humphrey Bogart no semi-autobiográfico In a Lonely Place: “Eu nasci quando ela me beijou/ Eu morri quando ela me deixou / Eu vivi algumas semanas/ Enquanto ela me amou”
Fernando Monteiro – romancista, ensaísta, tradutor, cineasta e cinéfilo; publicou entre outros livros: O Grau Graumann, Confissões de Lúcio, Aspades, ETs etc., A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro e A cabeça no fundo do entulho.
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