sábado, 13 de agosto de 2011

Memórias - Varal das Lembranças - Outras literaturas de minha iniciação / Pedro Vicente Costa Sobrinho

Vovó contando histórias - Xilogravura

Desde muito cedo comecei ouvir e ficar fascinado pelo mar de  histórias que meu pai e principalmente tia Neném me contavam. Contudo, pelo meu pai foram poucas; mas, ainda hoje, lembro-me bem da história de João de Calais, até por força da repetição, porque eu pedia-lhe que me contasse sempre outra vez. O enredo dessa história atraía-me particularmente pela misteriosa aparição de uma alma que salvou João de Calais de afogar-se no mar e o conduziu são e salvo para uma ilha deserta; depois o transportou magicamente de volta ao seu país de origem para reencontrar com sua esposa e familiares e, assim, começar de novo sua vida. No fecho da história a alma misteriosa lhe revelou que fora parte de um corpo que fatalmente seria atirado aos cães porque não teve condições de pagar seu sepultamento; e então, graças a João de Calais, o seu cadáver veio a receber um tratamento digno. Anos depois, li em Câmara Cascudo, nos Cinco Livros do Povo, essa mesma história, e pude constatar que a versão do meu pai era um pouco diferente.

A tia Neném, por sua vez, intitulava muitas narrativas atraentes que me contava com o nome de histórias de Trancoso, inclusive contos populares que envolviam um certo personagem de nome Pedro Malazarte. Narrativas sobre reis, rainhas, príncipes, princesas, nobres, fadas e criaturas pobres sempre bondosas e honradas e ainda bichos falantes povoavam esse universo que por ela me foi passado durante o tempo de menino. De algumas histórias clássicas a mim contadas por tia Neném, eu ainda me lembro de suas versões de A Bela e a Fera, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul , O Pequeno Polegar, Dona Carochinha, Cumadre Fulôzinha e A Bela Adormecida; de animais falantes foram também muitas, e desse rico fabulário os protagonistas principais eram macacos, jabutis, onças, gatos, raposas, ratos, coelhos, asnos, lobos etc., sem que no entanto houvesse da parte de sua versão oral qualquer máxima expressa. O mundo misterioso de além túmulo também era por ela visitado, e daí as narrativas sobre almas que amedrontavam os vivos ou lhes traziam a felicidade, premiando-lhes com botijas ou tesouros ocultos. Os personagens das histórias de mal-assombro eram almas penadas que pediam rezas ou almas boas de finados que em vida só fizeram o bem. Com a vinda de minha prima Claudete, que eu chamava de Maninha, para morar com minha tia Neném, mais histórias foram acrescidas ao meu repertório. Delas, lembro-me ainda das versões contadas por Maninha da Gata Borralheira, Branca de Neve e os sete anões, Joãozinho e Maria, A festa no céu, e das aventuras engraçadas de Pedro Malazarte e de um tal Camonge. As histórias de tia Neném e Maninha nunca começavam com o tradicional “era uma vez...” e sempre se encerravam com um dos fechos, mais ou menos assim: “entrou por uma perna do pato, saiu pela perna dum pinto, seu rei mandou dizer que quem ouvisse essa história contasse outras cinco”; ou “houve uma festa muito grande para comemorar, eu fui convidada e trazia comigo bolos e doces, mas quando descia a ladeira do quebra... choveu, eu então escorreguei e tudo caiu no chão, sujando-se de lama, e não sobrou nada pra vocês”.

Cordel - Princeza Magalona


O repertório de contos populares que eu, com atenção, fui acumulando, tornou-se mais rico com os enredos de filmes que me foram contados por tia Neném, meu pai, Cosinques (Quinho) e principalmente por minha amiga Esther, e ainda pelos muitos filmes que por mim foram vistos nas matinês e soirées do Cine Samuel Campelo. De tanto ouvir, ver e navegar esse mar de histórias, eu, de posse desse cabedal extenso e diverso de narrativas, passei então a ser um ativo contador de histórias. O repertório era imenso e eu podia varar noites contando histórias para um público de meninos, meninas e até adultos da vizinhança que se sentavam na calçada, ao redor, para ouvir com atenção as narrativas que se sucediam sem qualquer escolha prévia. A minha fama espalhou-se pelo bairro e sempre que chegava para prosear com amigos e amigas vizinhos eu era convidado para contar alguma história. Além da oralidade exigida pra contar os enredos de filmes eu acrescentava qualquer coisa de gestual à narrativa para certamente compensar a falta da imagem.

A literatura de cordel, sem dúvida, só de modo tardio adentrou o meu universo de leitura, creio que isso certamente só veio a ocorrer depois de minha ida para Ribeirão. Mas esse fato é simples de explicar, pois na casa de tia Neném nem na casa do meu pai nunca vi um folheto de cordel; os amigos mais próximos também pouco se lixavam pros folhetos toscos e mal impressos de cordel, com seus heróis, repentistas e violeiros a expressar suas histórias e cantorias em versos; para eles, com certeza, os mocinhos e bandidos dos quadrinhos eram muito mais atraentes, principalmente graças a influência do cinema. Na feira de Jaboatão, muitas vezes me acerquei de rodas de pessoas que ouviam a leitura de folhetos de cordel que narravam desafios de violeiros, acontecimentos de crimes brutais e hediondos, roubos e desastres que haviam sido noticiados pelos jornais, disputas políticas, e também histórias de valentões e cangaceiros, de amor e sacanagem. Mas nunca me motivei a comprar um só folheto, mesmo sendo muito barato, nisso eu não me diferenciava de meus colegas de infância, e preferia os quadrinhos.

Desafio de Violeiros - Capa de Cordel
Quando fui morar em Ribeirão, eu, de rápido, fui mudando o olhar de antes e passei então a conviver melhor com a literatura de cordel. Atribuo essa conversão aos meus novos vizinhos, principalmente ao quase analfabeto João serrador e a um outro que era lenhador, de quem me lembro bem de um dos filhos por nome Zezinho, cópia fiel do Amigo da Onça, personagem imortal de Péricles; eles dois tinham em sua casa muitos folhetos de cordel, e pediam para serem lidos em voz alta pelos seus filhos, e muitas vezes eu me fiz presente a essas sessões de leitura, que eram geralmente feitas a noite sob a luz de um candeeiro à querosene. Eu cultivei uma cordial amizade com os dois e com todos seus filhos e filhas, uma delas, filha de João serrador, Anunciada, ajudava Dina nos afazeres domésticos. Desde logo, eu comecei, deles, a tomar alguns folhetos emprestados, e, em seguida, passei eu mesmo a ser um comprador. Nos dias de feira em Ribeirão, o vendedor de cordel estendia uma lona no calçamento da rua, arrumava sobre a lona os folhetos, e logo depois empunhava um microfone corneta para anunciar os títulos e daí, então, passava a recitar, quase cantando, a história de um dos folhetos. Muitas vezes eu fiquei horas a fio ouvindo a leitura de folhetos pelos ambulantes e depois adquiria um ou dois exemplares com narrativas que ainda não havia lido. A pedido do meu pai, eu recitava em voz alta, sem cantar, os romances, cantorias e desafios de violeiros publicados nos folhetos de cordel. Do vasto universo de leituras me ficaram como lembranças alguns romances: História do Cavaleiro Roldão; Batalha de Oliveiros com Ferrabrás; A prisão de Oliveiros; Roberto do Diabo; História da donzela Teodora; Princesa Magalona e seu amante Pierre O romance de José Garcia; Romance do Pavão Misterioso; O Valente Cobra Choca; A entrada de Lampião no inferno; e, dos desafios e cantorias de violeiros, eu ainda guardo na lembrança os nomes do Cego Aderaldo, Mocinha da Pacira, Lourival Batista, Pinto de Monteiro, Jô Patriota, Dimas Batista, e, salvo engano, Ivanildo Vila Nova.

Xilogravura - Capa de Cordel

O teatro popular também esteve muito presente em minha infância, e com muita freqüência eu assistia a espetáculos de mamulengo, encenados por grupos de titeriteiros que se exibiam nas ruas Formosa, Padre Roma e Frei Caneca em Jaboatão. O espetáculo era sempre ao ar livre e gratuito, e o mestre mamulengueiro, durante a encenação, usava um dos seus auxiliares para passar uma caixinha pedindo contribuição monetária à platéia. Lembro-me, ainda, que o cenário do espetáculo era sempre montado entre duas casas num terreno baldio, onde fincavam, com certa distância um do outro, dois barrotes de madeira, e se estendia um lençol escuro que era chamado, salvo engano, de empanada. Detrás dessa empanada ficavam o mestre e o auxiliar que manejavam os rústicos e toscos bonecos. O espetáculo sempre tinha acompanhamento musical de sanfona e pandeiro e, às vezes, de uma rabeca. O número de bonecos variava muito por espetáculo, e só não me esqueci dos personagens João Redondo, Padre, Cangaceiro, Bêbado, Polícia, Vaqueiro, a Alma, o Diabo, a Morte, Babau, Mulheres, Benedito e de alguns animais que às vezes dependendo da trama entravam em cena: principalmente boi, jacaré, cobra, cachorro e onça. As farsas encenadas eram geralmente muito simples, e seus enredos eram baseados em motivos populares, com brigas, mágicas, façanhas etc. narrando histórias de pequenos conflitos ou de acontecimentos recentes, sem faltar às narrativas só para fazer rir; nelas sempre o herói vencia o vilão. Nunca deixei de ir aos espetáculos dessa forma de expressão do teatro popular que se apresentavam em meu bairro, e quase sempre ia assistir as encenações de mamulengo nas barracas armadas na praça nos dias de festas do Natal e Ano Novo, em Jaboatão; na cidade de Ribeirão, no entanto, nunca eu ouvi falar de mamulengo.

Personagens de Mamulengo

                    
                                                  Mamulengo: bonecos em cena














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