domingo, 17 de julho de 2011

Memórias - Varal das Lembranças: Os livros de minha iniciação: Infância / Pedro Vicente Costa Sobrinho

Logo depois que meu pai esposou Dina e juntos foram residir na Rua Formosa, numa casa alugada, levou-me, a contragosto, da casa de tia Neném pra morar com eles. Tia Neném que naturalmente havia me adotado após o falecimento de minha mãe, alegou que Francisca antes de morrer havia pedido que cuidasse de mim, portanto ela era contra essa decisão do meu pai; apesar da autoridade que ela tinha sobre ele por ser a irmã mais velha e também sua madrinha, não adiantou nada. Eu, mesmo muito criança, fugia de casa e ia me esconder na casa de Tia Neném e só saia de lá quando meu pai ia me buscar. Era muito curta a distância entre as duas casas, para ir até lá eu caminhava um pedaço da Rua Formosa na direção da Rua Frei Caneca, descia um pequeno barranco e cruzava os trilhos da ferrovia da Usina Colônia, depois atravessava o terreno baldio da olaria de seu Neves onde havia um campo de futebol, e daí então de rápido alcançava a Rua Padre Roma onde ficava a casa do meu avô, que era casado com tia Neném. Durante as noites que eu lá dormia ou nos sábados eu participava de rodas de leitura, com tia Neném lendo em voz alta contos e novelas publicados na revista Grande Hotel ou obras psicografadas por médiuns ligados ao espiritismo kardecista do acervo de livros que pertencia ao meu primo e padrinho João Costa.

Começos de 1950, João Costa veio a falecer, e tia Neném disse-me que logo que aprendesse a ler os livros e revistas deixados pelo meu padrinho seriam meus, inclusive seus ternos emborrachados e uma bela caneta Parker 51. Tão logo que eu me flagrei lendo, procurei então ter acesso ao pequeno acervo de livros que ele deixou e fui bem devagar desasnando a leitura com auxílio de tia Neném. As primeiras leituras foram de livros psicografados, pois meu padrinho João Costa e minha tia eram adeptos do espiritismo e freqüentavam o Centro Espírita Gamaliel, que ficava na Rua Capitão Sabino. Lembro-me que li com certa dificuldade o romance “Lídia”, do espírito Suriñach, que tratava do amor entre uma jovem convertida ao cristianismo com um oficial romano pagão, no período de Nero, creio eu, e que é levada por sua fé ao martírio no Coliseu; história muito parecida com a trama de Quo Vadis, filme que vim a ver depois no cinema.

“Após a leitura da novela “Lídia” vieram os livros “A barqueira do Júcar”, de J.F. Colavida e ” A vingança do Judeu”, do espírito Rochester, pela médium Wera Krijanowskaia. Ao mesmo tempo em que lia obras psicografadas tia Neném me emprestou “O livros dos espíritos”, de Alan Kardec, leitura muito pesada e complexa para minha idade. Tinha que ler bem devagar, meditar sobre a riqueza e profundidade dos seus ensinamentos pois era um diálogo entre Kardec e espíritos elevados, dizia ela. Tia Neném acreditava na reencarnação como necessidade para evolução do ser humano, na materialização de espíritos, na mediunidade e nos fundamentos científicos da doutrina. Eu muitas vezes fui com ela às sessões espíritas e depois de celebrado o culto levava-me para o ritual passe. A próxima etapa de leitura já estava prevista, seria “O Evangelho segundo o Espiritismo”, que nunca me dispus a ler. Entremeando a leitura de novelas, romances psicografados e material doutrinário espírita eu com certa voracidade lia revistas de quadrinhos e fotonovelas .

Na pequena biblioteca que ao morrer meu padrinho nos legou também havia um pouco de literatura pagâ, pois nela existia alguns romances de autores nacionais e estrangeiros; e ainda me lembro de haver lido o que havia lá de romance de aventuras principalmente de capa e espada. Os autores que não esqueci foram o ítalo-americano Rafael Sabatini e seus livros “Scaramouche”, “O Gavião do mar”, “Capitão Blood”, e “O Cisne negro”; o francês Michel Zevaco e seus livros “Don Juan” e “Os Pardaillans” em edições com páginas já amareladas e caindo os pedaços; e por fim, o inesquecível conde Pierre-Alexis Ponson Du Terrail, de quem li alguns romances da série “As aventuras de Rocambole”, entre eles “O Pajem de Luis XIV”. Muitos romances de capa e espada foram adaptados para o cinema, pois de Rafael Sabatini todos os livros que dele eu li, ainda na infância, vim a assistir os filmes.

Outros livros de autor estrangeiro com certeza foram lidos, mas só me recordo dos romances “O corcunda de Notre Dame” e “O último dia de um condenado”, de Victor Hugo; “O conde de Monte Cristo” e “Os três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, o pai; "O prisioneiro de Zenda", de Anthony Hope; e Sangue e Areia, de Blasco Ybáñez. Afora “O último dia de um condenado”, para que lesse esses outros romances eu certamente fui induzido pelos quadrinhos e também pela sua adaptação ao cinema.


De autor nacional poucos livros havia e apenas me lembro dos livros “Iracema” e “O Guarani”, de José de Alencar; dois ou três livros de Humberto de Campos que não li e esqueci os títulos; “A moreninha” e “O moço loiro”, de Joaquim Manoel de Macedo e “Cidades Mortas”, de Monteiro Lobato. Com exceção já feita a Humberto de Campos, a leitura dos referidos livros foram fundamentais na minha infância, especialmente os contos de Monteiro Lobato. Do livro “Cidades Mortas” eu li em voz alta pro meu pai os contos: A nuvem de Gafanhotos, O fígado indiscreto e Um homem honesto. De Lobato também li dezenas de vezes “O Jeca tatu”, conto com ilustrações, publicado em grandes tiragens pelo Biotônico Fontoura e de fácil acesso na farmácia de seu Vilela, que ficava no Beco de Colônia.



A BÍBLIA

Durante minha infância eu nunca tive em casa a Bíblia, dela vim ter acesso através da família de Dina, mãe adotiva, pois quase todos os parentes que dela conheci eram evangélicos ligados à Igreja Batista; e também da sábia Ester, mãe de Cosinques e Jacques, meus bons amigos de infância e adolescência. Meu pai costumava visitar regularmente os parentes de Dina, que moravam na Rua Frei Caneca. Ficava um pouco na casa de seu Vicente (Dadai) e dona Maria pequena, pais de Dina, e a maior parte do tempo da visita na casa de Dindinha, avó de criação dela. Lá ele proseava com Ivonildo e Luís sobre tudo, ambos eram ferroviários, um deles primo de Dina e o outro casado com sua prima Adélia. Havia luz elétrica na casa de Dindinha, então eu aproveitava pra folhear aquele livro encadernado com capa de couro e espesso que ficava sobre uma mesinha na sala de visitas. Ivonildo muitas vezes me falou daquele livro e de sua origem divina por isso era chamado Escrituras Sagradas. Ele sempre lia pra gente alguns capítulos e versículos de partes que a ele interessava no seu trabalho de evangelização e catequese, quer do Velho quer do Novo Testamento. Da Bíblia, naquele tempo, eu estava certamente interessado pelas histórias do Velho Testamento que tia Neném me contava: Adão e Eva, Babel e sua torre, Noé e o dilúvio universal, a destruição de Sodoma e Gomorra, Moisés e sua fuga do Egito, e principalmente sobre Davi e Golias e Sansão. Logo que aprendi a ler eu fui de rápido e direto folhear a Bíblia na casa de Ester, precisamente às páginas onde poderia encontrar essas histórias mágicas. O livro sagrado sempre me foi cedido por ela, com a recomendação de que eu devia folhear com todo cuidado, pois era impresso num papel muito fininho e podia rasgar-se com o manuseio; ela também me orientava a encontrar o assunto em que eu estava interessado. Ester era viúva e muito pobre, sustentava-se e aos dois filhos homens com uma pequena pensão legada pelo marido morto e a lavar e engomar roupas para a família da qual fora empregada doméstica. Ocupava então um quarto nos fundos da casa de Dindinha, coberto com telhas e piso de barro batido; mobiliado com três camas, mesa com quatro tamboretes, pequeno armário e guarda-roupa; o fogão, armação de ferro e barro, alimentado a carvão, ficava fora do quarto a céu aberto. Eu sempre aproveitei durante anos parte do tempo livre fora do horário da escola para ir ler a Bíblia no quarto de Ester; além disso, ela ainda me contava histórias dos filmes que havia assistido quando jovem. Os filmes que ela me contou e de que nunca esqueci foram: “ O Fantasma da Ópera”, estrelado por Lon Chaney;  "Os Irmãos Corsos", com  Douglas Fairbanks Jr.; e Miguel Strogoff, com Julian Soler.



Da Bíblia com certeza na infância eu li do Pentateuco integralmente dois livros: Gênesis e Êxodo por conta dos personagens que me encantavam: Adão, Eva, Caim, Babel, Matusalém, Noé, Ló, Abrahão, José e Moisés; partes dos livros de Samuel e Reis, pois só me interessavam pelas histórias de Sansão, David e Salomão; e o livro de Jó, pelos seus sofrimentos e, sobretudo, por ter sido engolido pela baleia; todos do Velho Testamento. Do Novo li os livros Mateus, Lucas, João, Atos dos apóstolos e Revelação a João (Apocalipse). Desses livros excetos Atos dos apóstolos e Apocalipse, todo meu interesse era pela história da vida de Cristo, personagem que sempre me cativou e que cultivo até hoje, mesmo agora quando eu me considero ateu. Os filmes históricos de origem na Bíblia sempre me foram muito atraentes, e deles eu vi: “David e Betsabá”, com Gregory Peck e Susan Hayward; “Sansão e Dalila”, com Victor Mature e Hedy Lamarr; “Os dez Mandamentos”, com Charlton Heston e Yvonne De Carlo; e tantos outros sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo.

Até aos quatorze anos, pra mim foi extremamente penoso o acesso à literatura impressa nos livros. Nas escolas que estudei na infância não havia bibliotecas. Meu pai afora as revistas em quadrinhos nunca comprou um livro. Dina somente tinha um livro, o livro didático que havia usado no curso primário, que ela guardava com todo o carinho numa gaveta do guarda roupa, e eu, sem que ela soubesse, muitas vezes o pegava às escondidas pra ler. Jaboatão não tinha livraria nem biblioteca; e Ribeirão, afora a pequena biblioteca do colégio que não era aberta aos alunos, também não tinha livraria nem biblioteca pública. O único recurso era o pobre acervo de livros cultivado com carinho pela tia Neném. Pra ter acesso e ler alguns livros desse pobre acervo eu tive de vagar pelo menos por três diferentes lugares onde tia Neném residiu: Rua Padre Roma, duas vezes, o outro em Engenho Velho, este último até que um pouco distante de onde meu pai morava, mas valia a caminhada. Ainda bem que Ester me facilitou sua Bíblia. Quanto à fome de ler eu saciava empanturrando-me com a leitura de revistas de qualquer natureza, principalmente de quadrinhos e fotonovelas, viesse de onde viesse.

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