No início do ano de 1956, minha família mudou-se pra Ribeirão, cidade da Mata Sul de Pernambuco. A mudança foi transportada na carroceria sem cobertura de um caminhão. O percurso à época entre Jaboatão e Ribeirão era de mais ou menos 15 léguas, com caminho parte já pavimentado e a maior parte ainda em barro. Para vencer a distancia entre as duas cidades levamos mais de seis horas, ainda bem que não choveu durante o tempo de demora na estrada e nossa pequena carga não sofreu qualquer dano. Dina e dois irmãos menores viajaram protegidos ao lado do chofer dentro da boléia; meu pai, eu, outros dois irmãos e o calunga fomos em cima da carroceria do veículo. De livros só levei comigo os que eu fiz uso na terceira série primária da escola municipal do Barracão, sob orientação da dedicada, sábia e inesquecível mestra dona Dodô.
Meu pai havia aceitado o convite pra gerenciar uma Serraria e Movelaria em Ribeirão, e resolveu de imediato levar sua família junto com ele. Fomos morar no Alto da Caixa D’ Água, numa casa de alvenaria com seis cômodos: três quartos, sala, cozinha e outra dependência que serviu para que meu pai viesse depois a instalar uma pequena mercearia; fora de casa num pequeno quintal ficava a privada de fossa seca; não havia banheiro. A casa pertencia a Luís Sobral, amigo de meu pai e casado com uma parenta de Dina. Residi nessa casa durante todo o tempo em que eu estive em Ribeirão.
Logo que chegamos à cidade Dina matriculou-me para fazer a quarta série do curso primário no Grupo Escolar Padre Américo Novais; e então, por ser considerado pela minha mestra dona Teresinha muito adiantado com relação ao nível dos outros colegas de classe, eu fui transferido para turma da quinta série, e assim, pude concluir durante o mesmo ano o curso primário. No Padre Novais não havia biblioteca, e não era até então, suponho eu, costume dos professores a indicação de livros para que fossem lidos pelos alunos como tarefa escolar, pelo menos no meu caso isso aconteceu. Na cidade também não havia biblioteca muito menos livraria, mas falava-se muito que o advogado e intelectual da cidade Dr. Stênio Leite possuía uma boa estante de livros; lembro-me ainda da participação dele no programa “O céu é o limite”, sendo argüido sobre o cônsul romano Júlio César. Nunca tive qualquer aproximação com tal Dr. Stênio, portanto jamais poderia eu ter contado com os favores de sua biblioteca. Devido a tal situação, durante mais de dois anos eu fiz um jejum de livros, e essa lacuna só foi precariamente compensada pela leitura de revistas de quadrinhos, fotonovelas e esportivas, e pelos folhetos de cordel e de letras de música.
A literatura de cordel e os folhetos com letras de música popular foram para mim muito importantes, pois de fácil acesso e leitura. Nas feiras livres dos domingos sempre havia um feirante que espalhava as revistas de cordel numa lona que servia de forro ao calçamento, e vendia quase ao mesmo tempo em que lia em voz alta às histórias para matutos e apreciadores; perto dali outro ambulante negociava folhetos de música, e para isso contava com um toca discos e alto-falantes onde ele reproduzia algumas canções cujas letras neles estavam impressas e que, sobre uma lona, espalhava parte do material que estava posto à venda. O esperto vendedor de letras às vezes era bom de garganta e fazia uso dos seus dons de intérprete para cantar algumas musicas, principalmente do repertório mais a gosto popular.
Tornei-me leitor assíduo de folhetos de cordel, tanto os lia silenciosamente ou ainda em voz alta diante de uma platéia da qual faziam parte meu pai, alguns dos seus amigos e vizinhos. Os folhetos com letras de música eu os li à exaustão, inclusive muito deles emprestados pelo meio-irmão Cosinques (Quinho), certamente lhes devo grande parte do repertório de MPB que acumulei e que até hoje retenho na memória.
Passei todo ano de 1957 sem freqüentar o ensino regular por não me haver inscrito nas provas aos Exames de Admissão ao curso ginasial da Escola Técnica de Comércio de Ribeirão. No ano seguinte fiz as provas e passei em segundo lugar, vindo a receber sinceros e carinhosos cumprimentos de dona Cleonice, que fora por duas vezes minha sábia e inesquecível mestra, no grupo escolar Padre Américo Novais e também no curso preparatório para o Exame de Admissão ao Ginásio.
Por estar cursando o primeiro ano do ginásio comercial na Escola Técnica de Comércio de Ribeirão, meu pai quis dar-me um presente e naturalmente escolheu livros, que era a coisa que ele sabia que eu mais gostava. Só que ele foi enganado por um esperto vendedor de livros de fundo esotérico. Não havia me consultado por ser surpresa, mas havia se aconselhado com o maestro Bia, virtuose do Bombardino e pé-de-cana maior que bebericava regularmente todos as santas manhãs no balcão da mercearia. Confesso que até agora não conheci ninguém que se parecesse com ele como apreciador da branquinha. Ora bolas, maestro Bia de cachaça e música entendia muito bem, mas de livro nada, e só era menos ignorante que meu pai por ser alfabetizado. O fato é que eu tive que receber o pacote de livros sem reclamar por ser um presente e por ser dado com a melhor boa vontade, apesar da escolha ingênua feita pelo meu pai. Além disso, o velho era carrancista e confiava no saber do maestro Bia, e podia ficar puto da vida comigo partindo então pra retaliação com uso da força, até porque a coisa havia lhe custado um bom dinheiro.
O diabo é que por falta de alternativa eu vim a ler todo o pacote: Colunas do Caráter e Nutrição e Vigor, esses em capa dura com títulos gravados com falso ouro; os outros, dois ou três eu não me lembro, eram brochuras, só sei que de um deles o título era Matrimônio Feliz; até agora não procurei saber quem eram os seus autores. Acontece que, não havendo alternativa de leitura, a fome de ler foi saciada com essa subliteratura esotérica de cunho pseudofilósofico. Hoje, ao repensar esse momento, sinto-me como Petruchka, criado de Pável Ivánovitch Tchíchicov, personagens de N.V. Gógol no seu livro “Almas Mortas”, que segundo o escritor russo “... tinha uma nobre tendência para instrução, isto é, à leitura de livros, com cujo conteúdo não se preocupava: tanto se lhe dava que se tratasse de aventuras amorosas, de uma simples cartilha ou de um breviário – ele lia tudo com a mesma atenção; se lhe caísse nas mãos um livro de química, ele não deixaria de lê-lo da mesma forma. Petruchka apreciava não o que lia, mas a leitura em si, ou melhor dizendo, o próprio processo da leitura...”.
Durante o primeiro ano do curso ginasial, o livro adotado de língua portuguesa, cujo autor não me lembro, incluía gramática e muito textos curtos para leitura. Através dele eu entrei em contato e li textos de Gilberto Freyre, Vianna Moog e outros. Lembro-me bem de um conto de Júlia Lopes de Almeida e de um trecho extraído do romance “A Carne” de Júlio Ribeiro. O primeiro contava a história de uma pobre criança que recebeu certo dia a visita do Rabi; o outro descrevia cenas da caça de queixadas numa incerta fazenda no interior de Minas. Havia também poesia cujos poemas e seus autores foram pro ralo do esquecimento. Além disso, decorei integralmente o livro adotado de história do Brasil, de Borges Hermida, e li, em voz alta, pro meu pai dois livros, um deles O filho de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e o outro que contava histórias da resistência dos pernambucanos à ocupação holandesa, e exaltava o heroísmo dos seus líderes. Nunca esqueci desse livro a frase do preto alforriado Henrique Dias, que ao perder numa renhida batalha um dos braços, grosso modo, assim falou: “Ainda me resta uma mão para defender minha pátria”; e também da narrativa sobre as mulheres heroínas de Tejucupapo. Hoje se lesse tal livro certamente não perdoaria as fanfarras patrioteiras do autor.
O ano seguinte foi mais promissor, já estava no segundo ano do ginásio e, portanto, e pouco a pouco sem me tornar arredio fui alargando as minhas relações para além dos limites do círculo de vizinhança e dos fregueses da mercearia do meu pai; e também abandonei o trabalho de cambista de jogo de bicho, que meu pai havia arranjado com o bicheiro Almir, da Banca Aliada. O dinheiro vindo da comissão de cambista servia como complemento pra ajudar na mensalidade da escola, custear o ingresso do cinema e comprar revistas de quadrinhos. Pouco tempo depois fui trabalhar como balconista na mercearia 'A Caçula", de José Gomes. Aproximei-me então dos professores e alunos que liam coisas além das disciplinas que ensinavam e estudavam, e me juntei a eles. Lembro-me bem do professor Pedrosa, que me emprestou uma coleção completa de oito volumes de livros: Curiosidades - como se aprende distraindo, de Valmiro Rodrigues Vidal e alguma literatura de ficção; e de Severino Cabeção, colega de ginásio e freguês da mercearia em que trabalhava; ele era ateu e certamente me despertou com suas conversas para um olhar crítico mesmo que ingênuo sobre a religião. Deixei então de ir à missa e de me confessar, apesar da vigilância do padre Mousinho sobre os alunos do colégio. De camaleão, aparentei estar entre os que professavam outra fé religiosa, pois esses ficavam de fora do controle do severo reverendo. De meu patrão José Gomes passei a ler por empréstimo a revista O Cruzeiro; além das reportagens lia artigos de Drew Person, Gilberto Freyre, Pedro Calmon e Rachel de Queirós; a coluna de Millôr Fernandes, o humor quadrinizado de Carlos Estévão, e o inesquecível Amigo da Onça, de Péricles. Ousei, ainda, encomendar livros a Editora Gertum Carneiro que atendia pedidos pelo reembolso postal.
De posse do catálogo de livros da Gertum Carneiro que aparecia em revistas de quadrinhos, eu oferecia livros aos meus amigos mais próximos, fazia a escolha dos meus, e remetia o pedido pelos Correios. Para cada certo número de exemplares que encomendava eu tinha o direito de receber alguns livros gratuitamente. A medida que ia recebendo livros pelo reembolso postal por compra ou comissão, de certo, eu fui formando o que veio a ser a minha primeira biblioteca particular. Os livros prometidos pela tia Neném e que ficaram sob sua guarda e posse estavam em Jaboatão, e o acesso a esses livros só acontecia nas férias. Meu pai, por sua vez, cedeu-me um fiteiro envidraçado que fora utilizado para guarda de pães na merceria, e nele ora eu arrumei os meus livros e revistas.
Hoje, não faço a menor idéia quanto ao volume de livros que eu recebi pelo reembolso postal, mas eu ainda me lembro de alguns títulos e autores lidos; de Machado de Assis: A mão e a luva, Iaiá Garcia e Memorial de Aires; José de Alencar: A pata da gazela, A viuvinha e Senhora; Eça de Queirós: O crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e Alves & Cia; Júlio Ribeiro: A Carne; Aluisio Azevedo: O cortiço; Raul Pompéia: O Ateneu; A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo. Alem desses não esqueci os manuais de ensino de línguas de Raul Reinaldo Rigo: Aprenda francês (inglês e italiano) sem mestre. O resto, certamente era coisa de menos valia ou quase lixo, resultado óbvio de uma compra feita sem qualquer orientação intelectual, pois não havia no nicho de amigos mais próximos um só interlocutor naturalmente confiável para servir de guia. Voltei a Ribeirão cinqüenta anos depois de minha saída, e lá encontrei uma biblioteca pública municipal; não tive tempo de conferir o acervo, mas mesmo assim fiquei muito feliz por isso, e mais ainda por ter encontrado nela trabalhando Iracema, ex-colega no grupo escolar, e também a bela garotinha que bailava como mestra do cordão azul no pastoril do meu tempo da festa de Santana, padroeira da cidade.
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