A Bolívia caracteriza-se por ser um país extremamente complexo,
com uma história de constantes conflitos internos nas esferas
político-sociais, onde a relação de classes, a consciência
revolucionária, a clivagem socioeconômica, o caráter étnico de seu
povo e a correlação de forças entre proletários, camponeses,
governo e militares sempre demonstraram características singulares
na América Latina e muitas vezes apresentaram-se, se não como
condições, pelo menos como elementos catalizadores de revoltas e
motivos para que fossem impulsionadas as mudanças necessárias
em determinados períodos históricos. Esse processo que chegou
ao cume em 1952, veio a se desenvolver nos anos que se seguiram
aos episódios revolucionários. Para o politicólogo e sociólogo chileno
Fernando Mires, ao contrário da Revolução Mexicana, que surgiu a
partir da onipotência do Estado, a Revolução Boliviana surgiu por
causa da fraqueza do poder estatal, delineando aos poucos, através
de um longo processo de levantes populares contra um regime
muitas vezes sem caráter definido, em reação a governos autoritários
ou classistas. Em outras palavras, a Revolução Boliviana não foi algo
espontâneo nem imediato, mas produto de anos de elaboração. É
claro que não havia um projeto revolucionário prévio aos eventos
de 9 de abril de 1952, mas uma série de fatos, um emaranhado de
causas, tornaram possível a realização do momentum radical
cristalizado nas agitações populares e levante armado promovidos
por partidos e movimentos sociais no início daquela década.
A Bolívia, até 1952, era um país predominantemente rural, com
um expressivo campesinato indígena. Formado etnicamente por
quéchuas e aymarás, em sua maioria, a população da Bolívia
também era formada por povos de origem guarani no sudeste do
país. Esta nação poderia ser vista como um exemplo clássico do
sistema latifundiário latino-americano. As maiores e melhores
porções de terra eram controladas por terratenientes que obtinham
mão-de-obra barata indígena mediante um sistema de câmbios, em
que os camponeses recebiam pequenas parcelas de terra para
trabalhar em troca de serviços aos latifundiários, serviços no mais
das vezes sem contratos trabalhistas e sem pagamentos. Não tendo
condições de rebelar-se, colocados em posição marginal em relação
a outros setores obreiros do país, e sem estabelecer levas migratórias
significativas para os grandes centros urbanos (que na época prérevolucionária
não tinham capacidade de comportar números
expressivos de contingentes humanos chegados do campo), os
indígenas camponeses bolivianos viram-se praticamente obrigados
a resignar-se ao papel que lhes fora estabelecido. O sistema agrícola
não se desenvolveu, já que a tendência abstencionista — explicitada
na atitude do fazendeiro que vivia na metrópole, exercia profissões
urbanas e “cuidava” de sua propriedade de longe — era
predominante. A propriedade rural foi relegada ao papel de
latifúndio, de baixa produção de alimentos, cultivados com
sementes de má qualidade e equipamentos rudimentares, sempre
nas mãos do campesinato, que além de todos os seus encargos se
via forçado a trabalhar como serviçal da família do hacendado,
mesmo que esta residisse em algum centro urbano longe de suas
terras (Klein, 1994). De forma geral, os indígenas bolivianos
preservavam uma posição tímida e conservadora e evitavam
confrontar-se com seus patrões. É claro que temos exemplos de
rebeliões como a do cacique Zárate Wilka, no final do século XIX,
que levantava a bandeira da autonomia dos povos autóctones e
reforma agrária, mas na maioria das vezes, estas revoltas eram
suprimidas rapidamente pelo governo com dureza, seus líderes eram
assassinados e o povo esmagado impiedosamente.
Por outro lado, temos no proletariado mineiro o grupo
politicamente mais consciente e organizado da Bolívia. Durante
várias décadas, as minas de estanho eram propriedade de magnatas
como Patiño, Aramayo e Hoschild. Esta “casta”, também denominada
“rosca”, representava quase uma “classe” por si mesma. Num país
onde não havia ocorrido a revolução democrático-burguesa, e onde
não havia nem uma burguesia estruturada e forte o suficiente para
impor um projeto para o país e, tampouco nem um campesinato e
proletariado ainda em condições de fazer a revolução socialista —
o que, de fato, nunca veio a ocorrer —, era o Estado que fazia o
papel de classe social impulsinadora de projetos e mudanças. Este
Estado, como se pode supor, servia aos interesses da classe
dominante. Por isso, não é de se estranhar a venda do território do
Acre ao Brasil, em 1903, e a concessão de terras para o Chile em
1904, quando a Bolívia perdeu o acesso ao mar. Esta falta de interesse
na integridade territorial só pode ser compreendida em função das
razoáveis somas em dinheiro que o país recebia. Mas o dinheiro era
investido em obras que favoreciam aos interesses da elite,
preservando o estado geral em que se encontrava a nação.
A partir da crise de 1929, os trabalhadores mineiros, aliados aos
estudantes, começaram a dar voz às suas reivindicações.
Conhecedores não apenas das injustiças dentro das minas, os
proletários bolivianos, originários das comunidades quéchuas e
aymarás do campo, colocavam em pauta não apenas melhoria de
condições de trabalho e melhores salários, mas também uma série
de outras reivindicações de ordem político-social na esfera geral do
país. Em outras palavras, as questões de classe na Bolívia não podiam
ser dissociadas de suas origens étnicas. Mas o movimento operário
ainda teria muito a caminhar, já que o nível de organização era
incipiente comparado com o que viria a ser nos anos subseqüentes,
e a capacidade de reação da “rosca” era grande.
Para dificultar mais ainda a posição dos operários e da população
boliviana em geral, ocorreu, em 1932, a Guerra do Chaco —
provocada pelo presidente Salamanca —, contra o Paraguai, país
vizinho que a todo custo tentou evitar o conflito. Tendo que enfrentar
protestos populares e grave crise econômica, o governo Salamanca
viu numa guerra contra o Paraguai possibilidade de conquistar uma
vitória fácil. Assim, as atenções dos bolivianos seriam desviadas, o
governo se fortaleceria, e novos territórios seriam incorporados ao
país. A Guerra do Chaco, que durou de 1932 a 1935, ceifou a vida de
cem mil homens e teve como desenlace uma derrota trágica da
Bolívia que, além de humilhada nos campos de batalha,
contrariamente ao pretendido perdeu um quinto de seu território. A
guerra acelerou a derrocada de Salamanca, e sua substituição por
Tejada Sorzano, e fez surgir novos nomes de importância na política
nacional, como David Toro, Carlos Quintanilla, Enrique Peñaranda e
Germán Busch, que se destacaram nas frentes interna e externa no
período belicista. Em 1937, Tejada foi deposto por um setor do
exército boliviano, que empossou os oficiais David Toro e Germán
Busch no poder. Os coronéis Toro e Busch iniciaram o período
denominado de “socialismo militar”, em que as figuras dos militares
apareciam como tradutores estatais dos anseios populares.
Denominação sui generis para um período que abriria aos poucos
o caminho para 1952 e no qual a oficialidade tentou uma maior
aproximação com os movimentos dos trabalhadores e criou certo
clima de apreensão entre os barões do estanho. Naquele ano de
1937, por exemplo, quando o governo era encabeçado por Toro,
foram confiscadas propriedades da Standard Oil, e criada a
Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), empresa estatal.
A partir do governo Busch, iniciado em junho do mesmo ano, além
da promulgação de uma constituição mais progressista, foi criado o
Código do Trabalho, que brindava os operários com várias de suas
demandas tradicionais. Ocorreu, de fato, uma razoável pressão sobre
os barões do estanho, fato que desagradou as elites nacionais, que
organizaram-se em oposição e conseguiram arregimentar setores
do exército para isolar politicamente o presidente. Tantas foram as
pressões, que em 1939 Busch suicidou-se, tornando-se mais tarde
um “mártir” da esquerda, que utilizou sua figura como “emblema”
de resistência. O governo, a partir daí, passou às mãos do general
Quintanilla, aliado da “rosca”, que afastou os oficiais partidários de
Busch dos cargos importantes e foi capaz, por algum tempo, de
manter o poder.
A influência dos partidos
Os partidos políticos viriam a desempenhar um papel
extremamente relevante na construção da revolução boliviana de
1952. Em 1934 foi fundado em Córdoba, na Argentina, o POR, Partido
Obrero Revolucionario, por intelectuais marxistas dissidentes. Entre
seus principais idealizadores e fundadores estavam Tristán Maróf —
pseudônimo de Gustavo Navarro —, José Aguirre Gainsborg e
Guillermo Lora, este último mais tarde se tornaria o dirigente do
partido. Maróf, escritor e político renomado internacionalmente,
representava o marxismo indigenista do peruano José Carlos
Mariátegui e defendia o retorno à tradição incaica do povo boliviano
aliada à concepção materialista-dialética da análise da realidade da
região. Já José Aguirre Gainsborg, mais ortodoxo, alinhava-se com o
marxismo-leninismo e postulava a distribuição de armas ao
proletariado para que este estivesse preparado para iniciar a
revolução socialista. E finalmente Guillermo Lora, que era adepto
do trotskismo. Em 1938, Maróf desvencilhou-se do POR e criou o
PSOB, Partido Socialista Operário Boliviano. Em 1946, Lora, cuja a
influência crescia e se consolidava politicamente dentro do POR,
conseguiu a aprovação pela Federação Mineira da Bolívia, de sua
“Tese de Pulacayo”, fato que evidenciava, pela primeira vez na
América Latina, a aceitação oficial por um grupo de trabalhadores
de peso das idéias da Revolução permanente de Trotski. O POR foi
um dos partidos que mais penetrou e influenciou o movimento
operário boliviano nos anos pré-revolucionários.
O PIR, Partido de Izquierda Revolucionaria, fundado em 1940
pelo sociólogo José Antonio Arze, seria um dos inspiradores de
partidos como o MNR, Movimiento Nacionalista Revolucionario, e
de onde surgiria o PCB, Partido Comunista Boliviano. Entre 1940 e
1946 conseguiu o apoio de razoáveis setores do proletariado, mas
aos poucos foi perdendo sua força, na medida em que partidos
como o POR e o MNR cresciam no seio dos trabalhadores mineiros
e alguns de seus membros eram acusados de oportunistas e
“colaboracionistas” do regime vigente naquele período. Com a cisão
do partido em 1950, foi criado o PCB, liderado por José Pereira.
O mais importante partido da revolução, porém, juntamente com
o POR, foi o MNR, fundado em 1941 por um grupo de professores
universitários, jornalistas, advogados, veteranos da Guerra do Chaco
e intelectuais. O MNR era encabeçado por Victor Paz Estenssoro,
Hernán Siles Zuazo e Carlos Montenegro, e tinha elementos que
variavam desde o fascismo até o socialismo entre seus membros.
Seu programa defendia, entre outros pontos, o antiimperialismo, a
abolição da estrutura “semi-feudal” no campo e a reforma agrária.
O general Quintanilla não agradava a vários setores do exército,
que viam nele um potencial caudilho. Temendo que ele conseguisse
acumular suficiente poder para manter-se como principal
mandatário da nação, membros da oficialidade das forças armadas
forçaram o general a convocar novas eleições em 1940, que foram
vencidas por outro militar, Enrique Peñaranda. Nesta ocasião, J. A.
Arze surpreendentemente conseguiu dez mil votos dos 58 mil válidos,
algo que poucos imaginaram que pudesse acontecer. Apesar de o
governo Peñaranda ser caracterizado por entreguista e estar
completamente suscetível aos desígnios dos Estados Unidos, sob
seu governo teve lugar uma relativa flexiblidade de atuação dos
partidos de esquerda. Os norte-americanos, porém, preocupados
com a situação política na Bolívia, fizeram com que os militares,
passassem da pressão à repressão contra o MNR, que assustava por
suas posições nacionalistas e antiimperialistas. Com a debilidade
do governo, evidenciada na submissão ao “colosso do Norte” e com
o massacre de trabalhadores, ocorrido após manifestações e revoltas
mineiras em Catavi, em 1942, o regime se viu fragilizado e a cada
momento com menos sustentação. Apesar do PIR demonstrar estar
a favor de algumas medidas do governo, este partido foi também
reprimido. Assim, Peñaranda perdia a possibilidade também de apoio
de setores da esquerda.
Grupos de jovens oficiais ligados ideologicamente ao expresidente
Busch criaram a Razón de Pátria (Radepa), um grupo
para-militar secreto que funcionava quase como um partido
clandestino. Foi esse grupo que em 1943 derrubou Peñaranda e
colocou em seu lugar, após um golpe de Estado, o major Gualberto
Villaroel. Este governo foi responsável pela formação da Federação
dos Trabalhadores Mineiros da Bolívia e pela criação do I Congresso
Nacional Indígena, dois exemplos da abertura de idéias e aumento
de possibilidades de discussão e mudanças dentro do seio do
campesinato indígena e do movimento operário. O interessante é
notar que neste período temos Paz Estenssoro — que havia sido
ministro da Economia do governo de Enrique Peñaranda — como
íntimo colaborador de Villaroel, facilitando uma aproximação deste
com o MNR, partido que se utilizou desta relação para reprimir
inimigos políticos e assomar poder. O governo Villaroel foi o primeiro
a questionar o sistema latifundiário da Bolívia, o que desagradou
enormemente à direita. Por outro lado, a esquerda era sufocada
pelo MNR, seu aliado. Com direita e esquerda contra o presidente,
começou-se a organizar um complô para derrubar o mandatário.
Professores, estudantes, setores do movimento operário e partidos
políticos se aliaram, influenciados pela luta ideológica que se travava
por toda a nação, e em 1946, uma multidão saiu às ruas, roubou
armamentos dos arsenais militares, invadiu o palácio do governo,
capturou Villaroel e o assassinou, pendurando-o pelo pescoço num
poste da praça principal.
De 1946 a 1952 temos o período reformista. O MNR se livra dos
elementos mais fascistas de seu seio e passa para a oposição,
enquanto os governos dos presidentes Hertzog e posteriormente
Urriolagoitia começam a demitir e massacrar os trabalhadores,
principalmente mineiros. Em 1949, o MNR, em que pese o relativo
desgaste sofrido nos anos anteriores, já era novamente um dos mais
fortes partidos do país, e lançou uma ofensiva insurrecional contra
o governo, sem sucesso. A Bolívia estava dividida: de um lado, as
oligarquias tradicionais e o exército apoiando o governo; de outro,
os trabalhadores, os camponeses e parte da classe média apoiando
o MNR e partidos de esquerda.
Em 1951, ocorreram as eleições que preparariam o caminho
para a revolução. O MNR tinha como aliados os sindicatos mineiros,
mas os trabalhadores em sua maioria eram analfabetos e, portanto,
sem direito a voto. Apesar disso, o partido recebeu o apoio de Juan
Lechín, importante líder sindical, e celebrou a união da oposição
em torno da candidatura de Paz Estenssoro. Estes dois elementos
supracitados foram fundamentais para o candidato emenerrista
e o levaram à vitória nas urnas aquele ano. Não conseguindo os
50% mais um, necessários para empossar o presidente em eleição
direta, porém, Paz Estenssoro e seus correligionários esperaram
a decisão do Congresso. Pressionado pelas Forças Armadas, o
então presidente Urriolagoitia fugiu do país, e uma junta militar,
encabeçada pelo general Balliván, tomou o poder. Não se passou
muito tempo, contudo, e os militares se viram forçados a deixar o
governo em razão das pressões populares em torno do
Movimento Nacionalista Revolucionário. A 9 de abril de 1952, o
MNR finalmente se estabeleceu como governo na Bolívia. A lição:
manter e reforçar o apoio do campesinato e mineiros, através de
medidas nacionalistas e antiimperialistas.
O período revolucionário
A revolução boliviana, iniciada em 1952, cunhada por vezes de
democrático-burguesa e por vezes de nacional-popular, duraria até
1964, ano em que ocorreu o golpe militar dos generais René
Barrientos e Alfredo Ovando Candia. Este período se divide em três
governos: o primeiro, encabeçado por Paz Estenssoro, de 1952 a
1956; o segundo, com Siles Zuazo, entre 1956 e 1960; e o terceiro,
novamente liderado por Paz Estenssoro, com Juan Lechín como
vice-presidente, de 1960 a 1964. Teve como protagonistas os pobres
das cidades, os camponeses, os trabalhadores sindicalmente
organizados e o próprio MNR (Mires, 1991: 134). Estes diferentes
grupos não tinham objetivos em comum, e eram várias as
reivindicações de cada setor. Entretanto havia um ódio geral contra
as elites no poder, que foi traduzido nos eventos revolucionários
violentos que ocorreram em 9 de abril, já que o povo nas ruas
somente venceu a partir da insurreição armada.
No ano da revolução foi instaurado o sufrágio universal. Assim,
os camponeses indígenas poderiam finalmente votar. Também
ocorreu a nacionalização das minas, passando-as para a
administração da Corporação Mineira da Bolívia (Comibol), além
da criação da Central Obrera Boliviana (COB).
Em 1953 foi feita a tão esperada reforma agrária. Pela lei deveria
ser feita a distribuição de terras aos camponeses; deveria haver a
devolução às comunidades indígenas das propriedades roubadas
pelos terratenientes; os trabalhadores do campo não seriam mais
servos; o estímulo à produção e comercialização de produtos
agrícolas; incentivo à migração da população do altiplano até o
sudeste da Bolívia e conservação dos recursos naturais.
Esta reforma agrária, porém, não assustava em demasia os
Estados Unidos. Na prática, essa medida não lhes afetava em nada,
e poderia ser vista até como algo vantajoso, já que a propriedade
privada continuaria existindo e a criação de pequenos e médios
produtores aumentaria o mercado e a produção, possibilitando
maiores lucros e participação dos norte-americanos, já que estes
poderiam tirar proveito da situação com sistemas de crédito e
inversão de capital nas novas atividades geradas.
Talvez a grande motivação de Paz Estenssoro fosse justamente o
maior controle e apoio dos camponeses. Com a reforma agrária, os
índios tornaram-se uma força política conservadora, preocupados
principalmente com ganhos materiais, como saúde e educação e,
em muitos casos, dando apoio ao governo constituído, diminuindo
em contrapartida seu potencial revolucionário. Enquanto a
economia do país se deteriorava no final dos anos 50 e início dos
anos 60, e aumentavam a agitação e protestos dos mineiros,
trabalhadores urbanos e setores da classe média, o governo
acelerava o processo de distribuição de terras, mostrando
nitidamente seu interesse pelo apoio dos índios. Para Sheldon B.
Liss, esse mesmo período demonstrou que os reformistas do MNR e
da COB, além de destruírem o fervor revolucionário do proletariado,
conseguiram, em boa medida, dissipar a solidariedade entre os
grupos socialistas do país, o que contribuiu para que estes não
lograssem ganhos visíveis de poder político na época (Liss, 1984:
177).
Apesar do discurso antiimperialista, desde o início da revolução,
e principalmente durante o governo de Siles Zuazo (1956-1960), a
Bolívia recebeu gigantescos empréstimos dos Estados Unidos. A
inflação atingiu níveis altíssimos, cresceu o desemprego no país,
começou um processo de recomposição do exército regular e a
dependência aos norte-americanos tornou-se cada vez maior.
No segundo governo de Paz Estenssoro (1960-1964) ocorreu uma
guinada para a direita no direcionamento político do país, apesar de o
vice-presidente ser Juan Lechín. Com a cisão de Paz Estessoro e Lechín,
uma nova composição foi oficializada, tendo o general René Barrientos
como candidato a vice-presidente nas eleições de 21 de maio de 1964.
Sendo atacado, porém, por Zuazo e Lechín e, ao mesmo tempo, tendo
que enfrentar uma greve geral dos mineiros e diversas revoltas
populares, o presidente foi destituído no mesmo ano pelos generais
Barrientos e Ovando Candia.
É importante notar o papel dos Estados Unidos no que se refere
aos assuntos internos da Bolívia. Desde a revolução de 9 de abril de
1952, a ingerência norte-americana foi ostensiva, e pode-se dizer
que a caracterização dos governos revolucionários de
“entreguistas”, em grande medida, está correta. No ponto de vista
do governo dos Estados Unidos, não havia outra alternativa senão
apoiar o MNR no poder; caso contrário, a abstenção ou repressão
norte-americana poderia resultar na possibilidade de que outros
grupos, como “trotskistas ou stalinistas”, viessem a se sublevar no
cenário político nacional e aglutinar suficientemente as massas
populares a seu favor. Para garantir que a Bolívia continuasse dentro
de sua esfera de influência, os Estados Unidos resolveram dar um
auxílio econômico àquele governo latino-americano. A “ajuda” norteamericana
somou, entre 1953 e 1959, 214 milhões de dólares. Destes,
onze milhões foram empréstimos do Export-Import Bank, quatro
milhões do Development Loan Fund e quinze milhões do
empréstimo de estabilização do FMI e do Tesouro americano. O
aumento dos empréstimos à Bolívia, que passaram de um milhão e
meio de dólares em 1953 para 22,7 milhões em 1959 é traço suficiente
para notar-se a preocupação do “colosso do Norte” em relação à
nação boliviana. O programa norte-americano, assim, chegou a ser
o maior desta espécie em toda a América Latina (Patch, 1970). Em
1955, como sintoma da política imperialista dos Estados Unidos, foi
decretado o Código do Petróleo, “a primeira lei pós-revolucionária
escrita por americanos e promulgada sem debate público ou
modificação por autoridades bolivianas” (Whitehead, 1969: 11). Isso
significava que a Bolívia renunciava ao monopólio governamental
do petróleo e os Estados Unidos, que não queriam financiar
operações governamentais relativas a esta área, preferindo deixar
tais atividades para o setor privado, apoiariam grupos econômicos
norte-americanos ligados a esta atividade, a escrever os estatutos
do petróleo boliviano para atrair investimentos externos àquele país.
Mesmo que a mão americana agisse de forma mais sisuda e
firme em alguns momentos, ou relaxasse em outros, o certo é que
esteve sempre presente no sistema de decisões governamentais da
Bolívia, enquanto que concomitantemente tentava afastar certos
líderes de esquerda, principalmente Juan Lechín, a quem considerava
“perigoso”. Esse desagrado com Lechín foi o suficiente para que ele
não recebesse apoio algum por parte dos imperialistas de
Washington, e que seu nome fosse terminantemente rechaçado
quando da escolha dos homens a encabeçar o governo nas eleições
de 1964. O embaixador norte-americano, Douglas Henderson, foi
diversas vezes visto no palanque junto a Paz Estenssoro e tinha
influência suficiente, em nome de seu país, para “vetar” Lechín da
coligação. Laurence Whitehead afirma que “ao vetar líderes
esquerdistas, ao fragmentar os movimentos populares, e por
endossar o papel do exército, a política americana encorajou o
crescimento do militarismo” (Ibidem: 25). A força que os militares
conseguiram acumular durante o período revolucionário foi
suficiente para que tivessem condições, assim, de tomar o poder
em novembro de 1964.
Os militares e a política
Quando a revolução triunfou em 1952, várias medidas restritivas
foram tomadas em relação às Forças Armadas bolivianas. Os quadros
considerados politicamente contrários ao MNR, por exemplo, foram
afastados da ativa; o Colégio Militar, fechado; os conscritos
receberam baixa; outro duro golpe, foi a desmobilização de oitenta
por cento do efetivo (Peña, 1971: 329).
Apesar do repúdio dos trabalhadores, materializado em
declarações da COB contra o exército, o MNR resolveu restabelecer
as Forças Armadas em decreto de 24 de julho de 1953, com intuito
de recriar as instituições militares em novos moldes, ao mesmo
tempo que reforçava as milícias civis, que chegaram a ter, no primeiro
período da revolução, 70 mil homens armados, grande parte
controlada por camponeses e mineiros. A COB, preocupada com
os avanços do governo na reconstrução das Forças Armadas, havia
aprovado em 10 de junho, em caráter de urgência, a organização do
“Exército Proletário”, que estava incumbido de preservar a ordem
vigente na revolução e impedir o surgimento da contra-revolução.
Juan Lechín seria o comandante-em-chefe deste exército “popular”
que teria como tática coordenar-se com as milícias operárias e
camponesas, estas últimas com a função de serem acionadas, em
caso de luta no campo, baseadas em técnicas e estratégias de
guerrilha. A preocupação “rosquera”, ou seja, o medo da contrarevolução,
patente nestas atitudes dos trabalhadores, não impediu,
porém, que se retomasse a marcha do restabelecimento dos efetivos
regulares.
Para se ter uma idéia, também foi criada pelo governo de Paz
Estenssoro a Escola Nacional de Polícias. Os carabineiros da polícia
receberam treinamento paramilitar e tiveram como incumbência
ter em sua jurisdição a força de detetives e o Serviço Nacional de
Identificação. Em teoria, com essa política o governo tentava manter
um equilíbrio de forças entre polícia, exército e milícias, a fim de ter
melhores instrumentos para salvaguardar a revolução. Mas isso, só
em teoria. Um dos fatores primordiais para a mudança dessa situação,
com gradual aumento do poder e influência do exército dentro do
país foram os acordos de cooperação militar firmados com os
Estados Unidos em 1956. Como afirma Alfonso Camacho Peña, “com
a missão dos Estados Unidos, em primeiro lugar, o novo exército
boliviano se converteu progressivamente em uma organização forte
e logicamente foi se integrando ao sistema de defesa continental
com sua doutrina e programas, ou seja, à Ação Cívica e aos
programas antiinsurreição” (Ibidem: 331). Posteriormente, com a
ameaça “subversiva” de grupos inspirados pela Revolução Cubana
em todo o hemisfério, o apoio norte-americano tornou-se ainda
mais direto.
É preciso lembrar também que as milícias camponesas e
mineiras não estavam atreladas ao poder central durante o período
basicamente aos seus líderes locais e a algumas lideranças de
expressão nacional, como Juan Lechín, por exemplo, no caso dos
mineiros, que não apoiavam Paz Estenssoro. Nessa atitude o governo
de La Paz viu mais uma desculpa para fortalecer os militares. A
diferença entre as milícias e o exército, com isso, começou a ser
vista também em termos de armamentos. Até o final da década de
1950, as Forças Armadas possuíam material bélico obsoleto, em sua
maioria remanescente da Guerra do Chaco, nos anos 1930. Com os
acordos militares com os Estados Unidos, receberam armamentos
mais modernos e treinamento para oficiais no Panamá. Em 1959,
chegou a primeira parcela de equipamentos para infantaria com o
propósito de equipar as companhias que cumpririam funções de
segurança interna. O que se pode notar, a partir de então é o
fortalecimento das Forças Armadas da Bolívia em escala progressiva
e o gradual enfraquecimento das milícias civis.
Para concluir
Como afirma o historiador Harold Osborne, revoluções “nunca
estiveram longe do horizonte da história boliviana. Mas “revolução”
na Bolívia — como na maioria dos países latino-americanos —, não
deve ser pensada em termos análogos com a Revolução Francesa
ou a Revolução Russa. Mesmo num ‘mau’ período tem sido
normalmente um conflito limitado, quando muito ao ponto de ser
sangrento, entre aspirantes rivais ao poder, não envolvendo classes”
(Osborne, 1955: 62). Tristán Marof, com uma acepção similar, ao
definir revolução como um movimemento social, uma transposição
de classes, afirmava que o que sempre havia sido chamado de
revolução na Bolívia não passava de uma substituição de um governo
por outro similar, e que todas as chamadas revoluções naquele país
não haviam levado a nada. Revoluções na Bolívia eram produto de
democratas burgueses que se importavam com o povo por pouco
tempo (Liss, idem: 183).
A revolução boliviana de 9 de abril de 1952 é, indubitavelmente,
um marco na América Latina e teve importantes repercussões no
país, em que pese, cabe ressaltar, seu caráter claramente reformista.
Apesar de apelar para as massas, especialmente mineiros e
camponeses e, teoricamente, propor mudanças que melhorariam
a vida da população marginalizada, principalmente indígena e
agrária, aproximadamente 78% da população da Bolívia era rural —
, aumentando a participação dos índios e analfabetos, e fortalecer,
até certo ponto, os mineiros, com a nacionalização das minas de
estanho e da criação da COB, não foi acompanhada por
transformações econômicas ou técnicas profundas, e demonstrou
“ser apenas uma versão mais radical da política favorável à
redistribuição do poder político e, até certo ponto, do bem-estar no
interior de uma estrutura que fundamentalmente permanecia a
mesma” (Donghi, 1989: 256).
Que tipo de conclusões se pode tirar do período revolucionário?
Primeiro, houve a formação de uma pequena burguesia agrária
ligada ao mercado das cidades, que logo viria a ficar dependente de
investimentos externos. Ocorreu a individualização da produção,
ademais, fazendo com que as antigas comunidades indígenas muitas
vezes se dissolvessem, a partir da criação de um grupo de pequenos
proprietários. A forma de exploração do campesinato mudou,
passando para o mercado e o sistema financeiro. O projeto da
revolução, que pretendia uma industrialização que modernizasse a
economia boliviana, nunca ocorreu. Os militares, que perderiam
sua influência em teoria, voltaram a desempenhar um papel
preponderante na política do país, não só no projeto de
desenvolvimento no campo, aumentando seu contato e relação com
o campesinato, como também na política nacional. Além disso,
houve um incremento nas relações com os Estados Unidos e, com
o tempo, o aumento da dependência da Bolívia para com este país.
E quais foram os motivos que levaram à revolução? O grande
momento que antecedeu a revolução de 1952, e que abriu caminho
para que ela ocorresse, foi a Guerra do Chaco, contra o Paraguai.
Com uma economia demasiadamente dependente do mercado
internacional, um governo fraco e uma derrota na guerra, surgiram
as possibilidades de novas formas de atuação dos partidos, dos
movimentos sociais e dos próprios militares. A oligarquia latifundiária
boliviana era uma das mais atrasadas do continente. Atrelada aos
interesses econômicos dos Estados Unidos, entravava qualquer
iniciativa de mudanças na estrutura de produção do país. Os barões
do estanho visavam mais ao lucro próprio do que a melhoria da
nação como um todo. Esse grupo, portanto, teria que ser retirado
da cena política para que pudesse ocorrer a revolução. A
recuperação do exército e a manutenção e o gradual aumento do
papel político dos mineiros criou condições para preencher essa
lacuna aberta na vida política da Bolívia. Esses dois setores, assim,
tiveram fundamental importância na consolidação do cenário pré-revolucionário.
Os governos Toro e Busch, com seu experimento de “socialismo
militar”, foram exemplos de intentos antiimperialistas e estatizantes.
Tiveram influência nos acontecimentos posteriores, não só pela
política nacionalizante como também pela ampliação e abertura
dos movimentos estudantis, operários e camponeses. E, finalmente,
a criação e estruturação de vários partidos, como o MNR e o POR,
que colaboraram e, por vezes, lideraram os movimentos sociais e a
própria revolução.
Um dos fatores para que os militares pudessem tomar o poder na
Bolívia, em 1964, foi — além dos “escorregões” de Siles Zuazo e Paz
Estenssoro na condução político-econômica do país e da destruição
das “forças combativas” da esquerda, especialmente os mineiros — a
chegada de Lyndon Johnson à Casa Branca, e sua especial preocupação
em aumentar o apoio e fortalecer ainda mais as relações com os
militares do continente — incluídos aí os da Bolívia —, para contrapor
o “perigo” comunista representado pela Revolução Cubana, que
aumentava sua influência enormemente em diversos setores das
sociedades latino-americanas, tendo o Pentágono começado a exercer
cada vez mais influência na política externa norte-americana. Enquanto
era dado apoio às claras ao governo Paz Estenssoro, se fazia um trabalho
por trás das cortinas ajudando homens que poderiam melhor servir
aos interesses dos Estados Unidos. Estes homens em 1964 pareciam
ser o general René Barrientos, principal elemento dentro da Força Aérea,
e o general Alfredo Ovando Candia, comandante do exército. Com o
golpe restaurador promovido por eles, terminou naquele ano a
revolução.
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Luiz Bernardo Pericás - Professor; Doutor em História Econômica (USP). Publicou entre outros livros Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia. São Paulo, Xamã, 1997. O presente texto foi originalmente postado no site: http://www.pucsp.br/.
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