quinta-feira, 22 de outubro de 2009

ARTIGO - DUAS VEZES COM ALBERTO ... DOIS ANOS SEM ALBERTO - Pedro Vicente Costa Sobrinho


Primeira vez...


1964, abril, primeiro dia. Logo às sete da manhã, desse dia consagrado a mentira e o logro, eu tive que me deslocar a Recife, pois fora convidado para participar de reunião no Palácio das Princesas, sede administrativa do Governo do Estado. Lá, sob a coordenação da Secretaria Assistente do Governo, lideranças sindicais se reuniriam para discutir que medidas suas associações tomariam diante da grave situação política em que se encontrava o país, devido à rebelião militar desfechada na madrugada de abril pelas guarnições militares sediadas em Minas Gerais, sob o comando do general Olímpio Mourão. Não cheguei a tempo de participar de tal reunião, mas nos corredores de acesso ao encontro eu cruzei com muitos dos seus participantes, e no semblante atônito de cada um deles eu senti a marca do desespero. O que fazer? Estaca zero: nenhuma decisão fora tomada.

No trajeto que fiz cedinho de ônibus entre as cidades de Jaboatão e Recife, com passagem obrigatória pela Vila Floriano Peixoto, sede do décimo quarto Regimento de Infantaria, eu pude observar a intensa movimentação de tropas, com soldados que assumiam posições com suas armas no curso da rodovia que permeava a área do quartel. Nas ruas do Recife, ao deslocar-me da Praça da República em direção à Avenida Guararapes, eu observo que muitos caminhões descarregavam soldados naquele trajeto e eles se movimentavam em pelotões para ocupar as pontes próximas do Palácio do Governo. Isso aproximadamente às onze horas. Na estação central tudo parecia normal. No vagão de trem em que eu estava de volta para Jaboatão, o burburinho dos passageiros concorria com os gritos fortes do jornaleiro Zé Reis, que clamava e convocava a resistência dos paisanos ao golpe militar, e anunciava que o governador Arraes a essa altura já deveria estar como prisioneiro dos golpistas.

Em Jaboatão, eu pude de imediato verificar que a desorientação era generalizada. Na sede do Sindicato dos Ferroviários organizamos um pequeno comitê para coordenar a resistência, porém não se sabia a que e contra quem, pois as notícias eram desencontradas e prevaleciam os boatos. Pelo rádio, eu acompanhei o noticiário que divulgava as dúbias notas oficiais dos comandos militares de Pernambuco. Eles simplesmente anunciavam seu compromisso com a manutenção da ordem e de que estavam contra a subversão e, com essa estratégia, naturalmente eles alimentavam a dúvida e a incerteza. Para alguns companheiros mais ingênuos, entre eles o velho Correinha, militante do PCB, os militares estavam com o povo. Enquanto isso, o golpe corria a frouxo.

Ao cair da noite toda Jaboatão se encontrava sitiada. Muitas barreiras de arame farpado foram postas em pontes, ruas, estrada de ferro e rodovias de acesso à cidade; todos os lugares considerados estratégicos já estavam ocupados, inclusive os postos de gasolina e a estação ferroviária. Nada podíamos agora fazer, e nos recolhemos as nossas casas. O jornal da noite na televisão noticiou a detenção do Governador Arraes, e com isso o pânico e a incerteza aceleraram a debandada geral. Pela manhã, com a boataria acerca das prisões de lideranças operárias ditas subversivas, eu tive de procurar lugar para me esconder.

Os asilos foram vários; e passei a ocupar casas de amigos e parentes. Todos até que foram muito solícitos e solidários mesmo os que nada tinham haver com minhas posições e compromissos políticos. Mas, a medida que os dias se passavam, a minha situação se tornava incômoda e insustentável. Além do risco que corriam as pessoas que me abrigavam, eu ainda lhes dava despesas que elas não tinham condições de assumir. O agregado dava medo e era uma boca a mais à mesa.

Depois que haviam passado três ou quatro dias do golpe militar, meu pai esteve comigo, e falou-me que a polícia estivera por várias vezes em nossa casa; e no dia anterior ao nosso encontro havia ido ao quartel do quatorze R.I. sob a intimação, se me lembro, de um certo capitão Galdino. Da conversa com Galdino, que meu pai na sua santa ingenuidade considerou um sujeito de bem, sincero e disposto a ajudar, ficou então acertado que ele me levaria no dia seguinte pela manhã ao quartel do exercito para prestar alguns esclarecimentos. A coisa parecia ao meu pai muito simples e Galdino, sem muito esforço, soube ser convincente, e ainda teve o cinismo de assegurar que eu voltaria pra casa no mesmo dia; portanto, ao seu modo de ver, a coisa não teria maiores conseqüências. Recusei a boa oferta, e disse ao meu pai que não iria. O velho ficou constrangido, pois havia penhorado sua palavra, e ele era do tipo que quando assumia um compromisso nunca deixava de cumprir. Resisti ainda um pouco e disse-lhe que a situação não era tão tranqüila, mansa e ordeira como falara o tal Galdino. Há pouco havia assistido o noticiário na televisão e visto o velho Gregório Bezerra ser arrastado pelas ruas de Casa Forte. Nada adiantou, e na situação em que eu me encontrava quase não me restava nenhuma alternativa: não contava com um só tostão no bolso e estava na dependência de pessoas pobres como hospedeiros.

No dia seguinte pela manhã eu e o pai saímos juntos em direção a estação ferroviária de Jaboatão. Iríamos de trem, pois a Vila Socorro, onde se localizava o quartel, distava dali alguns quilômetros. A estação ferroviária, por sua vez, naquele horário da manhã era sempre muito movimentada com uma considerável aglomeração de pessoas na plataforma de embarque, pois Jaboatão já era à época uma cidade-dormitório, mesmo dispondo de três usinas de açúcar, fábrica de papel e oficina ferroviária de certo porte, grande parte de sua classe trabalhadora tinha em Recife seus empregos.

Ao aproximar-se o trem da plataforma de embarque fomos surpreendidos pelos gritos de pessoa que chamava com uma voz rouca pelo meu nome: Pedro... Mais que de pressa eu e meu pai fomos ao encontro dessa pessoa, pois, pelo timbre de voz, foi fácil reconhecer que era o poeta Alberto da Cunha Melo.

Alberto, como sempre, carregava com ele uma velha bolsa de cor preta e pesada por estar cheia de livros. A casa em que ele morava era muito próxima da estação e distava apenas uma quadra dali; todos os dias naquela mesma hora da manhã ele caminhava até a estação ferroviária e embarcava no trem em direção ao Recife onde trabalhava. À época, salvo engano, estava com emprego na Mesbla, cadeia nacional de lojas de departamentos que tinha sua filial em Recife, na Rua da Palma. Alberto exercia o cargo de correspondente comercial, pois redigia muito bem e era também um exímio datilógrafo. Em nossas conversas, ele sempre reclamou desse emprego: ofício maçante, inútil e óbvio de redator de cartas comerciais para clientes e fornecedores da empresa. “É trabalho de Sísifo. Sempre a mesma coisa, sem nenhum espaço para qualquer ação criativa; quando eu tento inovar pelas beiradas, o chefe intima-me a seguir pelo velho e puído riscado. O início e o fecho desse tipo de carta são uma camisa de força que dá pouca margem de manobra pelo meio. Agüento porque eu preciso.”

Alberto, ao aparecer naquele instante de penumbra, de certo modo nos alegrou. De rápido, ele me puxou pelo braço e nos conduziu para um canto mais livre e reservado da plataforma, e então perguntou: “O que é que vocês estão fazendo aqui? Pedro, você está sendo procurado. Muitas das pessoas que conhecemos já estão presas e com certeza foram torturadas. Nas oficinas da rede ferroviária uma verdadeira devassa. O mais recente caso havia sido a prisão de Manaçu, - líder ferroviário e amigo nosso que havia estudado em Moscou - e que, segundo se fala, foi muito espancado. Estive recentemente com o Padre Paulo Crespo, e ele me disse que muitos camponeses estavam presos e sofrendo sevícias. No Colégio Estadual correu o boato de que você e um grupo de estudantes comunistas haviam feito uma lista de pessoas que seriam eliminadas logo após a vitória da revolução vermelha; da lista constava o nome do gordo Eliakim, diretor da escola.” E concluiu: “E agora, para onde vocês estão indo?”

Meu pai procurou logo responder e contou-lhe a história do Galdino. Alberto não conteve o seu espanto e quase gritou de modo incisivo e contundente: “Nem o senhor nem Pedro devem ir ao quartel; esse capitão safado é um mentiroso.” E com bons argumentos logo convenceu meu pai e a mim da loucura que iríamos cometer. E ainda disse ao meu pai: “Seu Pedro, esse capitão abusou de sua boa fé; não fique constrangido pelo não cumprimento da palavra penhorada, porque não se faz trato com bandido.”

Daí então, eu, ele e o pai voltamos para plataforma da estação, e aguardamos a chegada do próximo trem. O destino de agora por diante seria outro, só que eu não sabia qual, pois não tinha lugar para onde ir. Durante o trajeto entre Jaboatão e Recife, com certeza iríamos juntos encontrar outro caminho, pois como disse o grande poeta Antonio Machado: “Caminhante não há caminho,/ o caminho se faz ao caminhar.”

Se em última instância não devo a vida nesse crucial momento ao poeta Alberto da Cunha Melo, com certeza, graças a sua oportuna e decisiva ação, ele impediu de que eu fosse preso e torturado pelos facínoras de plantão nos cárceres do DOPS de Pernambuco. Fato de igual natureza veio a acontecer 10 anos depois, e Alberto mais uma vez foi meu anjo da guarda, mas isso é uma outra história.

Assim era meu bom e inesquecível companheiro Alberto da Cunha Melo.


Nota: A charge que ilustra esse texto é de autoria do poeta e sociólogo Sebastião Vila Nova





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