Começo a resenhar a tese de doutoramento “A luta pela terra e Igreja Católica no Vale do Acre e Purus (1970-1980)”, de Sandra Cadiolli Basílio (professora da Universidade Federal do Acre, mestre pela PUC-SP, e doutora pela UFPE em História) pelo fim: a bibliografia. Através desta, senti de imediato o enorme trabalho que a pesquisadora teve em compulsar, organizar e analisar todo esse material. Sei, por experiência própria, a dificuldade que o pesquisador defronta ao realizar um trabalho sobre a Amazônia, e, sobretudo, quando sua pesquisa se particulariza ainda mais, e essa realidade a ser abordada centra-se no Acre. Arquivos precários, se é que se pode falar de arquivos; Universidade jovem, ainda em fase de consolidação, mas é bom que se ressalve, com um grupo de pesquisadores que de modo audacioso e sistemático tem procurado resgatar a história da região e do seu povo.
A autora, portanto, está de parabéns nesse aspecto, uma rica bibliografia: uma boa literatura descritiva e de cunho teórico sobre uma época já credencia o seu trabalho, e revela sua seriedade e competência com relação ao seu objeto de estudo.Vamos ao texto.
De imediato, quero dizer que me senti surpreso logo quando a autora anunciou o seu referencial teórico: o velho marxismo, hoje tão vilipendiado, cuja bibliografia clássica já é de difícil circulação até nos sebos. Está fora de moda, apesar de a sociedade dos homens não ter ainda encontrado solução para os grandes problemas que ele, o marxismo, apontou. Como disse Bobbio: “o comunismo histórico fracassou, não nego, mas os problemas permanecem: os mesmos problemas para os quais a utopia comunista chamou a atenção, e que garantiu serem solucionáveis”. Daí então, resta-nos navegar no seu texto para verificar em que o seu marxismo ajudou a compreender o real.
No primeiro capítulo, a autora faz um bom trabalho de reconstituição histórica, até exaustivo, a meu ver, pois o Acre nos primórdios de sua formação é sobejamente revisitado. Mas é bom que se realce: a pesquisadora demonstrou que soube usar a bibliografia disponível, organizando bem a exposição: 100 anos se transformaram, na sua alquimia, em horas de leitura; leitura sem enfado, até para os que já conhecem com certo rigor toda essa história.
No segundo capítulo, e mais no capítulo terceiro, o contexto do seu objeto de estudo foi sendo reconstruído e certamente melhor exposto e analisado. Não observei maiores lacunas nessa travessia longa e sinuosa. Exigir maior detalhamento, novos dados, talvez fosse até exagero, pois o seu objeto é a Igreja e a luta pela terra. Mas seria bom sugerir (ver p. 98 e 99) que a autora, a partir de um certo momento, já fosse destacando a presença da Igreja nos movimentos sociais, pois os locais-sede de fundação dos sindicatos, e também grande parte de suas assembléias foram instalados em prédios da Igreja: colégios, salões paroquiais, e a própria catedral. Era a Igreja já encarnada na luta do povo: quer dizer, dos oprimidos.
Na página 110, faz-se necessária melhor explicitação do que é visão interacionista e colaboracionista da Igreja na primeira carta pastoral, pois pode parecer um certo patrulhamento quanto à ação da instituição eclesial, e até mesmo uma cobrança injustificada à combativa igreja acreana.
Outra coisa: eu gostaria de sugerir que a autora abrandasse um pouco sua análise, seu rigor marxista com relação à posição da Igreja nos anos pré-1964, pois tratava-se de uma luta ideológica: de quem venceria a quem? No caso dos comunistas, se vencessem, com certeza, seriam impiedosos, e muitos padres, se não fossem ao paredón, seriam encarcerados. Esse não foi todavia o comportamento da Igreja, pois logo dois anos depois de instalado o regime militar, muitos dos seus bispos e padres passaram a se recompor com as forças de oposição à ditadura, inclusive com os comunistas.
A autora, com uma clareza meridiana, demonstra em seu trabalho que Medellin é o desaguadouro natural das contradições acumuladas da Igreja com relação aos governos autoritários de países da América Latina, e que a liberdade para as práticas religiosas não está dissociada da democracia e da luta contra as desigualdades sociais brutais existentes nesses países.
Outro aspecto que quero destacar no seu trabalho, pois me chamou muito a atenção, é que a autora fez muito bem em descartar a chamada discussão ampla e teórica no que diz respeito à Teologia da Libertação, quase sempre feita e reiterada nos estudos dos marxistas. Coisa que considero anacrônica, sobretudo aquela que dissocia a Igreja como instituição da prática tida como avançada de alguns setores dessa mesma Igreja, e daí por diante. A autora foi direto ao assunto, passando a analisar uma situação concreta: a Igreja do Acre e a realidade do Acre. E como essa Igreja se comportou nesse contexto prenhe de violência e conflitos.
Mesmo me dando por satisfeito, pois a tese que norteia o seu trabalho fica cabalmente demonstrada nas 80 páginas finais do seu texto: pois revela que o apoio da Igreja e suas comunidades eclesiais de base foi fundamental para a organização da luta pela terra no Acre e, que, sem esse apoio, a resistência teria sido mais difícil e vulnerável; recomendo, todavia, caso a autora tencione transformar seu estudo em livro, que ela acrescente ainda informações quanto aos meios utilizados pela Igreja para conseguir chegar aos trabalhadores e conscientizá-los da necessidade da organização para resistir e denunciar quanto aos desmandos dos fazendeiros. Para concluir, eu quero confessar que senti falta do movimento indígena no seu texto: os índios também lutaram pela terra, e a Igreja foi fundamental na organização dos seus movimentos de resistência contra os “paulistas”. Feitas essas observações, eu quero dizer que o seu trabalho, com certeza, se constituirá em mais uma referência obrigatória para o estudo da história acreana.
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