sábado, 15 de dezembro de 2012

Memórias. Varal das Lembranças: O que não esqueci sobre a presença do Jogo do Bicho em minha vida - Pedro Vicente Costa Sobrinho


Face de Calendário com os bichos do Jogo
 
A minha convivência com o Jogo do Bicho começou desde meus  cinco anos, quando então eu passei a me interessar pelas conversas de meus familiares sobre esse jogo de azar.  Meus avós e tios faziam, vez por outra, a fezinha no grupo, dezena, centena ou milhar na banca do bicheiro ou ponto de cambista mais próximo. O avô Chico Antonio era mais assíduo, pois jogava quase todos os dias, e lembro-me, ainda, de sua persistência de longa duração, pois ele durante dez anos fez o mesmo jogo no bicho jacaré, cujo número de grupo é 15, mas sem sucesso. A tia Neném era exímia intérprete de sonhos associados à sorte no jogo de bicho e sempre costumava dar palpites às pessoas que a consultavam. O pai, por sua vez, só muito raramente fazia sua fezinha, e para que isso viesse acontecer o palpite tinha que ser muito convincente para induzi-lo a tentar a sorte no bichinho indicado; nunca soube que ele sequer uma só vez tem sido premiado.

Em Pernambuco, igualmente aos vizinhos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, o jogo de bicho era tolerado pelas autoridades, apesar da proibição advinda de lei puritana contra jogos de azar promulgada em 1946, pelo governo federal, à época Eurico Gaspar Dutra, que fechou cassinos e pôs na ilegalidade o jogo do bicho. Na cidade de Jaboatão havia várias bancas do jogo de bicho, se bem lembro, duas delas estavam instaladas no Beco de Colônia, e outra  na  Rua Visconde de Rio Branco, onde ficavam os prédios da Coletoria Estadual e da Agência dos Correios. Não sei dizer se essas bancas eram filiais das grandes casas de jogo de Recife ou se suas apostas eram bancadas com recursos próprios de bicheiros locais. Os pontos do jogo do bicho cobriam toda cidade, instalados em porta de barbearias, alfaiatarias, bares, bodegas e até em farmácias. O ponto era equipado com pequeno móvel com gaveta, cadeira, lápis e o talão: bloco de papel com carbono para emissão da via para o apostador, era o popular pule, único e exclusivo documento  válido para o  recebimento do prêmio resultante do acerto na aposta. O individuo que tomava conta do ponto era chamado de cambista, e geralmente na sua banca havia um letreiro com o nome da casa para qual recebia as apostas.  Exceto aos sábados e domingos, diariamente às cinco horas da tarde ficava exposto à vista do público na banca do bicho, numa tabuleta com números móveis, o resultado do sorteio do dia sob a forma do milhar, na ordem do primeiro ao quinto prêmios. Os dois últimos números do milhar definiam o bicho sorteado do dia, por exemplo: 5204 corespondia ao bicho avestruz, pois seu grupo era 01, 02, 03 e 04. O avô Chico Antonio fazia seu jogo de primeiro ao quinto no bicho jacaré cujo número era 15, portanto seus grupos eram 57, 58, 59 e 60, que correspondiam também as suas dezenas. O jogo podia ser feito no grupo, dezena, centena e milhar. Não tem erro, o barão João Batista Viana de Drummond caprichou no seu feitio e engenhosidade quando em 1892  inventou o jogo.

Barão João Batista Viana Drummond, criador do Jogo do Bicho
 
Lembro-me ainda que, vez por outra, Tia Neném me incumbia de fazer sua aposta. Arriscava pouco dinheiro e geralmente no grupo, motivada sempre por algum pressentimento ou sonho enigmático que ela julgasse premonitórios e , mediante sua  interpretação,  lhe indicassem  o nome do bicho para que ela viesse a tentar a sorte. Perdia quase todas  suas apostas, mas quando de raro acertava este fato servia de motivo para vangloriar-se de sua vocação de adivinho. Interessante, tia Neném nunca tratava a moeda por cruzeiro, sempre era um cruzado, dois cruzados, mil réis, dois mil réis e assim por diante. Eu ficava até então confuso ao lidar com dinheiro, e graças ao pai eu me orientei, pois ele me explicou através do manuseio de cédulas de um, dois, cinco, dez e cinquenta, cem, duzentos, quinhentos e mil cruzeiros e suas respectivas efígies: Marquês de Tamandaré, Duque de Caxias, Visconde de Rio Branco, Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Princesa Isabel, Dom Pedro II, Dom Pedro I, Dom João VI e Pedro Álvares Cabral, os valores que esses cruzeiros correspondiam na antiga moeda. Em moeda somente me recordo a de 50 centavos  com a efígie de Eurico Dutra. Lembro-me de ele ainda ter me mostrado uma cédula de mil cruzeiros, bem novinha, com todo o cuidado, pois ela era guardada dentro de um envelope e escondida numa gaveta fechada no guarda roupa, era sua poupança em face de despesas com doenças ou momentos de desemprego.

Durante a infância em Jaboatão só conheci um bicheiro, Odilon Ferreira da Luz, vereador, empresário, dono do Cine Guarany, e pessoa muito bem conceituada na cidade. Era presidente do Partido Social Progressista (PSP), e havia disputado mais de uma vez o cargo de prefeito de Jaboatão. Meu pai havia feito  vários móveis sob encomenda para ele, que, além de freguês, era  considerado um amigo. Suponho, ainda, que menor de idade era proibido de fazer apostas nas bancas de jogo de bicho. Nas muitas vezes que fiz o jogo pra Tia Neném eu me limitei apenar em ser o portador da aposta, pois me dirigia a um ponto que ficava numa carvoaria bem próxima, um ou dois quarteirões de sua casa, e simplesmente entregava tudo prontinho ao cambista, pessoa conhecida e de sua confiança.
Verso do Calendário com propaganda da Banca de Bicho
 
1956, eu fui morar em Ribeirão.  No Grupo Escolar Padre Américo Novaes, fui colega de Severina, jovem que trabalhava como secretária de um bicheiro, seu Diogo, dono da banca A Vencedora, que ficava nas proximidades da Praça da Matriz, precisamente na Rua Caetano Monteiro, vizinha à loja Sempre Viva, e quase defronte a única sorveteria da cidade. Na época havia duas bancas de jogo de bicho em Ribeirão: Aliada e A vencedora. As duas bancas eram muito bem instaladas e detinham o controle de todos os  pontos do jogo espalhados pelo município; certamente, as bancas eram concorrentes, porém nunca ouvi comentários  de que houvesse registro de conflitos aparentes entre elas pelo domínio de áreas.

1958, já matriculado na Escola Técnica de Comércio de Ribeirão, no primeiro ano do Curso Comercial Básico, meu pai resolveu instalar um ponto de jogo de bicho em sua pequena mercearia a pedido de seus fregueses. Disse-me, então, que eu ficaria responsável pela feitura das apostas, e o recolhimento dos valores que seriam entregues na banca Aliada, gerenciada por Almir Andrade, que era, então, seu usual parceiro no jogo de bilhar, no bar Ponto Chic, e também seu conterrâneo. Almir era sócio de seu irmão Diniz Andrade, um dos diretores do Clube Intermunicipal do Ribeirão, sociedade recreativa da elite local. O jogo de bicho não me era de todo estranho, e de rápido aprendi o seu manuseio. Fez-me ver meu pai, que o dinheiro auferido da comissão  seria de todo me  entregue para custear a mensalidade da escola e pros ingressos ao cinema. Eu abria o ponto diariamente às sete horas da manhã, recolhia as apostas até às 13,30 horas; somava as folhas do talonário, conferia o dinheiro arrecadado e levava até a banca Aliada, que ficava na Rua Major Moura, quase defronte as oficinas do gerador de luz, e próxima a Agência dos Correios; as apostas eram entregues pontualmente às duas horas. Às cinco horas, eu ia buscar o resultado para informar aos meus fregueses, se alguém tivesse sido sorteado eu já trazia o prêmio em dinheiro e aguardava que o ganhador se apresentasse com o respectivo pule. Não se exigia nenhuma outra identificação de parte do apostador, tudo era feito com base na confiança recíproca. Cabe salientar que se houvessem prêmios de alto valor, estes seriam pagos diretamente na matriz. Durante o tempo em que fui cambista não me lembro de que alguém tenha sido sorteado em meu ponto de jogo. O dinheiro que ganhava com a comissão das apostas sequer dava pra custear a mensalidade da escola, e por não valer a pena meu pai fechou o ponto.

Cambista anotando aposta no bicho
 
Os dois bicheiros, tanto Almir quanto seu Diogo, eram personas da maior respeitabilidade na cidade. Nunca ouvi ninguém alcunhá-los de marginais ou contraventores. Os prêmios das duas bancas tinham igualmente como referência, salvo engano, os números sorteados pela Loteria Estadual de Pernambuco.  Nunca  ouvi alguém dizer que eles deixaram de pagar os prêmios ganhos pelos apostadores. Do irmão de Almir, Diniz de Andrade, na cidade dizia-se: que recebia o dinheiro dos clientes sorrindo e pagava cantando, tal era segurança na honestidade que os apostadores depositavam naquele cidadão. Os banqueiros, como eram chamados na cidade, davam emprego a muita gente, e aos serviços dos seus funcionários remuneravam com salários fixos ou comissões; os cambistas, por sua vez, recebiam por comissão, este, então, era o meu caso. Os bicheiros não se constituíam, a meu ver, em caso de polícia ou contravenção, e não sei informar se  à época recolhiam qualquer forma de imposto à prefeitura ou ao estado. Almir era um tipo esguio, de aparência tranquila e dócil, por várias vezes o encontrei jogando bilhar ou sinuca com meu pai, a quem chamava de mestre Pedro. Anos depois já em meu exílio em Natal, reencontrei Almir, que era potiguar, e estava com o firme propósito de instalar uma banca de bicho na cidade. Encontro rápido,  numa sala de sinuca que eu frequentava  à Rua Princesa Isabel.  Não sei do seu destino, pois não voltei a vê-lo. Seu Diogo, por sua vez, era uma figura imponente, calvo, gordo, portador de uma discreta barriga e aparentemente também um homem tranquilo. Quase sempre estava com um grosso charuto à boca, e era frequentador assíduo do Bar e casa de bilhar e sinuca de seu  Isaque, defronte ao Cine Arte, do qual também era seu dono. Diogo era notoriamente conhecido como pixote, pois não jogava bem sinuca, mas era um perdedor persistente. Às vezes saia limpo de grana do bar, bolsos vazios, pois costumava perder todo dinheiro em apostas.

Lembro-me, ainda, que seu Diogo residia na Rua João Pessoa, principal via pública da cidade; sua casa ficava entre a farmácia e drogaria Santana e o edifício sede da Prefeitura Municipal de Ribeirão. Ele foi o primeiro residente da cidade a instalar aparelho receptor de televisão em sua casa, que, ora, passou a atrair a atenção de muitas pessoas, curiosas em se inteirar dessa novidade tecnológica recentemente chegada a Pernambuco, através de dois canais geradores de imagens: TVs Jornal do Comércio e Diário de Pernambuco. Nunca imaginei que Almir e seu Diogo fossem contraventores, homens perigosos, e também nunca guardei remorsos por ter sido cambista de jogo de bicho. Cabe realçar, todavia, que eu nunca apostei sequer um tostão no jogo do bicho, e raras vezes em que eu me motivei a tentar a sorte fiz minhas apostas na loteria esportiva.

Anos depois, vim a assistir filmes sobre o jogo do bicho e os bicheiros do Rio de Janeiro, entre eles, eu destaco: Amei um Bicheiro, de Paulo Vanderley e Jorge Iléli; Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos com base numa peça de Nelson Rodrigues;  O homem da capa preta, de Sérgio Rezende, que trata da biografia de Tenório Cavalcanti,   e o jogo do bicho nele aparece como uma das atividades empresariais do já morto poderoso deputado federal e chefe político do município de Duque de Caxias, que inclusive foi candidato a governador do estado da Guanabara, e veio a ser cassado pelo golpe milititar de 1964. Com o perpassar dos anos eu passei a ter uma visão bastante crítica a respeito do Jogo de Bicho, pois verifiquei que essa atividade marginal era o modelo mais bem elaborado do crime organizado no país. Esses contraventores cresceram e se multiplicaram como células cancerígenas, e conseguiram estender os seus tentáculos a quase todas as atividades marginais lucrativas no território brasileiro: dos bingos e caça níqueis ao tráfico de drogas, da pirataria ao contrabando de tudo, inclusive armas. Durante a ditadura militar muitos bicheiros financiaram a repressão política e se aliaram a contumazes e cruéis torturadores da polícia e das forças armadas, aos quais deram proteção e guarida quando  o já apodrecido  regime estava m ruínas.  Os bicheiros também montaram empresas de fachada e até elegeram parlamentares para acobertar suas atividades marginais. O caso recentemente em pauta envolve o famigerado Carlinhos Cachoeira, corruptor de funcionários públicos e financiador de políticos filiados aos partidos mais importantes do país: PSDB, DEM, PMDB e PT. Pasmem, controlava e tinha a seu serviço um senador da república e procurador estadual, Demóstenes Torres. E que, segundo notícias de jornais, Cachoeira também tem sob seu controle uma grande empresa do ramo da construção civil, que é detentora de contratos milionários com a administração pública, estadual e federal. Mesmo diante desses fatos, eu continuo sendo favorável à legalização dos jogos de azar, pois esse tipo de Lei de exceção, a exemplo da Lei seca no s EUA, nunca funcionou em país algum, somente contribuiu para o aumento de foras da lei e da corrupção sem controle do aparato policial e de servidores públicos. 

 
Nota: Por convenção dos bicheiros de Natal os prêmios ora obedecem a seguinte tabela: A aposta no grupo com valor de um real tem como prêmio 18 reais, na dezena, 70 reais; na centena, 500 reais, e no milhar 5.000 mil reais. Em Recife, os bicheiros compensam melhor seus apostadores. Na banca Caminho da Sorte para cada um real os prêmios são estes: grupo 20 reais; dezena 80 reais; centena 800 reais; milhar 8.000 reais e o TD (terno de dezenas) 12.000 reais.

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