A minha convivência com
o Jogo do Bicho começou desde meus cinco
anos, quando então eu passei a me interessar pelas conversas de meus familiares
sobre esse jogo de azar. Meus avós e
tios faziam, vez por outra, a fezinha no grupo, dezena, centena ou milhar na
banca do bicheiro ou ponto de cambista mais próximo. O avô Chico Antonio era
mais assíduo, pois jogava quase todos os dias, e lembro-me, ainda, de sua
persistência de longa duração, pois ele durante dez anos fez o mesmo jogo no
bicho jacaré, cujo número de grupo é 15, mas sem sucesso. A tia Neném era
exímia intérprete de sonhos associados à sorte no jogo de bicho e sempre
costumava dar palpites às pessoas que a consultavam. O pai, por sua vez, só
muito raramente fazia sua fezinha, e para que isso viesse acontecer o palpite
tinha que ser muito convincente para induzi-lo a tentar a sorte no bichinho
indicado; nunca soube que ele sequer uma só vez tem sido premiado.
Em Pernambuco,
igualmente aos vizinhos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, o jogo de
bicho era tolerado pelas autoridades, apesar da proibição advinda de lei
puritana contra jogos de azar promulgada em 1946, pelo governo federal, à época
Eurico Gaspar Dutra, que fechou cassinos e pôs na ilegalidade o jogo do bicho.
Na cidade de Jaboatão havia várias bancas do jogo de bicho, se bem lembro, duas
delas estavam instaladas no Beco de Colônia, e outra na Rua Visconde de Rio Branco, onde ficavam os prédios da Coletoria
Estadual e da Agência dos Correios. Não sei dizer se essas bancas eram filiais
das grandes casas de jogo de Recife ou se suas apostas eram bancadas com recursos
próprios de bicheiros locais. Os pontos do jogo do bicho cobriam toda cidade,
instalados em porta de barbearias, alfaiatarias, bares, bodegas e até em
farmácias. O ponto era equipado com pequeno móvel com gaveta, cadeira, lápis e
o talão: bloco de papel com carbono para emissão da via para o apostador, era o
popular pule, único e exclusivo documento válido para o
recebimento do prêmio resultante do acerto na aposta. O individuo que tomava
conta do ponto era chamado de cambista, e geralmente na sua banca havia um
letreiro com o nome da casa para qual recebia as apostas. Exceto aos sábados e domingos, diariamente às
cinco horas da tarde ficava exposto à vista do público na banca do bicho, numa
tabuleta com números móveis, o resultado do sorteio do dia sob a forma do
milhar, na ordem do primeiro ao quinto prêmios. Os dois últimos números do
milhar definiam o bicho sorteado do dia, por exemplo: 5204 corespondia ao bicho
avestruz, pois seu grupo era 01, 02, 03 e 04. O avô Chico Antonio fazia seu jogo
de primeiro ao quinto no bicho jacaré cujo número era 15, portanto seus grupos eram
57, 58, 59 e 60, que correspondiam também as suas dezenas. O jogo podia ser
feito no grupo, dezena, centena e milhar. Não tem erro, o barão João Batista
Viana de Drummond caprichou no seu feitio e engenhosidade quando em 1892 inventou o jogo.
Barão João Batista Viana Drummond, criador do Jogo do Bicho |
Lembro-me ainda que,
vez por outra, Tia Neném me incumbia de fazer sua aposta. Arriscava pouco
dinheiro e geralmente no grupo, motivada sempre por algum pressentimento ou
sonho enigmático que ela julgasse premonitórios e , mediante sua interpretação, lhe indicassem o nome do bicho para que ela viesse a tentar
a sorte. Perdia quase todas suas apostas,
mas quando de raro acertava este fato servia de motivo para vangloriar-se de
sua vocação de adivinho. Interessante, tia Neném nunca tratava a moeda por
cruzeiro, sempre era um cruzado, dois cruzados, mil réis, dois mil réis e assim
por diante. Eu ficava até então confuso ao lidar com dinheiro, e graças ao pai
eu me orientei, pois ele me explicou através do manuseio de cédulas de um,
dois, cinco, dez e cinquenta, cem, duzentos, quinhentos e mil cruzeiros e suas
respectivas efígies: Marquês de Tamandaré, Duque de Caxias, Visconde de Rio
Branco, Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Princesa Isabel, Dom Pedro II, Dom
Pedro I, Dom João VI e Pedro Álvares Cabral, os valores que esses cruzeiros
correspondiam na antiga moeda. Em moeda somente me recordo a de 50 centavos com a efígie de Eurico Dutra. Lembro-me de ele
ainda ter me mostrado uma cédula de mil cruzeiros, bem novinha, com todo o
cuidado, pois ela era guardada dentro de um envelope e escondida numa gaveta
fechada no guarda roupa, era sua poupança em face de despesas com doenças ou
momentos de desemprego.
Durante a infância em
Jaboatão só conheci um bicheiro, Odilon Ferreira da Luz, vereador, empresário, dono do Cine Guarany, e
pessoa muito bem conceituada na cidade. Era presidente do Partido Social
Progressista (PSP), e havia disputado mais de uma vez o cargo de prefeito de Jaboatão.
Meu pai havia feito vários móveis sob
encomenda para ele, que, além de freguês, era
considerado um amigo. Suponho, ainda, que menor de idade era proibido de
fazer apostas nas bancas de jogo de bicho. Nas muitas vezes que fiz o jogo pra
Tia Neném eu me limitei apenar em ser o portador da aposta, pois me dirigia a
um ponto que ficava numa carvoaria bem próxima, um ou dois quarteirões de sua casa,
e simplesmente entregava tudo prontinho ao cambista, pessoa conhecida e de sua
confiança.
Verso do Calendário com propaganda da Banca de Bicho |
1956, eu fui morar em
Ribeirão. No Grupo Escolar Padre
Américo Novaes, fui colega de Severina, jovem que trabalhava como secretária
de um bicheiro, seu Diogo, dono da banca A Vencedora, que ficava nas
proximidades da Praça da Matriz, precisamente na Rua Caetano Monteiro, vizinha à loja Sempre Viva, e quase defronte a única sorveteria da cidade. Na época havia
duas bancas de jogo de bicho em Ribeirão: Aliada e A vencedora. As duas bancas eram
muito bem instaladas e detinham o controle de todos os pontos do jogo espalhados pelo município; certamente,
as bancas eram concorrentes, porém nunca ouvi comentários de que houvesse registro de conflitos
aparentes entre elas pelo domínio de áreas.
1958, já matriculado na
Escola Técnica de Comércio de Ribeirão, no primeiro ano do Curso Comercial
Básico, meu pai resolveu instalar um ponto de jogo de bicho em sua pequena
mercearia a pedido de seus fregueses. Disse-me, então, que eu ficaria
responsável pela feitura das apostas, e o recolhimento dos valores que seriam
entregues na banca Aliada, gerenciada por Almir Andrade, que era, então, seu
usual parceiro no jogo de bilhar, no bar Ponto Chic, e também seu conterrâneo. Almir
era sócio de seu irmão Diniz Andrade, um dos diretores do Clube Intermunicipal
do Ribeirão, sociedade recreativa da elite local. O jogo de bicho não me era de
todo estranho, e de rápido aprendi o seu manuseio. Fez-me ver meu pai, que o
dinheiro auferido da comissão seria de
todo me entregue para custear a
mensalidade da escola e pros ingressos ao cinema. Eu abria o ponto diariamente
às sete horas da manhã, recolhia as apostas até às 13,30 horas; somava as
folhas do talonário, conferia o dinheiro arrecadado e levava até a banca Aliada,
que ficava na Rua Major Moura, quase defronte as oficinas do gerador de luz, e próxima a Agência dos Correios; as apostas
eram entregues pontualmente às duas horas. Às cinco horas, eu ia buscar o
resultado para informar aos meus fregueses, se alguém tivesse sido sorteado eu
já trazia o prêmio em dinheiro e aguardava que o ganhador se apresentasse com o
respectivo pule. Não se exigia nenhuma outra identificação de parte do
apostador, tudo era feito com base na confiança recíproca. Cabe salientar que
se houvessem prêmios de alto valor, estes seriam pagos diretamente na matriz. Durante
o tempo em que fui cambista não me lembro de que alguém tenha sido sorteado em
meu ponto de jogo. O dinheiro que ganhava com a comissão das apostas sequer
dava pra custear a mensalidade da escola, e por não valer a pena meu pai fechou
o ponto.
Cambista anotando aposta no bicho |
Os dois bicheiros,
tanto Almir quanto seu Diogo, eram personas da maior respeitabilidade na
cidade. Nunca ouvi ninguém alcunhá-los de marginais ou contraventores. Os
prêmios das duas bancas tinham igualmente como referência, salvo engano, os
números sorteados pela Loteria Estadual de Pernambuco. Nunca ouvi alguém dizer que eles deixaram de pagar
os prêmios ganhos pelos apostadores. Do irmão de Almir, Diniz de Andrade, na
cidade dizia-se: que recebia o dinheiro
dos clientes sorrindo e pagava cantando, tal era segurança na honestidade que
os apostadores depositavam naquele cidadão. Os banqueiros, como eram
chamados na cidade, davam emprego a muita gente, e aos serviços dos seus
funcionários remuneravam com salários fixos ou comissões; os cambistas, por sua
vez, recebiam por comissão, este, então, era o meu caso. Os bicheiros não se
constituíam, a meu ver, em caso de polícia ou contravenção, e não sei informar se
à época recolhiam qualquer forma de
imposto à prefeitura ou ao estado. Almir era um tipo esguio, de aparência
tranquila e dócil, por várias vezes o encontrei jogando bilhar ou sinuca com
meu pai, a quem chamava de mestre Pedro. Anos depois já em meu exílio em Natal,
reencontrei Almir, que era potiguar, e estava com o firme propósito de instalar
uma banca de bicho na cidade. Encontro rápido, numa sala de sinuca que eu frequentava à Rua Princesa Isabel. Não sei do seu destino, pois não voltei a
vê-lo. Seu Diogo, por sua vez, era uma figura imponente, calvo, gordo, portador
de uma discreta barriga e aparentemente também um homem tranquilo. Quase sempre
estava com um grosso charuto à boca, e era frequentador assíduo do Bar e casa
de bilhar e sinuca de seu Isaque, defronte
ao Cine Arte, do qual também era seu dono. Diogo era notoriamente conhecido
como pixote, pois não jogava bem sinuca, mas era um perdedor persistente. Às
vezes saia limpo de grana do bar, bolsos vazios, pois costumava perder todo
dinheiro em apostas.
Lembro-me, ainda, que
seu Diogo residia na Rua João Pessoa, principal via pública da cidade; sua casa
ficava entre a farmácia e drogaria Santana e o edifício sede da Prefeitura
Municipal de Ribeirão. Ele foi o primeiro residente da cidade a instalar
aparelho receptor de televisão em sua casa, que, ora, passou a atrair a atenção
de muitas pessoas, curiosas em se inteirar dessa novidade tecnológica
recentemente chegada a Pernambuco, através de dois canais geradores de imagens:
TVs Jornal do Comércio e Diário de Pernambuco. Nunca imaginei que Almir e seu Diogo
fossem contraventores, homens perigosos, e também nunca guardei remorsos por
ter sido cambista de jogo de bicho. Cabe realçar, todavia, que eu nunca apostei
sequer um tostão no jogo do bicho, e raras vezes em que eu me motivei a tentar
a sorte fiz minhas apostas na loteria esportiva.
Anos depois, vim a
assistir filmes sobre o jogo do bicho e os bicheiros do Rio de Janeiro, entre
eles, eu destaco: Amei um Bicheiro, de Paulo Vanderley e Jorge Iléli; Boca de Ouro,
de Nelson Pereira dos Santos com base numa peça de Nelson Rodrigues; O homem
da capa preta, de Sérgio Rezende, que trata da biografia de Tenório Cavalcanti,
e o jogo do bicho nele aparece como uma das atividades empresariais do já morto
poderoso deputado federal e chefe político do município de Duque de Caxias, que inclusive foi candidato a governador do estado da Guanabara, e veio a ser cassado pelo golpe milititar de 1964. Com o perpassar dos anos eu
passei a ter uma visão bastante crítica a respeito do Jogo de Bicho, pois
verifiquei que essa atividade marginal era o modelo mais bem elaborado do crime
organizado no país. Esses contraventores cresceram e se multiplicaram como
células cancerígenas, e conseguiram estender os seus tentáculos a quase todas
as atividades marginais lucrativas no território brasileiro: dos bingos e caça
níqueis ao tráfico de drogas, da pirataria ao contrabando de tudo, inclusive
armas. Durante a ditadura militar muitos bicheiros financiaram a repressão
política e se aliaram a contumazes e cruéis torturadores da polícia e das
forças armadas, aos quais deram proteção e guarida quando o já apodrecido regime estava m ruínas. Os bicheiros também montaram empresas de
fachada e até elegeram parlamentares para acobertar suas atividades marginais.
O caso recentemente em pauta envolve o famigerado Carlinhos Cachoeira,
corruptor de funcionários públicos e financiador de políticos filiados aos partidos
mais importantes do país: PSDB, DEM, PMDB e PT. Pasmem, controlava e tinha a
seu serviço um senador da república e procurador estadual, Demóstenes Torres. E
que, segundo notícias de jornais, Cachoeira também tem sob seu controle uma
grande empresa do ramo da construção civil, que é detentora de contratos milionários
com a administração pública, estadual e federal. Mesmo diante desses fatos, eu
continuo sendo favorável à legalização dos jogos de azar, pois esse tipo de Lei
de exceção, a exemplo da Lei seca no s EUA, nunca funcionou em país algum,
somente contribuiu para o aumento de foras da lei e da corrupção sem controle
do aparato policial e de servidores públicos.
Nota: Por convenção dos bicheiros de
Natal os prêmios ora obedecem a seguinte tabela: A aposta no grupo com valor de
um real tem como prêmio 18 reais, na dezena, 70 reais; na centena, 500 reais, e
no milhar 5.000 mil reais. Em Recife, os bicheiros compensam melhor seus apostadores. Na banca Caminho da Sorte para cada um real os prêmios são estes: grupo 20 reais; dezena 80 reais; centena 800 reais; milhar 8.000 reais e o TD (terno de dezenas) 12.000 reais.
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