domingo, 24 de julho de 2011

Memórias - Varal de Lembranças: Os Livros de minha iniciação - Adolescência (2) / Pedro Vicente Costa Sobrinho

 A Divina Comédia - Dante Alighieri


Arriba Jaboatão!


No ano de 1959 a vida de nossa família começou a complicar-se. Os negócios do meu pai já não estavam mais dando certo: marcenaria fechada por falta de encomendas, mercearia praticamente falida que o levou a passar adiante o ponto, e a pequena chácara com plantio de legumes, hortaliças e mandioca, essa também só vinha dando prejuízos; além disso, mais dois irmãos haviam nascido e a família crescera para nove pessoas, todas dependentes da renda em baixa do velho. Eu, que já começara a trabalhar de balconista na firma de José Gomes para custear a mensalidade do ginásio, no meio do ano, comecei, então, a contribuir também para fazer face às despesas de casa e a sobra para o ingresso do cinema, compra de livros e revistas escasseou, quase zerando; até a trivial sopa de feijão tomada antes de ir ao ginásio no bar de Diogo foi cortada. Lembro-me ainda que eu sequer tivesse dinheiro para comprar no início do ano o vestuário novo do colégio, e assim continuei a usar a velha e desbotada farda do ano anterior e, por causa disso, eu me senti impedido de participar do desfile anual da semana da pátria que, em Ribeirão, era realizado no dia 11 de Setembro para coincidir com a data dos festejos de aniversário da cidade. O padre Mousinho, diretor do colégio, não sei por quem veio a saber o que estava ocorrendo, e perguntou-me de chofre, por que eu não iria desfilar? Mesmo envergonhado, confessei-lhe o motivo e ele, então, sob a alegação de que eu era um dos bons alunos do colégio, custeou-me o fardamento, e disse-me ainda que, de sua parte, eu merecera esse gesto. A situação de pauperização da família foi se agravando, o cerco de dificuldades ampliou-se e antes que a penúria batesse a nossa porta meu pai decidiu cair fora da cidade e sua palavra de ordem foi: Arriba Jaboatão!

No meio do ano de 1960, fui pra casa de tia Neném, sendo então o primeiro da família a sair de Ribeirão. Apesar de minhas notas, por ser meio de ano, eu não consegui vaga na escola pública, e tive que enfrentar sem dinheiro um curso pago. Pra custear o tal curso, que era na Escola Técnica de Comércio de Recife, conhecida como “Cabaré de Soares”, eu improvisei na casa de tia Neném uma escolinha para recuperar alunos de curso primário com nota baixa, e também preparatória aos exames de admissão ao ginásio. O bairro em que morava era muito pobre e a coisa não deu certo, e, por não ter como pagar a escola, o remédio foi abandonar o curso e deixar penduradas as mensalidades atrasadas.

Logo ao chegar à casa de tia Neném eu aproveitei pra ler ou reler o que havia de revistas e alguns livros que ainda restavam do espólio do meu padrinho. Afora as revistas, ainda encontrei e li os livros: Olhai os lírios do campo, Clarissa e Música ao longe, de Érico Veríssimo; e Ford, o rei dos automóveis baratos, de Upton Sinclair. Acheguei-me pouco depois a um vizinho, o peralta Miltom cabeção, criatura grotesca, esnobe e pernóstica que se dizia jornalista; e, apesar de tudo, dele eu consegui alguns livros emprestados, entre os quais “A divina comédia”, de Dante, belíssima edição, com capa dura em três volumes, ilustrada por Gustavo Doré; e biografias medíocres de mulheres famosas pela beleza, sedução e volúpia: Messalina, Cleópatra, Lucrécia Bórgia, Madame Pompadour etc., e de monstros da crueldade como Calígula e Nero, tudo isso escrito por M. A. Camacho. Meu dileto amigo Sebastião Ricardo, por sua vez, abasteceu-me do jornal do PCB “Novos Rumos” e de literatura política; entre outros livros ele franqueou-me “O pão, o feijão e as forças ocultas e Marxismo: “A varinha de Condão”, de Jocelyn Brasil; O que sabe você sobre petróleo? Senhor Deus dos desgraçados! (coletânea de artigos), e Assim falou Julião, de Gondin da Fonseca.

A demora foi curta, pois em meados de 1961 a família já estava novamente reunida. Meu pai conseguiu da Prefeitura de Jaboatão o transporte para trazer nossa mudança, e alugou uma casa na Rua Domingos Teotônio, defronte de onde tia Neném morava; daí então, eu voltei ao leito da família e me reencontrei com meus livros que para trás havia largado ao sair de Ribeirão.

Durante quase dois anos e meio eu não freqüentei escola; e então minhas universidades ora passaram a ser outras: livros que me caiam nas mãos, convívio com meus amigos Niel, Zuca e Dauri e, sobretudo, com Sebastião Ricardo. E mais importante, no ano de 1962 eu reencontrei Alberto da Cunha Melo, que conhecia desde menino porém superficialmente. Agora o tempo era outro e desde então ele tornou-se meu melhor amigo; a partir daí, naturalmente, os meus interesses culturais foram direcionados para um outro norte, pois Alberto orientou-me a ler poesia moderna e a boa literatura nacional e estrangeira; ir ao teatro e a concertos de música erudita; e, até mesmo, a escolher melhor o que assistir no cinema. Alberto também me levou a conviver com o grupo de pretensos e ousados intelectuais jovens da aldeia Jaboatão que fazia o jornalzinho alternativo “Dia Virá”: Paulo José, Raul Gadelha, Jackson Vieira, José Luis, Edward e Severino Bernardino. Recordo-me ainda de reuniões e encontros de parte desse grupo nas mesas de um boteco que ficava nos fundos do Cine Teatro Samuel Campelo, onde se ouvia música, papeava-se sobre poesia, política, livros, cinema e até a pauta do Dia Virá, às vezes, lá era antes discutida, tudo regado a cerveja e cachaça branquinha forradas com ovos cozidos e muito tomate com sal.

Envolver-me com a turma do jornalzinho “Dia Virá” foi pra mim muito proveitoso. Comecei, então, a redigir e publicar meus primeiros textos, pois assumi a responsabilidade pela coluna sindical que antes era feita por Paulo José, que assinava com o pseudônimo Pajosi. Pouco depois, outro grupo, por gravidade natural de interesses, foi atraído e enturmou-se comigo e Alberto; dessa turma de colegas do Colégio Estadual de Jaboatão (CEJ), faziam parte Jaci Bezerra Lima, Domingos Alexandre, Ricardo, Glauco, Carlos Marx e duas belas garotas de quem esqueci os nomes. Desse grupo, com exceção das garotas e de Alberto, todos os outros vieram a integrar a OB estudantil do PCB em Jaboatão. Cabe ainda curiosamente realçar que dessa turma quase todos eram poetas, e pelo menos três deles vicejaram e pouco depois vieram a constituir o núcleo inicial da conhecida Geração 65. Às vezes, flagro-me a indagar: por que  eu não fui mau poeta? O mérito dessa boa ação eu atribuo aos meus amigos Jaci Bezerra Lima e Alberto da Cunha Melo, pois foram eles que evitaram o meu assédio contra a poesia. Lembro-me como se fosse hoje do que aconteceu. Eu tinha assumido ora a direção cultural do Grêmio Estudantil do Colégio Estadual de Jaboatão, e decidi junto com o grupo improvisar um jornalzinho por nome Vanguarda Estudantil; como criador e um dos redatores do jornaleco eu escrevi  um dos pequenos artigos da edição, e até ousei cometer um poema. Ainda bem que o submeti ao crivo crítico de Alberto e Jaci; eles leram o meu pálido atentado poético e me devolveram a coisa inteiramente modificada; não aceitei publicar aquilo, pois certamente não era mais o meu “poema”; desde então eu desisti por toda minha vida de ousar fazer poesia, e resolvi esforçar-me para, pelo menos, me tornar um bom leitor.No quase agora, graças ao milagre da internet, Rosa Matilde, contemporânea no CEJ, enviou-me cópia de exemplar do primeiro e único número que circulou do tal jornaleco, e, com isso, fez-me preencher algumas lacunas da memória, reavivando em mim lembranças quase apagadas ou perdidas, que sobreviviam apenas como nostalgia de um tempo distante. 

Lembro-me ainda que o grosso da literatura que lia de autores nacionais, principalmente Jorge Amado, José Lins do Rego, Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Dionélio Machado, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Rachel de Queirós, Gonçalves Dias e Castro Alves, os livros sempre me foram emprestados por amigos, pois Jaboatão não tinha biblioteca pública, sequer livraria. O Grêmio Lítero-Recreativo de Jaboatão que dispunha de pequena estante de livros, por sua vez, só abria aos sábados, e suponho que também não emprestava as obras do seu acervo.



De Literatura estrangeira, eu só não me esqueci de haver lido “O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, que já estava no meu fiteiro de livros, pois esse romance fora adquirido pelo reembolso postal por influência de sua versão em novela radiofonizada; os livros de Emile Zola: Nana, A besta humana e Germinal; O fio da navalha, de Somerset Maugham;  O lobo do mar e Contos dos mares do sul, de Jack London, desse último, a conferir, só me lembro de um conto: Koolau, o rei; A metamorfose, de Kafka; A guerra dos mundos, de H. G. Wells; O Egípcio, de Mika Waltari, a este eu também fui levado pelo filme, cujo ator era Victor Mature; Judeus sem dinheiro, de Michael Gold; e, por fim Cela 2455, corredor da morte, A Lei quer que eu morra, e o romance O garoto era um assassino, todos de Caryl Chessman.


Judeus sem Dinheiro - Michael Gold

De livros avulsos eu me lembro de ter comprado na Livraria Ramiro, em Recife, duas ou três gramáticas de língua portuguesa de Artur de Almeida Torres, dois volumes de aritmética e álgebra de Antonio Trajano; um dicionário de português, e outro de língua inglesa de Oswaldo Serpa; e manuais de língua inglesa indicados por Otoniel Ricardo (Niel), meu orientador “ad hoc” para línguas estrangeiras.

A literatura política, por sua vez, foi ocupando espaço cada vez maior no meu tempo disponível à leitura, principalmente depois de minha adesão ao Partido Comunista Brasileiro. Na pequena Livraria do PCB, que ficava próxima da redação do jornal “A Hora” no Edifício Vieira de Carvalho, eu comprei muitos livros marxistas, entre eles eu li Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e a Origem da família, da propriedade privada e do estado, de Friedrich Engels, este último me levou à tragédia grega; O manifesto Comunista, Salário, preço e lucro, Trabalho assalariado e capital e o 18 Brumário de Luiz Bonaparte, Carlos Marx; O Estado e a Revolução, Esquerdismo, doença infantil do comunismo e O trabalho do Partido entre as massas (coletânea de artigos), de V. I. Lênin. Três livros de cunho marxista eu faço questão de destacar pelo papel que tiveram na minha formação política e ideológica: A formação do Partido Comunista Brasileiro, de Astrogildo Pereira, Concepção materialista da história, de Plekhanov, e, sobretudo, Os princípios fundamentais de Filosofia, de Georges Politzer, tradução e prefácio de Ailton Quintiliano, este último certamente consolidou a tendência que eu já tinha para o ateísmo.

De outra coleção de livros de educação política que eu não esqueci foram os “Cadernos do Povo Brasileiro”, da Editora Civilização Brasileira. Comprei e li muito deles: Que são as ligas camponesas? Francisco Julião; Quem é o povo no Brasil? Nelson Werneck Sodré; Quais são os inimigos do povo? Teotônio Júnior; Que é a revolução brasileira? Revolução e contra-revolução no Brasil, ambos de Franklin de Oliveira; Quem faz as leis no Brasil? Osny Duarte Pereira; Que é imperialismo? Eduard Bailby; Como seria o Brasil socialista? Nestor de Holanda. Na Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, ainda os três livros do Violão de rua: poemas para liberdade, inclusive em um deles eu li o poema “O operário em construção”, de Vinícius de Morais.

1964 foi pra mim o ano que não terminou. No finzinho de fevereiro Davi Capistrano, então secretário político do PCB em Pernambuco, conversou comigo e disse-me que o CE por sugestão sua havia me indicado para realizar curso de formação de quadros em Moscou, na União Soviética, e que isso era muito importante para a política do PCB. Pensei um pouco e naturalmente recusei o convite sob alegação de que não podia deixar o trabalho que ora havia iniciado como funcionário da Delegacia da Secretaria Assistente do Governo Miguel Arraes, com abrangência nas cidades de Caruaru, Vitória de Santo Antão, Gravatá, Bezerros, Moreno e Jaboatão; mas, em outro momento, eu certamente aceitaria com toda gratidão a honrosa escolha. Davi silenciou, mas disse-me ao sair que se o partido entendesse como tarefa só me restava disciplinadamente cumprir. Não mais voltei a tratar com Davi sobre o assunto, o Golpe Militar enterrou minha ida a Moscou, pôs-me em fuga e empurrou-me para a neblina e trevas da clandestinidade, convertendo assim o que seria um sonho distante num amargo pesadelo.



Para concluir essa parte das lembranças do que não me esqueci sobre os livros de minha iniciação, eu quero fazer um registro todo especial de um livro que me marcou profundamente e que eu vim a ler no apagar das luzes dos fins de março antes de mergulhar nas trevas do Golpe Militar de 1964, trata-se da novela “Mário e o Mágico, de Thomas Mann; numa edição com capa de papelão, páginas amareladas e furinhos de traças, adquirida num sebo de calçada em Recife. Ao ler este livro, além de sua sobeja conotação política que veio a ser admitida pelo autor 16 anos depois de sua publicação, constatei que eu, igual ao Mário, sofri a mesma humilhação praticada por um mágico, que me hipnotizou, fez-me de idiota e me expôs ao ridículo, sob vaias, risos e galhofas, diante da servil e sádica platéia de seu circo mambembe. Diferentemente do desfecho da novela de Thomas Mann, na qual Mário reagiu a desfeita e fulminou o algoz com dois tiros, o Cipollla de Jaboatão escapou ileso. Mas isto é matéria da memória para outra ocasião.

Um comentário:

Anônimo disse...

Li hoje seu texto e identifiquei-me com o seu conteúdo, pois em minha juventude li as mesmas obras que você leu. Militei no PCB em Itu, onde nasci e residi até 1968, quando então vim a Cesário Lange para lecionar, permanecendo aqui até hoje, aos 72 anos de idade. Fui preso em 1964 e tornei-me dirigente no movimento estudantil, quando cursei a Faculdade de História em Sorocaba. Na cidade onde resido agora, fundei o PMDB, participei de várias eleições municipais e tornei-me prefeito duas vezes. Abandonei a militância política por não aceitar o roteiro corrupto dos atuais políticos, e também porque meus impulsos anarquistas orientaram-me a admitir que ninguém me representa. A política de poder é sempre corporativista e não representa a população. Não cito meu nome porque não sei lidar com internet e não paguei a taxa exigida para identificar-me. Um abraço fraterno, camarada. Belas trajetórias as que percorremos.