Akira Kurosawa |
“Eu estava nu na bacia. O local em volta era
vagamente iluminado e enquanto eu me encharcava de água quente, balançava a
bacia segurando-me nas bordas. Na parte mais baixa, a bacia balançava entre
duas tábuas inclinadas. Eu ouvia o barulho da água que se chocava quando a
bacia se movia de um lado para a outro. Aquilo devia estar muito interessante
para mim. Balancei a bacia com toda a força. De repente, ela virou. Tenho uma
lembrança viva do estranho sentimento de insegurança e surpresa que
experimentei naquele instante, da sensação na pele causada pelas tábuas e
escorregadias. Lembro-me de alguma coisa que brilhava intensamente, quando
olhei para cima.”
Essa é a mais remota lembrança da infância de
Akira Kurosawa, de acordo com o relato do próprio cineasta na sua autobiografia
(Gama no Abura, Iwanami Shoten,
Tóquio, 1984). A recordação pulsa como a cena de um filme ou a aquarela do
banho de uma criança, delicadamente pintada com um espanar de água que sugere
as gravuras coloridas do pintor Hiroshige, num Japão – ou “Cipango”, para o
viajante veneziano Marco Polo – ainda arcaico enquanto o século dezenove rolava
para o vinte como um rolo de fumaça de trem subindo na paisagem de inverno aos
pés do monte Fuji.
Tudo é impressivo e
delicado, quando se trata desse diretor nascido há 100 anos, que quis ser
pintor e terminou pintando com uma câmera que pôs o cinema do seu longínquo
país em contato com as telas do mundo. No cinema, Kurosawa pintou aquarelas e
gravuras, animadas a buril, de samurais hieráticos e modernos marginais da
Tóquio aniquilada pela vergonha da derrota – numa nação capaz de levar a honra
nacional e, mesmo, a individual, desde o domínio patriótico e moral até o
limite da monomania. Foi assim com o suicídio público do escritor Yukio
Mishima, arrasado pela alma nacional rendida aos americanos (segunda ele, “com
desonra”).
Mishima foi um
nacionalista perturbado por visões que o aproximaram de um perfil neofascista,
mas Akira (que também tentou o suicídio) foi um japonês capaz de compreender
“honra” de outro modo, entre os códigos nipônicos antigos e o desespero do
Japão do típico lumpen de cidade
grande, de megalópole próxima – como é Tóquio – dos cenários da ficção
científica de mistura com templos de silêncios recônditos, jardins em miniatura
e modernas gueixas ainda exercendo a sua profissão sempre confundida com outra (pela grosseria ocidental)...
Depois de vermos o
pequeno Kurosawa nu (detalhe: ele tinha apenas um ano, e a recordação ficou,
entre os vapores do banho na bacia, remotíssimo), mudemos a perspectiva para
diante do túmulo do cineasta, com as datas marcadas à maneira japonesa 黒澤
明
– nascido em 23 de março de 1910 e falecido em 6 de setembro de 1998”.
Poderia ser acrescentado: Aqui
repousa o Homem da Alma Dividida entre Oriente e Ocidente, Samurais e Yakuzas,
Cerimônias do Chá e Pregões da Bolsa de uma capital enlouquecida de néons
acesos noite e dia, piscando como os olhos de um velho dragão herdeiro de algum
mundo de repente sem lugar no século da Bomba.
QUEM FOI?
Nascido no seio de uma família de
samurais que ficaram sem emprego quando suas espadas se tornaram anacrônicas –
como os seis tiros dos pistoleiros do Oeste americano –, iriam se passar muitos
anos, desde os banhos da infância, para surgir o homem, inquieto, a trabalhar
com as tábuas escorregadias da memória.
Antes disso, ele tentou ser aceito
numa escola de arte, porém foi rejeitado talvez de modo menos traumático do que
o reservado a um cabo austríaco (e aquarelista medíocre) que viu ruir a
esperança de sobreviver vendendo inofensivas paisagens de inofensivos campos...
Seja como for, em 1936
o futuro diretor de Trono Manchado de
Sangue terminou por ler, um dia, anúncio de vaga para assistentes de
direção de cinema. Ele foi lá, e o aceitaram, não pelos pendores de pintor
amador, mas pela experiência de espectador de cinema: desde garoto, via filmes
como se necessitasse deles para respirar o perfume dos crisântemos.
Aos 33 anos, Kurosawa
dirigiria seu primeiro filme – Sanshiro Sugata
(ou “A saga do judô”) –, que foi alvo de crítica de militares rígidos,
porém agradou ao público. O êxito em escala internacional, no entanto, só viria
com Rashomon (1951), filme baseado
num conto original de Ryunosuke Akutagawa e que conquistou o Leão de Ouro do
Festival Internacional de Cinema de Veneza, no mesmo ano.
Pronto. Akira Kurosawa
estava lançado mais para além de Tóquio e Kioto. Certamente, o seu talento não
era maior do que os de Ozu e de Mizoguchi, gênios também oriundos de uma
cultura ainda injustamente ignorada (cinematograficamente falando), naquela
altura. E a pedra de toque do reconhecimento dela não vai ser senão o sucesso
de filmes como Shichinin no samurai (“Os
Sete Samurais”, de 1954), uma saga do Japão feudal que chegou a influenciar
John Sturges, mestre de westerns do
outro lado do mundo. Diretamente inspirado nos sete samurais de Kurosawa,
surgiriam os pistoleiros sturgianos do clássico Sete homens e um destino (1960), inaugurando o filão dos remakes transpostos para cenários completamente
diversos.
Cineasta reflexivo,
esse japonês que aqui recordamos transitou pelo ambiente internacional de
filmes em muitos idiomas e propostas etc, como um sofisticado diretor quase
silencioso nos “sets”, porém bem humorado e articulado nas entrevistas
coletivas. Em tais ocasiões, era possível ouvi-lo (tive o privilégio, em Roma)
a explicar coisas mais objetivas e práticas do que a vaga teoria de bares
enfumaçados dos cigarros da nouvelle
vague. Exemplo:
“A tarefa dos
iluminadores exige muita criatividade. Um iluminador realmente bom tem seu
próprio plano, embora naturalmente ainda precise discuti-lo com o cameraman e o diretor. Mas se ele não
desenvolve o seu próprio conceito, seu trabalho não vai muito além de colocar
luz sobre toda a estrutura montada. Eu penso, por exemplo, que o método
corrente de iluminação dos filmes coloridos é errado. Para compor as cores,
toda a estrutura é inundada de luz. Sempre digo que a luz deve ser tratada como
em um filme em preto e branco, sejam as cores fortes ou não, de forma a deixar
as sombras aparecerem.”
Aqui, Akira Kurosawa
está querendo dizer (atenção, jovens diretores brasileiros) que a Cor não aboliu o império da sombra, no cinema,
ou melhor, que cores têm funções diversas, e são linguagem, forma, vocábulo
fílmico, ao invés de apenas “estarem alí”, impressas na película sem exame.
Noutro momento, suas
meditações deixaram críticos fascinados, em Cannes:
“Não me lembro quem
disse que criação é memória... (...) Minhas próprias experiências e as diversas
coisas que li permanecem em minha lembrança e tornam-se a base sobre a qual
crio algo novo. Eu não poderia partir do nada. Talvez ninguém possa, é preciso
um arranco, como ao escrever roteiros – quando se deve, antes, partir de alguma
cena impressa na lembrança, alguma idéia que bóia como um calhau num rio
lamacento. Sim, também é necessário o estudo dos grandes romances e das grandes
peças teatrais que o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são
grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? Que grau de paixão o autor
teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de impor para modelar os
personagens e os fatos da maneira como fez? Deve-se ler inteiramente, a ponto
de se compreender todas estas coisas. Deve-se também assistir aos grandes
filmes”...
E Kurosawa os assistiu,
desde a adolescência, quando seu irmão mais velho tornou-se narrador
profissional de filmes mudos (isso
existia – no peculiar “Cipango”, lógico); tendo acesso às salas onde o
irmão “narrava” os filmes, o jovem Akira anotava todos os filmes que via. De
graça.
No seu relato
autobiográfico, é longa a relação lista das obras que ele considerava
fundamentais na sua formação, e entre elas está um filme franco-brasileiro: Rien que les heures (1926), de Alberto
Cavalcanti dizendo “presente!” numa lista de nomes de ouro: John Ford, Jean
Renoir, Charles Chaplin, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Carl Dreyer, Luis
Buñuel etc.
ORIENTE VERSUS OCIDENTE
Anos depois, chegaria a vez de Akira se sentir meio “deixado de lado”,
quando as críticas ao seu “ocidentalismo” – para alguns – seriam somadas à sua
[má] fama de perfeccionista até os mínimos detalhes, estourando orçamentos...
e, por uma única ocasião, levado á tentativa de suicídio, em 1971 (para total
surpresa dos amigos e familiares), quando se viu afetado pela crise na
indústria cinematográfica japonesa, quando “um filme de Kurosawa” significava
um orçamento já proibitivo para um cinema que deixara de ser a a novidade,
descoberta preferida de uma Europa encantada com obras ao mesmo tempo fincadas
em tradições e numa modernidade difícil pem se tratando do orgulhoso Império
posto de joelhos, num dia, e levantado para se “americanizar”, no outro.
O cinema – e a vida – de Kurosawa refletem esse impasse não da forma mais
direta e nem com fixação num passado que não poderia voltar (como lamentam
cultores dos filmes de samurais desempregados e perdidos, atingidos no seu
código de honra e humilhados até a necessidade de mendigar restos de glória e
comida).
Nesse sentido foi que Akira considerou seu vigésimo-oitavo filme como “a
sua obra definitiva”, isto é, Ran, o
filme mais caro do cinema japonês (11 milhões de dólares, em 1985), e talvez o
mais devastadoramente desiludido, expressando a contrafação trágica, de matiz
shakespereano, da qual Kurosawa foi próximo por afinidade e admiração do Bardo
acima de todos os poetas do Ocidente. Uma das melhores adaptações
cinematográficas de Macbeth foi
assinada pelo diretor nipônico – que transportou a peça inglesa para o
dramático clima “kabuki” de belo Kumonosu-jô
(1957).
Deu mais do que certo.
Sem admiradores
fervorosos do peso de um Francis Ford Coppola e um George Lucas, Kurosawa não
teria realizado seus últimos filmes. Sob a influência (quase pressão) desses
dois “kurosawamaníacos”, a Twentieth Century Fox se dispôs a negociar a
aquisição dos direitos de distribuição internacional de Kagemusha (“A sombra do Samurai”, 1980) e dos demais filmes da uma
“fase final de A. K” mergulhada em controvérsia, porque apoiada na fortaleza – “proibida”, ideologicamente,
para alguns dos seus colegas japoneses – que o colocou definitivamente em
associação com o poder de Hollywood.
Já declinando em sua
aura de prestígio nacional – na razão diretamente proporcional à dependência da
aprovação pela máquina americana
(acidamente criticada etc) – o diretor iria pagar caro pela “mãozinha” generosa
dos Coppolas & Lucas de estrondosos sucessos de bilheteria como O poderoso Chefão e Guerra nas estrelas. Talvez só eles pudessem realmente ajudá-lo,
com os recursos de quem se entendia “muito bem” com os gerentes financeiros da
maior indústria cinematográfica do planeta – para a qual Akira Kurosawa
trabalhou, nos seus últimos anos. Afinal de contas, ele podia ter a certeza de
haver consolidado mais do que uma carreira difícil numa cinematografia hoje
rendida à imitação, infelizmente. Afirmando seu mundo pessoal em conexão com o
Japão profundo, sem dúvida que ele obteve ampla ressonância como o diretor
japonês – o único! – mais ou menos situado como Federico Fellini está para a
história do cinema italiano.
Mesmo que se
“redescubra” um Valerio Zurlini – ou um Francesco Rosi – debaixo da nuvem
espessa de admiração pelo cineasta de Rimini, o fato é que o nome alçado ao
panteão nem sempre é o do mais sutil ou o do mais complexamente talentoso
dentre diretores que se tornaram “míticos” como um Antonioni, um Visconti, um
Bergman, um Buñuel, um Ford, um Lang e um
黒澤 明,
o tímido senhor de óculos escuros que, há cem anos, nascia num país de samurais
errantes e cerejeiras como as que cercam o seu túmulo.
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