sábado, 2 de abril de 2011

Artigos - Retalhos de Lembranças: Esboço de perfil de um certo Chico Soares - Pedro Vicente Costa Sobrinho



Muitos Franciscos cruzaram meu caminho, como amigos ou apenas colegas que passaram; dois deles, no entanto, com ferro em brasa puseram marcas indeléveis em minha curtida trajetória de vida. O primeiro Francisco, de Jaboatão, chamava-se Chico Antonio, meu avô por linhagem materna: foi pai de minha mãe Francisca. Desse Chico, apesar do meu silêncio há mais de meio século tenho muito que falar, mas eu deixo essa conversa para outra hora, certamente com mais tempo para estender seu perfil no meu varal de retalhos de lembranças.

O Francisco do momento, o segundo, faleceu no Acre há pouco tempo, chamava-se Chico Soares; do seu nome também constava Santos, quase uma redundância no sobrenome a realçar suas qualidades de homem simples, humilde, bom, cordial e terno que, certamente, fixarão sua presença na memória de todos aqueles que por sorte com ele conviveram. Para esse esboço de perfil que eu faço do velho Chico, eu levo em conta a relevante advertência do poeta Alberto da Cunha Melo: “A morte deveria ser um território interditado às palavras. A perda de um amigo é algo tão delicado e indizível que as palavras, com seus dedos pesados, são capazes apenas de profanação.”

Conheci o velho Chico Soares no começo dos anos noventa; mais com precisão em 1991, quando do início de minha relação afetiva e conjugal com uma de suas filhas. Até aí eu posso dizer que esses fátuos encontros tratavam-se de mera aproximação entre pessoas que ainda não se haviam cruzado com certa permanência nos corredores da vida. Com o perpassar dos anos, apesar de que durante algum tempo eu estive dele separado por quase um milhar de léguas, as nossas relações foram se estreitando e nos tornamos desde já bons amigos. Cabe ainda realçar que Chico Soares foi meu consultor para certas comidas e frutas que faziam parte do cardápio do mundo rural acreano. O meu retorno ao Acre em 2007, com minha permanência em Rio Branco por três anos, teve o mérito de aproximar e aprofundar nossas relações de amizade e assim nos tornar amigos para sempre.

O velho Chico Soares chegou ao Acre no ano de 1943. Veio com sua família, pai, mãe e alguns irmãos, do Nordeste; da histórica cidade de Icó, situada nos sertões do Ceará. Como quase todos os “severinos” do nordeste, eles migraram para Amazônia como decorrência natural do sistema fundiário e das relações de trabalho arcaicos dominantes no vasto mundo agrário nordestino, e tambem tangidos pelas secas que assolaram o seu Ceará nos três primeiros anos de 1940. O êxodo de sua família teve como destino o Acre, ela foi trazida para os seringais do Alto Acre, na condição de soldado da borracha durante a vigência da segunda guerra mundial, e fixada na antiga Vila  Brasília, hoje cidade de Brasiléia. Seu Chico tinha sete anos à época. Nada eu sei de sua vida no seringal, e também desconheço o que motivou a vinda dele e de sua família para se instalar como colonos na periferia rural de Rio Branco. E como agricultor ele permaneceu durante muitos anos, cultivando sua pequena propriedade com lavoura de subsistência e criatório de pequeno rebanho leiteiro. Nos fins da década de 1970 ele começou uma nova vida. Arranjou emprego na Universidade Federal do Acre para prestar serviço no Parque Zoobotânico; e desde então mudou-se para Estação Experimental, bairro à época considerado periferia da cidade de Rio Branco.

Seu Chico no limiar dos seus setenta anos ainda tinha uma compleição física robusta. Corpo atlético esculpido e crestado por muitos anos a fio dedicados ao trato da terra sob o sol, frio e chuvas nos verões e invernos acreanos. No seu rosto eram raras as rugas. Os seus olhos verde- azulados eram tranqüilos e penetrantes. Sempre parecia esboçar um riso leve, sutil e contido entre os lábios. Falava pouco e rápido, com palavras entrecortadas por um certo silêncio que muitas vezes tornavam difícil sua compreensão. Mariana, minha filha, às vezes comentava: “não consigo entender muita coisa que vovô está a dizer”. Seu Chico fazia uso da fala com um universo muito limitado de palavras; universo vocabular curto em decorrência do seu reduzido tempo de permanência na escola e muitos anos de vida no campo.

Durante meu convívio com seu Chico, eu pude ouvir histórias interessantes sobre sua vida narradas por seus amigos e familiares, algumas até hilárias e uma dessas é que eu faço questão de contar. No seu trabalho na Universidade, por muito tempo na mata do Parque Zoobotânico, ele foi mordido três vezes por cobras das mais venenosas: coral, cascavel e jararaca, também conhecida no Acre como “pico-de-jaca”. Escapou fedendo graças ao soro antiofídico que lhe foi a tempo aplicado. Em decorrência disso muitas mazelas foram herdadas e permaneceram no seu corpo. Mas o fato curioso é que seu Chico adquiriu certa imunidade ao veneno de cobra e ao ser picado por insetos ou mordido por pequenos animais, eles vinham por sua vez a ter morte súbita e sem aparente explicação.

Seu Chico herdou dos seus pais a vocação patriarcal. Ao se mudar para o Raimundo Melo, bairro novo que resultou de ocupação de área devoluta situada à margem esquerda do Igarapé São Francisco, ele construiu sua nova moradia e comprou vários lotes em seu entorno ou proximidades para alojar seus filhos. Antes ele havia repartido em lotes para seus filhos um grande terreno que herdara de seu pai. A sua intenção era reuni-los na colônia Juarez Távora, no entanto, só Aninha, sua primogênita, ocupou seu lote e foi pra lá residir. Sua casa acolhia naturalmente seus familiares; mas além disso estendia essa acolhida aos seus muitos amigos e mesmo desconhecidos, alguns às vezes até abusavam de sua generosa hospitalidade e transformava sua casa em ponto de apoio ou morada provisória. Na sua mesa sempre havia lugar para mais um prato à servir um visitante de última hora. Tudo isso era feito com sua anuência e sincera boa vontade. Lembro-me de Maria, jovem completamente ensandecida pela loucura que freqüentava regularmente sua casa. Seu Chico a recebia de modo carinhoso e com respeito; dava-lhe comida e pedia as suas noras que lavassem os seus trastes de roupas,dessem-lhe banho, cortassem e penteassem seus piolhentos cabelos. Nunca deixou de presentear quem o visitava; as vezes com pequenas prendas sem nenhum valor aparente mais repletas de significado afetivo. Eu também tive a sorte de ser escolhido para receber dele algumas prendas: muitos vidros de molho de pimenta que ele mesmo fazia, e as vezes frutas cultivadas em seu sítio: biribá, cupuaçu, araçá boi etc. Sua irmã Marinete contou que, da última vez que o visitou, dele recebeu um parafuso, pois era a única coisa que ele dispunha para presentear naquele momento, e disse-lhe ainda que aquele simples objeto talvez pudesse algum dia vir a ser-lhe útil. No dia do seu velório ela em prantos retirou da bolsa e mostrou o tal parafuso.

Nos últimos dois anos antes do seu ritual de passagem para o outro mundo, Chico Soares, já aposentado, tomou a decisão de retornar ao trabalho no campo. Para isso, ele adquiriu através de troca um lote de 50 hectares num assentamento agrícola do INCRA, próximo ao V em Porto Acre. Seus filhos foram contra o desejo bucólico tardio do velho; mas a coisa não funcionou, pois a teimosia de Chico Soares era muito forte e toda resistência oposta foi de pronto vencida. Ele gostava do trabalho duro no mato; e os quase vinte anos que passara em vgílias noturnas como guarda de um prédio escolar da Universidade o deixara amunhecado e triste; e agora não podia deixar de escapar esse instante, pois essa era a hora e a vez de voltar a começar de novo.

De início, ele adquiriu uma dezena de cabeças de gado; refez o pasto que já existia, fez consertos na casa de farinha e construiu pequena casa em madeira para lhe servir de moradia compartilhada com o seu caseiro. A sua nova saga teve, no entanto, uma curta duração de pouco mais de dois anos. Alquebrado, com sua saúde fragilizada pela malária, dengue, mordidas de cobra, doença de chagas que contraíra no curso de sua vida, mais cirurgia de próstata com aplicações de rádio e quimioterapia, hipertensão e ainda diabetes; pelo acúmulo de tudo isso o velho Chico Soares teve sua forte resistência sertaneja vencida , vindo a falecer as dez horas do dia 10 de março de 2011, vitimado por pancreatite aguda e conseqüente falência múltipla de órgãos.

O velório e o enterro de Chico Soares foram acompanhados pelos seus muitos amigos e familiares. Não pude comparecer a sua cerimônia fúnebre, mas nesse esboço de perfil eu quero registrar a sensação de espanto que teve um dos seus amigos presentes, com relação ao expressivo número de pessoas que fora dele se despedir. Para sempre se foi mais um homem simples e bom, mas fica sua lembrança que será cultivada na memória de todos aqueles que conviveram com esse certo Chico Soares.

 
JEAN, CHICO SOARES, SOCORRO COSTA







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