quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ARTIGOS - CELSO GOMES ESCREVE SOBRE A OBRA LITERÁRIA DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA: LEITE DERRAMADO




 
Chico Buarque lançou o Leite derramado pela Companhia das Letras. Li em alguns cadernos literários que seria seu quarto livro. No entanto, lembro-me que o autor já havia publicado peças de teatro nos anos sessenta e setenta que caíram no esquecimento. Comprei o romance em São Pedro da Serra e aproveitei o friozinho de maio para lê-lo. Dei cabo da tarefa em pouco mais de duas horas.

O romance tem problemas, mas antes vou expor uma pequena análise do Chico como autor, considerando apenas esta segunda fase, tendo em vista que o próprio escritor não se refere aos seus livros anteriores e, tampouco, corrige a crítica especializada quando os esquece. Estorvo Estorvo, primeiro desta nova leva, tem um título bastante sugestivo e, confesso que tive muita dificuldade para terminá-lo. O romance é um dos mais chatos que li na vida e olha que não leio pouco. O personagem principal é incapaz de sentir os fatos da vida, estando interessado apenas em observá-los sem envolvimento emocional, bem como é incapaz de reagir com inteligência mediana às situações as quais é submetido pelo narrador do romance.

O fato de o livro estar escrito em primeira pessoa do singular torna mais difícil a leitura, pois temos que acompanhar as peripécias mentais de um narrador esquizóide, sem rumo, sem emoção e inteligência. Virgínia Woolf em Mrs Dalloway e Willian Faulkner em Som e a Fúria conseguiram nos ingressar com perfeição nesse mundo sombrio, narrando em primeira pessoa o universo mental de seus desajustados. Esse não é o caso de Estorvo, pois o autor não consegue retratar esse mundo de forma a tornar a história coerente. Volto a citar o grande Graciliano Ramos, que em Angústia fez uma escolha técnica buscando passar ao leitor o mundo fechado e sombrio em que vive o personagem, que deseja ardentemente sair dessas sombras. Alguns amigos meus conseguiram ver no livro uma crítica ao Capitalismo, que o fato de o personagem não possuir nome sugere a perda da personalidade em um mundo sufocante e obscuro, no qual o personagem, envolto por sua solidão, não consegue encontrar saída, vivendo em uma situação de completo desconforto. Entretanto, para mim, que queria apenas um pouco de prazer com a leitura, o livro é uma decepção completa e se Rui Guerra o filmou, vejam o filme e se poupem de duas horas de desprazer com a leitura.

 
 Benjamim O segundo romance, Benjamim, é tão chato quanto o primeiro, guardando muitas semelhanças, tais como: novamente estamos diante de um personagem filmado a todo instante pelo narrador onisciente, com a modificação do foco narrativo, pois em Benjamim é em terceira pessoa a narração, o que torna menos penosa a leitura. Neste segundo romance, a perspectiva visual domina amplamente, basta verificar a quantidade de vezes que o verbo ver e seus sinônimos surgem no texto. O narrador filma os personagens revelando suas percepções e pensamentos, porém o resquício de humanidade fica por aí, pois o narrador elimina a vivência emocional. A atmosfera é desprovida de racionalidade, pois vazia de emoções. Outro fato a registrar neste segundo romance é o nome dos personagens, que assim como os próprios nomeados são esquisitos: Ariela Masé, Aliandro Esgarate, Zambraia, e outros. Se há alguma intenção por trás da escolha dos nomes, para mim passou despercebida. Assim como na vida real, um nome pode revelar alguns detalhes sobre o nomeado, tais como sua classe social, origem geográfica, nacionalidade, e outros.

 A oportunidade parece que foi perdida pelo autor, pois os nomes escolhidos nada significaram para esse leitor que vos escreve. Budapeste Em Budapeste, o autor segue o caminho de seus personagens esquisitos, tornando-o completamente inverossímil. Pensei em dar ao autor o benefício da dúvida, pois minha análise talvez esteja pautada pelo seu trabalho anterior como cantor e compositor, mas decidi não ter compaixão, pois há inequivocamente um forte trabalho de mídia tentando empurrar vinagre, ao invés de vinho, para dentro da goela do pequeno universo de leitores brasileiros. Além disso, não consegui até o presente momento descobrir qual é o foco de Chico Buarque como escritor. No compositor podemos reconhecer o homem envolvido com as causas democráticas, sociais, humanistas, mas o escritor ainda está devendo.

 
O personagem principal de Budapeste possui uma tendência à solidão e um autismo inequívoco, má adaptado à realidade, podemos afirmar: é esquizóide. Pronto, Chico Buarque criou mais um personagem pouco convincente. Nos primeiros livros, vi como ponto positivo o fato de o escritor evitar os lugares comuns e clichês, e devo reconhecer ainda que a escrita, propriamente dita, busca ser original. Entretanto, minha reação aos romances foi de tédio completo e irritação. Sinceramente, a princípio, não entendi o motivo de tanto estardalhaço nos cadernos literários em torno desses romances tão menores, até me lembrar que o livro não é apenas um bem cultural, sendo muitas vezes e, exclusivamente, um produto econômico. Nesse enfoque, não se iludam, o meio editorial exige que, além de o escritor ser bom em seu ofício, ele deve ainda possuir boa capacidade para vender seu produto. E admiradores não faltam a Chico Buarque, cantor e compositor consagrado.

Não tenho a intenção de denunciar essa mercantilização da literatura, não tenho vocação quixotesca, mas vejam a saída de Rubem Fonseca da Cia. das Letras, qual foi o motivo? Nunca saberemos, mas é provável que seja a queda nas vendas dos livros do autor, o que faria a editora dar um tratamento, do ponto de vista do escritor, inadequado à sua obra, ou seja, pode ter ocorrido um conflito entre a defesa dos valores literários e a necessidade de retorno financeiro do investimento. Veja-se o fato de a Flip ser dominada pelas grandes editoras, de os cadernos literários serem completamente recheados de resenhas de livros pagas pelas grandes editoras, e vai por aí.

O leite derramado Com essas premissas, passei a leitura de O Leite Derramado. Aliás, devo confessar que somente o fiz por dever para com meus companheiros de Algo a Dizer, pois estava bastante desconfiado que enfrentaria uma batalha inglória com a leitura, estragando meu fim de semana na serra. No entanto, devo confessar que o livro não segue o rumo dos outros, ou seja, não é chato e os personagens, se não chegam a ter um primor de coerência, também não chegam a ser um Benjamim. Até os nomes melhoraram, apesar de algumas escorregadelas. Segundo a orelha do livro o novo livro de Chico é um romance de decadência.

Os escritores brasileiros, com exceções, têm escrito livros com temas semelhantes, veja-se o exemplo de A Tarde de sua Ausência, de Carlos Heitor Cony, romance lançado há alguns anos, outra tentativa, do meu ponto de vista frustrada, de escrever um romance de decadência na literatura brasileira. Ambos tentaram escrever no estilo acima exposto com pouco mais de 150 páginas. É muito pretensão! A editora, nos caso deste último livro, criou artifícios editoriais para aumentar o número de páginas, que não passam despercebidos a um leitor atento.

Entretanto, esses truques não atendem, pois um romance de decadência, que possui como objetivo mostrar a decadência de uma família, geralmente caracterizado pelo apogeu político, social, econômico desta, deve, necessariamente, possuir um grande número de personagens, sendo necessário descrevê-los bem, bem como traçar detalhadamente o caminho da ruína, para que o leitor vá aos poucos se familiarizando com os personagens e se envolvendo emocionalmente com angústia que uma decadência traz. A técnica básica é ascensão e queda. Vou dar uma dica para meus leitores que querem ler um romance de decadência: Os Buddembrooks de Thomas Mann, no qual é narrada a ascensão e decadência de uma família burguesa através de quatro gerações. Conforme bem exposto na contracapa de meu exemplar: “Mais do que a crônica em torno da vida e costumes dos seus personagens, este romance é a metáfora exemplar das contradições e dilemas de uma classe, cujo poder e domínio se constroem sobre a fraude, a hipocrisia e a alienação.”

Chico Buarque não seguiu a técnica básica, o que pode ser louvável ou não. Lembro-me sempre de um ensinamento de um professor: “James Joyce primeiro provou que sabia escrever publicando Dublinenses, depois desconstruiu a literatura do século vinte.” O narrador de O Leite Derramado, decrépito e decadente em seu leito de morte, rememora sua vida partindo de sua destruição para narrar o apogeu e queda. O romance é um triste espetáculo humano. No entanto, enquanto que no romance de decadência há a inevitabilidade da tragédia, no romance de Chico a tragédia já ocorreu. O personagem narrador vem de família culta, mas seu linguajar não reflete isso: “gororoba”, “encasquetei que precisava enrabar Balbino”, etc. É chulo demais para um homem rico e filho de senador, descendente de “figurão do império”. Além de certa coloquialidade incômoda, como por exemplo, na página seis: “me compraram” ao iniciar a oração. Mas o problema maior é o fato de o texto ser muito curto. Não há tempo suficiente para desenvolvimento dos personagens, de suas naturezas interiores. Falta o efeito emocional que se sente ao ler um romance como o de Mann. Com a escolha do estilo, há muita rapidez nas fases de decadência, que se encontram misturadas no texto.

O leitor é jogado para o futuro ou passado, veja-se na parte em que é narrado o assassinato do senador, no qual não há um quadro completo da situação. Como leitor comum que sou, não possuindo formação em Letras, tampouco a pretensão de ser crítico literário, confesso que saí decepcionado da leitura. Quando leio um romance, busco vivenciar as histórias, envolver-me emocionalmente com os personagens. Lembro-me de vários que me fizeram parar no meio da página, pois os olhos marejados não permitiam sequer a leitura de mais uma linha; ou de cenas que fizeram meu coração dar um salto; ou ainda da sensação de espanto diante da beleza de uma cena como a da “madeleine” no chá. Lembro-me ainda que certo dia, lendo As Ilhas da Corrente, de Hemingway, fiquei pasmo e um nó se formou em meu peito quando vislumbrei o que o autor faria com o personagem ao qual eu me afeiçoara.

Saí do quarto e fui para sala, fechei o livro e senti a dor da perda. Após retornar e ler as últimas páginas, senti uma enorme necessidade de beber alguma coisa para domar a dor que me sufocava. Compreendi naquele dia que As Ilhas da Corrente é o bilhete de um suicida e, finalmente, consegui entender a morte do autor com a espingarda de caça. Está faltando na literatura brasileira a ocorrência de livros que nos comovam e nos levem a pensar na literatura como libertação, como busca de sentido para o nosso drama diante da morte que nos avizinha, pois os homens reais, e talvez os ficcionais, também anseiam pela luz do sol.


Celso Gomes é advogado e escritor – artigo publicado no “Algo a

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