sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Memórias. Varal das lembranças: Encontros em Recife, após o Golpe Militar de 1964, com os poetas Alberto Cunha Melo e Jaci Bezerra Lima (1) - Pedro Vicente Costa Sobrinho



Alberto da Cunha Melo e Benedito da Cunha Melo (pai)
1966.  Sábado de Zé Pereira, 19 de fevereiro, pela primeira vez, depois do Golpe Militar de 1964, eu voltava a Recife com o propósito de rever os amigos mais próximos que deixei em Jaboatão, e que há dois anos não tinha deles notícias.  Não era fácil chegar até eles, pois eu não podia ir a Jaboatão durante do dia, e a noite somente se fosse de taxi depois das 22 horas; eram tempos difíceis e eu temia ser preso. Fretei um taxi, visitei meus pais, e pedi-lhes que avisasse Alberto da Cunha Melo que eu estava em Recife, e no dia 21, segunda feira de carnaval, eu gostaria de vê-lo. Deixei meu endereço, uma pequena hospedaria que ficava nas imediações do antigo terminal rodoviário de Recife, no cais de Santa Rita, pertinho do Mercado de São José. No horário marcado, Alberto estava lá. Disse-me que tinha ido avisar Jaci Bezerra Lima, e decerto ele se encontraria conosco no Parque 13 de Maio, no  restaurante Torre de Londres. No recado que enviei pelos meus pais a Alberto, eu não havia mencionado Jaci, pois este morava em Cavaleiro, e eu não queria de modo algum causar esse incômodo ao amigo.

 Chegamos bem antes que Jaci, e então fizemos o possível para resgatar fatos e assuntos desse hiato de tempo em que deixamos por circunstâncias alheias a nossa vontade de nos encontrar, coisa que fazíamos regularmente pelo menos duas vezes durante a semana. Conversa longa, precisa e abrangente, pois Alberto da Cunha Melo era de uma capacidade de observação e síntese extraordinárias, e  me passou com riqueza de detalhes a descrição do clima de desconfiança, mesquinhez, dedurismo e terror que grassava na cidade, ele, inclusive, pretendia logo que pudesse mudar pra Recife. Falou-me da prisão da irmã de Zé Luis (1) e do namorado dela, estudante da Faculdade de Direito. Das prisões de ferroviários, trabalhadores rurais e de velhos comunistas, principalmente das torturas que sofreram no DOPS. Manaçu, líder ferroviário, que havia ido a Moscou, foi várias vezes preso e submetido a sessões de espancamento. Falou-me que eu, ao cair fora, escapei de receber os mesmos maus tratos, pois a prática dos auditores do exército era inicialmente interrogar, prender e logo depois entregar a vítima à sanha dos policiais do DOPS, tradicional centro de torturas da Rua da Aurora em Recife.

Depois de esgotarmos vários copos de chope, apareceu o poeta Jaci Bezerra Lima, e se desculpou pelo atraso; não vinha acompanhado do Grão Mogol, Domingos Alexandre (2), que mesmo morando em Cavaleiro andava meio desaparecido. Até então Alberto não havia me falado de poesia. Eu havia também notado a ausência de sua inseparável bolsa de mão, onde acumulava papeis e livros, e que sempre a conduzia debaixo do sovaco. Jaci trouxe numa pequena pasta de papelão vários recortes e folhas de jornal e ainda poemas datilografados em folhas de papel almaço tamanho ofício, e a poesia passou então a ser pauta e ocupou daí por diante todo nosso tempo.

Jaci Bezerra Lima
 
Alberto me falou que o grupo, Jaci, ele, Zé Luis e Domingos, continuava a encontrar-se pra discutir política e sobretudo literatura. Havia já uma boa produção acumulada de poemas, mas infelizmente ainda não publicados. A novidade mais bem fresquinha era de que César Leal (3), organizador da Página Literária do Diário de Pernambuco, havia dedicado uma página quase inteirinha do suplemento do jornal, nesse domingo de carnaval, 20 de fevereiro, aos poemas de Jaci, uma coroa de sonetos: Sonetos de Arlequim a Colombina. Jaci havia deixado  carta com seus poemas na portaria do DP, endereçada à redação e, através da Coluna Informações, recebera o recado para comparecer e identificar-se pessoalmente no jornal.  Recentemente ao reler Geração 65. O livro dos trinta anos, organizado por Jaci Bezerra Lima, eu encontrei o recado do DP, com data de 6 de janeiro, e aqui o reproduzo: Jaci Bezerra. Você nos enviou uma Coroa de Sonetos. É um trabalho de grande valor. Sua carta vem com endereço de Jaboatão. Pedimos-lhe o obséquio de confirmar o endereço. Também esperamos informações adicionais sobre seus trabalhos de poesia. Estamos dispostos a conceder uma página inteira aos seus versos. Identifique-se, pessoalmente, em nossa redação. Jaci atendeu o chamado e juntamente com Alberto foram até César Leal, que nesse primeiro encontro foi muito aprazível, cordial e amigo, revelando o interesse de logo conhecer o grupo e a sua poesia, pois a mostra que ele tinha em mãos era de boa qualidade. Em sua coluna datada de 6 de fevereiro, César Leal noticiou o encontro: Além de Jaci Bezerra, mais três bons poetas jovens moram em Jaboatão. Formam um grupo ativo, que se reúne frequentemente para autocrítica e crítica recíproca de seus próprios trabalhos. São eles Domingos Alexandre, Jaci Bezerra, José Luiz de Almeida Melo e Alberto da Cunha Melo. José Luiz de Almeida Melo é exímio no soneto. Segundo o próprio Jaci Bezerra, o mais forte do grupo é Alberto Cunha Melo. Na matéria ele anunciou a publicação próxima de dois poemas de Zé Luis, e isto ocorreu no dia 13 de fevereiro. Revendo a matéria, eu registro aqui a visão premonitória de César, ao vaticinar: ... grupo que parte daquela cidadezinha interiorana para conquistar rapidamente o país inteiro. Quem duvidar, recorte o que afirmamos aqui agora. O grupo de Jaboatão, decerto, foi o núcleo inicial da que veio a ser denominada pelo   crítico Tadeu Rocha (4) de Geração 65, e os dois poemas Sonetos da procura, de Jaci Bezerra, publicados no dia 23 de janeiro de 1966, segundo Sebastião Vila Nova (5), é o ponto de partida da história pública dessa geração, constituída  por poetas, ensaístas e ficcionistas que alcançaram o  reconhecimento e consagração nacional. Ao publicar no Diário de Pernambuco os Sonetos da procura, de Jaci, escreveu César Leal: Lançamos hoje aqui um jovem poeta. Tem apenas vinte anos, e vive em Jaboatão. Os dois sonetos que divulgamos não são os mais representativos de sua poesia. Infelizmente nossas limitações de espaço não permitem dar uma medida exata de Jaci Bezerra. O poeta é muito pobre, não possui livros: conhece os poetas brasileiros apenas através do que se publica nos suplementos. Disseram-lhe que Geir Campos (6) havia escrito, certa vez, uma ‘corôa de sonetos’. ‘O que é uma coroa de sonetos – indagou ao informante, que nada também conhecia sobre teoria literária. Contudo, deu-lhe algumas indicações. Foi o suficiente para que ele fizesse, com rigorosa técnica e não menor intensidade lírica uma coroa de sonetos que, pela unidade do tema e beleza das imagens, deixou para trás quase tudo o que no gênero a ‘antiga musa canta’.

Poeta e crítico literário César Leal
 
César não sabia, até então, que Jaci e Alberto eram contumazes fuçadores de bibliotecas, leitores fominhas e garimpeiros de livros onde quer que  eles pudessem ser encontrados. Por sua vez, contavam  também com a  biblioteca do poeta Benedito Cunha Melo (7), pai de Alberto, e ainda com o pequeno acervo bibliográfico do Grêmio Lítero-Recreativo de Jaboatão. Apesar da penúria em que viviam, nunca deixaram de juntar seus escassos trocados para adquirir livros, pois eram leitores compulsivos e vorazes. Vez por outra, eu comentei com Alberto e Jaci, a parte do  texto da nota de César Leal em que se referia a  Jaboatão como um cidadezinha interiorana, e não era bem isso. Jaboatão era uma cidade muito politizada.  Fora o núcleo central da rebelião comunista de 1935 em Pernambuco, e elegeu, em 1947, o primeiro prefeito comunista no Nordeste, por isso sua alcunha de moscouzinho, de repercussão nacional. Além disso, para os limites de Pernambuco, à época, era uma cidade de base industrial, pois em seu sítio rural e urbano estavam instaladas três grandes usinas de açúcar e álcool, uma das maiores indústrias de papel papelão do Brasil, a única fábrica de vidro do Nordeste, indústrias de transformação e beneficiamento de alimentos, e a maior oficina ferroviária do Nordeste. Pela proximidade com Recife, quase já coladinha naquele tempo, era uma cidade também considerada dormitório, com significativa população operária e de trabalhadores de diversas categorias profissionais que nela residiam e trabalhavam na indústria e comércio da capital pernambucana.  A esquerda, em particular os comunistas, sempre teve uma boa inserção na política local, e, na sua maioria, os eleitores de Jaboatão, quase sempre votou nos candidatos da Frente de Recife nas eleições para o governo estadual e presidência da república. Três anos antes desse encontro, precisamente em 1963, nas eleições municipais, Jaboatão foi manchete nos jornais nacionais e no noticiário que era veiculado nos cinemas, devido a decantada derrota dos comunistas e da eleição do candidato de direita Vicente Carício (8), largamente apoiado com recursos do IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, instituição financiada por grandes empresários brasileiros, multinacionais e organizações dos EUA, que teve participação ativa no desfecho do golpe militar de 1964. Jaboatão não era a cidade tão interiorana e ingênua quanto imaginava nosso grande poeta César Leal.

Jaci nos mostrou todos os recortes e páginas do DP, entre quais estavam as que traziam publicados dois sonetos de Zé Luis  e sua elogiada Coroa de Sonetos, com o título: Sonetos de Arlequim a Colombina, estes publicados no dia 20 de fevereiro de 1966. Disse-lhes que estava trabalhando no Departamento Estadual de Imprensa, órgão responsável pela edição do Diário Oficial do estado. Naquele momento estava exercendo o cargo de supervisor das oficinas gráficas, que além de material de expediente para o setor público editava livros e revistas. Sem assumir maior compromisso, eu sugeri que era possível editar uma plaquete com os sonetos publicados no DP. Para isso, eu teria que convencer a direção do DEI, e arranjar um bom prefácio de autor local de reconhecido mérito intelectual. Logo pensei em Nei Leandro de Castro (9), poeta já então conhecido por Jaci e Alberto. Alberto sugeriu que se pusesse  novo título para o sonhado projeto do pequeno livrinho. Depois de uma longa discussão, ficamos com a proposta de Alberto: Sonetos Inconhos, depois que ele nos convenceu ao explicar que aqueles poemas eram como frutos que nascem acasalados, ligados entre si. Saímos do restaurante Torre de Londres quase ao cair da tarde, nos despedimos e ficamos de nos encontrar dentro de mais algum tempo, e devido a minha condição de exilado não aprazamos datas. Eu tomaria a iniciativa de me comunicar com eles através de meus pais.

 João Cabral de Melo Neto
 
Em Natal, eu mostrei os sonetos ao poeta Jarbas Martins (10), que leu e disse-me que muito havia gostado, comentou, contudo, que a poesia de Jaci revelava certa influência do grande poeta pernambucano Carlos Pena Filho. Jarbas ainda me emprestou, e que a ele não devolvi, o livro que reunia a poesia de Carlos Pena Filho (11): A Vertigem Lúcida. Entreguei os sonetos pro Nei Leandro de Castro, que me devolveu sem comentários. O poeta decerto não teve tempo, pois estava ora arrumando as malas pra se mudar às pressas pro Rio de Janeiro.  Cabe ainda realçar que, na conversa com Alberto e Jaci, eles haviam me falado de suas andanças e garimpagem por livros na biblioteca de Afogados, e que nela tinham lido a obra de dois grandes poetas: João Cabral de Melo Neto e Carlos Pena Filho, ambos pernambucanos; desde então ficaram entusiasmados com os dois, mas tinham feito escolhas pessoais diferentes: Jaci identificou-se mais com Carlos Pena Filho, e Alberto, por sua vez, com João Cabral. Logo que voltei desta viagem e do encontro com os dois eu comprei a Antologia Poética de João Cabral, primeira edição, de 1965, exemplar 2929, Editora do Autor, que até hoje está em minha estante de poesia. Nesse ano de 1966, fiz contato tardio com a obra desses dois grandes poetas: Carlos e João, e nunca mais consegui me desligar deles. Não pude editar em Natal a coroa de sonetos, e os originais desses poemas permaneceram muitos anos comigo, não me lembro de tê-los devolvidos para Alberto sequer para Jaci.

 
1967. De novo no carnaval, manhã de terça-feira, sete de fevereiro, eu reencontrava Alberto. Não fora possível contatar a tempo Domingos Alexandre e Jaci e por isso eles não compareceram ao ponto. O Bar Savoy, já então demonstrando claros sinais da futura decadência, fora o local escolhido. Lembro-me então que a música que mais ouvimos pelo som da eletrola do Savoy foi a marcha- rancho Porta Estandarte, de Fernando Lona e Geraldo Vandré, na belíssima voz e interpretação de Vandré. Conversamos muito sobre política, e também sobre os nossos destinos. Falei, então, que havia retomado os contatos com o Partido Comunista Brasileiro, e que ora me encontrava envolvido na reorganização do PCB no Rio Grande do Norte. Participava do Cine Clube Tirol e que também vinha mantendo um bom relacionamento com grupos de jovens intelectuais de Natal.

Jaci Bezerra, Sebastião Vila Nova, Alberto e Ângelo Monteiro
 
Alberto, por sua vez, falou-me que o grupo de Jaboatão havia rompido o silêncio quanto a sua poesia e produção intelectual, e mais: que o grupo já tinha conquistado espaço nos suplementos literários de Recife. Ele, por sua vez, havia publicado alguns dos seus poemas em livro: Círculo Cósmico, pela Editora Universitária, graças o apoio e mediação do poeta César Leal. Jaci, desde a publicação de sua coroa de sonetos, vinha colaborando regularmente em suplementos literários da imprensa pernambucana. Dentre em breve ele estaria publicando seus poemas em livro. Isso veio a acontecer no ano de 1968, quando  seu livro de poemas Romances foi editado também pela Editora da Universidade Federal de Pernambuco As duas da tarde, daquela terça  de carnaval,  nos despedimos. Naquele ano de 1967, eu fui estudar na escola de formação de quadros do movimento comunista internacional, em Moscou, capital da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Somente voltei a rever meus bons companheiros Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra cinco anos depois. Pouco tempo de separação para uma relação de amizade construída em bases sólidas, resistente anos a fio a qualquer possível tormenta, tudo seria decerto como antes o nosso próximo reencontro.

 
Recentemente, ao ler Linha d’água, reunião da poesia de Jaci Bezerra, eu verifiquei que a coroa de sonetos: Sonetos de Arlequim a Colombina, publicada no carnaval de 1966,  diferentemente do que aconteceu no Livro das Incandescências (1985), onde a coroa aparece sob o título Livro do Amante, com todos sonetos intitulados, cujos títulos compõem um poema de quinze versos rigorosamente metrificados (decassílabo) e com rimas, ela reaparece  no aludido livro com o título original  de quando ora foi editada no suplemento literário do Diário de Pernambuco em 1966. Este fato, fez-me lembrar de que em 1978 eu adquiri no sebo Livraria do Messias: O Pequeno Dicionário de Arte Poética, primeira edição de 1960, exemplar 3894, da Editora Conquista, de autoria de Geir Campos, poeta que em sua Uma História da Poesia Brasileira, Alexei Bueno (12) considera: o grande virtuose do verso e poeta de índole rilkiana (...),  e nele encontrei o verbete COROA DE SONETOS. Geir Campos dela diz: Composição poética em que o SONETO funciona como estrofe, aparecendo em número de quinze, dos quais o último é formado pelos quatorze versos finais dos anteriores e estes começam, cada qual, pelo último verso do anterior.  Pouco tempo depois eu  encontrei, no sebo Cruzeiro do Sul,  o livro Coroa de Sonetos de Geir Campos, edição de 1953, da Organização Simões,  e pude constatar que sua coroa ali estava, segundo o verbete do dicionário do próprio autor, incompleta, pois faltava o soneto de número quinze como fecho. Não encontrei outra edição para conferir se houve a devida correção do autor e, então, aqui eu confesso meu descuido quanto a busca, até porque gosto muito desse poeta, sua poesia e prosa e ainda das muitas traduções que nos legou: Brecht, Rilker, Kafka, Walt Whitman etc.

1997. Ao fazer um pouco mais de trinta anos da publicação da coroa de sonetos de Jaci Bezerra Lima: Sonetos de Arlequim a Colombina, voltei a ler no livro: Para uma teoria do verso, de Sânzio de Azevedo (13), Edições da UFC, Fortaleza, 1997, a transcrição do verbete do poeta Geir Campos sobre coroa de sonetos. Segundo Sânzio, esta definição coincide com as de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Leodegário A. de Azevedo Filho, Raul Xavier e outros. Registra também que o poeta cearense Otacílio Colares publicou em 1979: Entre o bem e o mal, coroa de sonetos que segue rigorosamente o esquema, deixando de rimas apenas o soneto final, como sempre ocorre.  O autor não faz menção, certamente por desconhecer, à coroa de sonetos de Jaci Bezerra Lima, cujo artesanato na tessitura dos poemas exauriu o aspecto formal dessa forma da arte poética. O soneto quinze da coroa de Jaci tem métrica e rimas perfeitas. Nada melhor repetir o que bem disse, à época, ao referir-se a Jaci, o grande crítico literário César Leal: (...) com rigorosa técnica e não menor intensidade lírica uma coroa de sonetos que, pela unidade do tema e beleza das imagens, deixou para trás quase tudo o que no gênero a ‘antiga musa canta’.

O amigo Jaci certa vez disse-me: - Pedro, a nossa produção poética não consegue ultrapassar a fronteira da Paraíba, que é a mais próxima de Recife. Pessimismo do poeta, pois a poesia dele e de Alberto chegaram bem mais longe, apesar dos muitos obstáculos editoriais.  Reproduzo aqui os 15 versos que a pretexto de títulos encimam e até escondem a antes coroa de sonetos: Sonetos de Arlequim a Colombina, publicados no seu livro: Livro das Incandescências. Ao ordenar esses versos,  eles passam a compor um novo poema, sem título, um décimo sexto poema que seria  impróprio para coroa por não ser soneto e ainda ser excedente, sob o mesmo tema: o amante, o amor e a amada. Estes versos que encimam a coroa de sonetos aparecem devidamente ordenados no Livro Final, acrescido de mais um verso, no referido Livro das Incandescências, completando a quarta estrofe de quatro versos, com a devida pontuação: vírgulas, dois pontos e ponto final. Vejamos:

Gravando minha dor numa água-forte /esqueci no caderno a adolescência,/ queria, ao me gravar, vencer a morte,/ir além dos limites da inocência.

A vida é uma saudade sem retorno /iluminando o fundo da gravura:/mulher que me oferece o corpo morno,/visão que me assedia e me tortura.

 Ouço no mar cantigas repetidas,/ofertando ternura e achando afeto:/através do meu canto alcanço a vida /à sombra de um oásis sem deserto.

 O mar dessa gravura não tem margens,/ondula sem cessar dentro do tempo:/ no mar um viajante sem viagens,/ folheio, onda por onda, os meus tormentos.

Alguns integrantes da Geração 65 (Alberto e Jaci estão na Foto)
 
 Reproduzo, ainda, trecho de artigo de César Leal, grande crítico literário, segundo nos disse o poeta, crítico e historiador da poesia Alexei Bueno, em obra aqui já mencionada. César escreveu o artigo, no calor da hora, ao receber os poemas de Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra Lima, que foi publicado no suplemento literário do Diário de Pernambuco, em 20/11/1966. Vejamos: Alberto Cunha Melo me envia de Jaboatão uma coleção de poemas inéditos. Leio essas composições e não posso esconder minha surpresa ao verificar seu domínio técnico sobre a palavra. Para Alberto da Cunha Melo, a linguagem é um instrumento muito adequado à ruptura de velhos limites expressivos. Nisso ajudado por uma fantasia que transcende os limites da imaginação comum./ Se Jaci Bezerra é o criador de formas sensíveis, nem sempre encontradas no mundo real, o contrário é Alberto Cunha Melo, em quem a fantasia criadora se fixa preferencialmente sobre a realidade. São, portanto, dois poetas diferentes, ambos diante de uma mesma perspectiva, mas cada um dominando certa área específica da linguagem. Poderia dizer que Jaci é o poeta “possesso”, o criador de imagens, o poeta tipicamente moderno pela tendência que tem de criar uma mitologia e simbologia próprias.


Último Livro publicado, em vida, por Alberto da Cunha Melo
 
Os dois poetas têm uma obra relativamente extensa, grosso modo, eu relaciono os livros que disponho deles em minha estante de poesia. Alberto da Cunha Melo entre outros livros publicou: Círculo Cósmico, Oração pelo poema, Noticiário, Poemas a mão livre, Poemas anteriores, Clau, Meditação sob os lajedos, Um certo Jó Patriota (ensaio),  Dois caminhos e uma oração, Yacala, Carne de terceira, O cão de olhos amarelos, Um certo Louro do Pajeú (ensaio), Marco Zero (crônicas) e Cantos de Contar. Por sua vez, Jaci Bezerra Lima entre outros livros publicou: Romances, Lavradouro, A onda construída, Inventário do fundo do poço, Os pastos de minhas lembranças (contos), Emílio Madeira, o Galo (novela), Livro de Olinda, Auto da renovação (teatro), Livro das Incandescências, Comarca da memória e Linha d’água (poesia reunida).

Notas: (1) José Luis de Melo, poeta, médico( ortopedista), ex-deputado estadual, editor do jornal alternativo Dia Virá, fez parte do grupo de Jaboatão, núcleo inicial da Geração 65; (2) Domingos Alexandre, advogado, poeta, fez parte do grupo de Jaboatão, integrante da Geração 65, entre outros livros publicou: O avesso do avesso. (3) César Leal, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário, publicou mais de vinte livros, poesia e ensaios, e o romance  Minha amante em Leipzig; (4) Tadeu Rocha, geógrafo, historiador, entre outros livros publicou: Modernismo & regionalismo, Delmiro Gouveia: o pioneiro de Paulo Afonso, e A Geografia Moderna em Pernambuco;(5) Sebastião Vila Nova, sociólogo, poeta, músico e ensaísta, entre outros livros publicou: Teoria completa dos dias e das noites (poesia) e Sociologia e Pós-sociologia em Gilberto Freyre; (6) Geir Campos, poeta, dramaturgo, contista, ensaísta, tradutor, publicou entre outros livros: Pequeno Dicionário de Arte Poética, Tarefa (poesia), O sonho de Calabar (teatro) e O problema da tradução no teatro brasileiro; (7) Benedito da Cunha Melo, poeta e ensaísta, publicou entre outros livros: Trovas e trovadores;  (8) Vicente Carício, político de direita filiado ao Partido Social Democrático (PSD), foi candidato e eleito prefeito de Jaboatão nas eleições de 1963 com apoio do IBAD, o seu principal concorrente foi A Frente Única de Jaboatão, com os candidatos comunistas Miltom Gomes e o vice Joaquim Gonçalves; o poeta Alberto da Cunha Melo e eu fizemos parte da equipe que redigiu o Programa de Governo da Frente; (9) Nei Leandro de Castro, jornalista, poeta, ensaísta e romancista, entre outros livros publicou: As pelejas de Ojuara – O homem que desafiou o diabo, Era uma vez Eros, As dunas vermelhas e Universo e vocabulário do Grande Sertão; (10) Jarbas Martins, professor universitário, poeta e ensaísta; (11) Carlos Pena Filho, poeta, entre outros livros publicou: A vertigem lúcida e Livro geral. (12) Alexei Bueno, poeta, ensaísta e historiador da poesia, entre outros livros publicou: Uma história da Poesia brasileira, Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso e Poesia reunida; (13) Sânzio de Azevedo, poeta, ensaísta e historiador de Literatura, entre outros livros publicou: Caminhos da poesia, A Padaria Espiritual e Cantos da longa ausência.

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