terça-feira, 12 de julho de 2011

Artigos - ERNESTO SABATO: O adeus ao último dos renascentistas / Fernando Monteiro


Ernesto Sabato quase chega aos 100 anos. Glória da literatura argentina, o décimo dos 11 filhos varões de um casal oriundo da Calábria (com sangue albanês misturado nas veias de emigrantes), ele veio ao mundo em Rojas, província de Buenos Aires, no dia 24 de junho de 1911. O lugar passou a constar do mapa literário internacional, como cenário da infância do escritor e pintor da perplexidade em face das dores humanas e do inconformismo perante as injustiças que agravam o “desconforto de existir”, o tema central da sua obra.

A trajetória do artista e do homem se confunde, em Sabato, com a história – politicamente conturbada – da Argentina ainda buscando a si mesma, entre golpes e crises que parecem fazer parte de algum tango com passos de dança forçados por populistas e generais de opereta. No campo artístico (considerando-se a literatura e o cinema, por exemplo), o país é pródigo de altos talentos: Borges, Torre Nilsson, Sabato. Para muitos, este é um escritor mais vital do que Jorge Luis Borges ao menos para se compreender o que los hermanos viveram desde o “justicialismo” de Perón até a corte de militares que lhes impuseram uma das mais cruéis ditaduras da América Latina.

Nesse sentido, podemos dizer que o escritor foi uma consciência sobrevivente de si própria e das circunstâncias. Mais do que nunca solitário após a morte da mulher – Matilde, falecida em 1998 – depois de ter perdido o filho mais velho, Jorge, em acidente de carro três anos antes, Sabato viu aumentarem as sombras em torno dos seus fantasmas, na mesmíssima casa de Santos Lugares apontada como a residência de uma espécie de herói. Explica-se: Sabato foi o presidente da já legendária Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas – Conadep – criada por decreto do presidente Raúl Alfonsín, no dia 15 de dezembro de 1983. E o “herói” da denúncia dos militares que sequestraram e mataram adultos e até crianças, é também o autor de pelo menos duas obras-primas indiscutíveis: O túnel (1948) e Sobre heróis e tumbas (1961).

Seja logo dito: quem “ama” Borges, tem menos empatia com a arte do comunista anti-stalinista (de primeira hora) que é este escritor bem distante das fantasias borgeanas imersas no universo de bibliotecas reais e imaginárias.

“Comunista”? Sim, ninguém foi mais comunista, na juventude, do que o ancião que se declarou “anarco-cristão”, com a plena consciência do que lhe custa ser uma consciência alheia às ideologias de rebanho: “O pessoal de direita me atacava como a um esquerdista e a turma da esquerda me chamava de servo do imperialismo. Eu sou o que sou e deixo bem claro como me sentia: nem comunista de salão nem complacente com o stalinismo e o que ele representava.”

AS SOLIDÕES

Homem que sempre se sentiu metafisicamente só, Sabato escreveu ficções e ensaios de acordo com essa arraigada noção de que nascemos e morremos sozinhos com o nosso destino (möira) imerso em mistério, no sentido mais antigo da velha palavra.

Quando era um promissor cientista com doutorado em Física pela Universidade de la Plata, o inquieto Sabato abandonou a ciência para se refugiar em Pantanillo, nas serras de Córdoba. Recém-casado com a Matilde, “mulher forte como as mulheres fortes da Bíblia”, ele abandonava o altiplano científico – para espanto de todos os seus colegas de pesquisas – a fim de se dedicar exclusivamente à literatura.

“Literatura?” O doutor Enrique Gaviola, físico notável (com quem Ernesto trabalhava no Planetário platense), foi um dos mais inconformados com a súbita decisão do seu brilhante assistente. Anos mais tarde, depois da leitura de Sobre heróis e tumbas, Gaviola reconhecerá que a ciência perdeu um talento, porém as letras ganharam um gênio cuja estreia se assinalara já com romance de primeira grandeza: O túnel.

Em Heteredoxia, o autor fala sobre ele: “Enquanto eu escrevia esse romance, arrastado por sentimentos confusos e impulsos inconscientes, muitas vezes me detinha, perplexo, para avaliar o que estava saindo, tão diferente do que havia previsto. E, sobretudo, me intrigava a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física. Minha ideia inicial era escrever um conto, o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir comunicar-se com ninguém, nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura. Ao acompanhar o personagem, porém, constatei que ele se distanciava consideravelmente desse tema metafísico para ‘descer’ a problemas quase triviais de sexo, ciúmes e crimes. [...] Mais tarde compreendi a origem do fenômeno. É que os seres de carne e osso não podem jamais representar as angústias metafísicas sob o estado de ideias puras: fazem-no sempre encarnando essas ideias, obscurecendo-as com sentimentos e paixões. Os seres carnais são essencialmente misteriosos e se movem em impulsos imprevisíveis, mesmo para o próprio escritor que serve de intermediário entre esse estranho mundo da ficção, irreal mas verdadeiro, e o leitor, que acompanha seus dramas. As ideias metafísicas se transformam, assim, em problemas psicológicos, a solidão metafísica passa a ser o isolamento de um homem concreto numa cidade concreta, o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico se transforma em romance de paixão e ciúme. Castel procura apoderar-se da realidade-mulher por intermédio do sexo. Mas esse é um empenho tão vão!”...

Castel é o pintor cujo “eu” enclausurado assume a nervosa voz narrativa de O túnel, fazendo ecoar as interpolações que vão desenhando o interior do personagem e o entorno magnificamente compostos das mesmas tumultuosas impressões que dão ao livro a carnadura viva de um túnel de sangue, de uma veia aberta para misturar plasma e literatura, material algo biográfico e invenção em grau superlativo. Desde as primeiras linhas, o leitor se sente atraído para um tipo de “confissão” direta e sem truques: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não serão necessárias maiores explicações...”

Neste momento em que se ensinam tantas tolices – principalmente nas “oficinas” de criação literária que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa –, Ernesto Sabato dá sua lição de romancista-mestre: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O Túnel, depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos cotidianamente, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total...” (É preciso dizer mais?).

Autor que se examina com a lente do cientista, o romancista argentino seguiria no caminho do aprimoramento da sua arte durante os anos de elaboração do épico Sobre heróis e tumbas, narrativa construída sobre três planos que se interpenetram e logram transmitir tanto os “impasses” tipicamente sabatonianos quanto o substrato do passado de uma nação que se plasmou a partir do zero do pampa, com a ajuda – fundamental – dos emigrantes cuja melancolia, para Sabato, estaria na raiz do tango (“coisa de italianos”, para o Borges que sempre preferiu a milonga):

“Aqui, nós não tivemos civilizações indígenas, como no Peru e no México. A Argentina foi levantada sobre o pampa, essa metáfora do nada. Olhem para Buenos Aires: ela atraiu milhões de emigrantes, em poucas décadas. A cidade passou dos 200 mil habitantes do fim do século 19 para se tornar este monstro contemporâneo. Ninguém pode viver sem pátria, sem terra a que fixar-se e a que amar. Os que vieram para cá buscavam algo sólido a que se agarrarem, ou seja, necessitavam de uma pátria com urgência. E naquele crepúsculo da passagem do novecento, chegaram a estas praias de lama multidões de gentes corroídas pela miséria das aldeias italianas, espanholas, polacas, russas, alemães, libanesas... Eles vinham alentados pela esperança. A maior parte encontrou outro gênero de pobreza, agravada pela solidão. Haviam deixado mães, noivas, irmãos. Como não teria que nascer, de toda essa melancolia, a dramaticidade do tango?”

CIDADÃO

Este escritor foi também um cidadão que jamais renunciou a se posicionar politicamente – numa quase vida paralela à do artista consagrado. Tal exercício vigilante dos deveres cívicos ele se impôs muito cedo, ou seja, desde a “descoberta” dos males sociais, quando ainda era um ginasiano. Na ideologia, Sabato encontrou o bálsamo para as dores precoces do ser consciente, como típico rapaz, imensamente sério, de uma época na qual ainda ecoavam os nomes dourados da Verdade e da Justiça como Beleza (para lembrar os versos da juventude madura de John Keats), e vice-versa.

Deixemos que mais uma vez fale o próprio protagonista de um tempo diferente deste atual, no qual “é difícil ser Homem” (tomando-se essa investidura também como o compromisso com o Outro):

“Na escola secundária, me vi diante de uma encruzilhada, de ordem social, já não pessoal, ao tomar súbita consciência da injustiça que rege nossa sociedade. Refiro-me a um lapso de cinco anos, entre 1924 e 1929. Para mim foi como dar entrada num recinto e maravilhoso; nós nos sentíamos como eleitos, falávamos com entusiasmo durante horas e líamos folhetos que transmitiam a boa nova; participávamos de manifestações de rua a favor de Sandino, de Sacco e Vanzetti, e em geral terminávamos correndo da polícia em nosso encalço.”

O jovem Ernesto chegou a ser secretário da Federação Juvenil Comunista, e foi preciso ir a Paris, viajando na clandestinidade, para ver ruir a sua primeira confiança na ideologia, ao tomar conhecimento dos crimes stalinistas ignorados pela orientação do partido. O passo seguinte do militante foi endossar o clamor de denúncia desses crimes que a fidelidade canina a Moscou evitava enxergar. Divulgá-los era, já, “traição” – aos olhos do segmento estudantil do PC cuja ortodoxia, de imediato, fez cobrar a Sabato o preço pago pelo exercício da liberdade de pensamento.

Mais tarde, outros lhe cobrarão da mesma maneira, na Era Perón: como professor de escola pública, será demitido por haver assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazi-fascismo. E as contradições não pararão aí. Quando cai o regime de Juan Domingo e Sabato fica sabendo que muitos peronistas (das antigas hostes inimigas) estão sendo torturados em nome do movimento “libertador” etc, o escritor sem medo assume o ônus de condenar a prática da violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a este “homem que lutava só”?

O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos jovens escritores dos quais Sabato jamais se apartou, ao longo do tempo – lhe fez justiça, nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970:

“Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Ernesto Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos grossos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E nos diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Quanto termina as frases – às quais não falta uma ponta de ironia –, tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.”

Perto dos 100 anos e da morte – e certamente mais solitário do que nunca – esse último dos moicanos descendente de calabreses (e albaneses irredutíveis), chegou a uma idade bem longeva para um quase suicida. Já havia posto o ponto final num livro de memórias intitulado Antes do fim (já traduzido no Brasil). Em mais de uma oportunidade, o homem que lutou contra si mesmo pensou em acabar com a vida ameaçada pela dúvida, pela precariedade financeira e pela angústia sem nome que clama contra Deus – e o resto. Dessas lutas, ele saiu na verdade vitorioso, como o último dos renascentistas, no seu périplo amplo desde o terreno das ciências exatas (em que contribuiu com pesquisas sobre a física quântica e a Relatividade) até o território movediço das artes, como humanista, pintor de talento e escritor mundialmente reconhecido.

Nos últimos 15 anos, os pincéis substituíram a caneta na mão do autor de Notícia sobre cegos. Não apareceu mais nenhum inédito do autor de Abaddón, o Exterminador, e, desde 2005, os vizinhos não mais avistaram o viúvo que avisou não poder sobreviver à morte de sua Matilde (“devo tudo à minha esposa; ela sempre foi a minha primeira leitora e meu melhor editor”). Seja como for, agora Sabato agora pertence ao mais seleto lugar da literatura: aquele que garante a imortalidade artística como luz no fundo do túnel.



Fernando Monteiro, escritor, crítico de artes plásticas e cinema. É autor dos romances A cabeça no fundo do entulho; Aspades ETs etc.; O grau Graumann; A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro entre outros.



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