segunda-feira, 29 de setembro de 2008

ARTIGO - INTERPRÉTES DO BRASIL: UMA SÚMULA DE ERROS - Pedro Vicente Costa Sobrinho












Logo após a Independência, a visão romântica do Brasil era de um jovem país de futuro promissor, destinado a cumprir um papel importante no conjunto das nações do novo e do velho mundo. A exaltação da terra, do seu clima, do seu solo exuberante, de suas riquezas naturais estava presente nas obras dos românticos, sobretudo na sua poesia.

No entanto, a visão paradisíaca da nova pátria não se bastava, pois faltava um povo cujas características o dotassem de uma personalidade distinta e original, constituindo-se a partir dela uma nacionalidade genuinamente brasileira. Nessa direção, a literatura indianista, como forma mais acabada de expressão intelectual dos ideais do nacionalismo dos românticos, principalmente no romance de José de Alencar, “criou uma Idade Média brasileira”, o que era talvez uma forma de dar conteúdo histórico ao nacionalismo. Em Iracema, essa busca vai ainda mais longe, e coloca no ambiente da lenda o nascimento da nacionalidade (Leite, p. 173).

O discurso positivo dos românticos estava longe de se adequar à realidade de um país atrasado, miserável, oligárquico, fragmentado e excludente, cuja economia repousava na exploração do trabalho escravo. A partir dos anos setenta do século passado, começaram a circular no Brasil as novas teorias de cariz positivo-evolucionista, que tinham como centralidade os modelos raciais de análise elaborados por Galton, Lombroso, Le Bon, Gobineau e outros. Mais ainda o determinismo geográfico de Ratzel (Schwarcz, p. 62 a 64).

A nova geração de intelectuais pátrios, com destaques para Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, mais tardiamente Oliveira Vianna, assimilou os novos determinismos climáticos e raciais, e, a partir desses referenciais teóricos forâneos, buscou explicações para o país, para a razão de suas vicissitudes e atraso crônico, muitas vezes sendo levada a externar um certo pessimismo quanto ao futuro da nacionalidade.

Até os anos de 1930, vários estudiosos debruçaram-se sobre a questão nacional, buscando explicar o caráter e o destino do homem brasileiro. Com exceção de Manoel Bonfim, as determinantes geográficas, raciais e culturais, com ênfase na miscigenação e baldeamento de culturas são predominantes e balizaram as reflexões do pensamento intelectual brasileiro então dominante. Na década de 1930, três obras foram publicadas e passaram a constituirem-se em cânones para a análise da realidade brasileira: Casa-Grande & Senzala (Gilberto Freyre, 1933); Evolução Política do Brasil (Caio Prado Júnior, 1933) e Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936).

A obra de Gilberto Freyre ancorava-se na antropologia cultural, principalmente no relativismo de Franz Boas, compulsava novas fontes e vinculava novas abordagens sobre relações raciais, sexuais e familiares. E mais, e fundamentalmente, buscou explicar o homem brasileiro através de suas raízes fincadas no passado, na herança colonial e suas transformações ocorridas no século XIX, considerando também como exitoso o empreendimento colonizador português, concluindo que ele foi perfeitamente adequado para a construção de uma nova civilização nos trópicos.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda desenvolveu o conceito de “Ibéria” englobando as culturas de Portugal e Espanha, unidade que, segundo Antonio Candido, se desmanchará em parte no discorrer do discurso. A natureza da cultura e do homem ibérico foi delineada em seus traços essenciais:

A autarquia do indivíduo, a exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos. (...) Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. (...) ... obediência cega, e que difere fundamente dos princípios medievais e feudais, tenha sido para eles até agora, o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem.

A estes povos acresce-lhes ainda o culto dos valores universais e permanentes; a repulsa a toda moral fundada no trabalho e a precariedade de ideais de solidariedade (Holanda, p. 9 a 12).
Em trecho mais adiante, o autor explicita a tese que norteia sua obra:

A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas européias transportadas ao Novo Mundo. Nem o contato e a mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram-nos tão diferentes dos nossos avôs de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma (idem, p. 12).

Se em Freyre e Holanda os elementos culturais (para o primeiro misturados, para o segundo essencialmente ibéricos) que forjaram a nacionalidade brasileira, cunharam em seu caráter um conjunto de traços definidores e de relativa permanência, como se as sombras dos mortos se projetassem sobre os vivos; em Caio Prado Júnior, o marxismo, de pouco assimilado, conduziu a novas interpretações da realidade brasileira.
Em sua obra Evolução Política do Brasil, Prado Júnior passa a explicar, segundo Mota, as relações sociais a partir das bases materiais, apontando a historicidade do fato social e do fato econômico, colocando em cheque a visão mitológica que impregnava a explicação histórica dominante. As classes sociais emergem, pela primeira vez, nos horizontes da realidade social brasileira como categoria analítica (Mota, p. 28).

Nove anos depois, no seu livro Formação do Brasil Contemporâneo, Prado Júnior, já melhor adestrado no uso do marxismo e do seu método, buscou interpretar o Brasil a partir do que denominou “o sentido da colonização”, e desse modo explicar o presente através do estudo de sua realidade colonial, sua base econômica, utilizando categorias analíticas como produção, distribuição e consumo. O livro de Prado Júnior foi saudado por Dante Moreira Leite como veiculador da interpretação que põe um ponto final na leitura ideológica da realidade brasileira. Segundo ele, “A mensagem final do livro é, comparada às ideologias, evidentemente otimista: as características da vida brasileira não foram impostas pelo destino, mas por condições concretas que podem ser modificadas” (Leite, p. 316).

Ao resgatar de modo lacunar a produção intelectual que buscou explicar o nosso presente pelas suas raízes, tomando por referencial teórico as várias teorias deterministas (raciais, climáticas, culturais e econômicas), verificou-se que essas reflexões foram marcadas por um olhar sobre si, mesmo tendo como referência o outro; quer como paradigma a ser alcançado, quer por atribuição de culpa pelo nosso atraso. Se parte dessa produção intelectual externou um pessimismo nada alentador, ou um certo conformismo; outra parte reconheceu o atraso mas o assimilou naturalmente, como decorrência do nosso processo civilizatório, todavia superável pela nossa adesão tardia mas irreversível ao projeto da modernidade.

Por sua vez, os marxistas e as correntes derivadas ou próximas dessa vertente dialogaram com o atraso também se referindo ao outro próspero, atribuindo à razão das desventuras latino-americanas às mais diversas formas de dominação estrangeira: colonialismo, neocolonialismo, imperialismo etc. Com certa sofisticação a corrente cepalina, tendo por expoentes Celso Furtado e Raul Prebisch, culpou pelo nosso subdesenvolvimento as nações centrais e seus capitalistas, por meio do sistema de relações de trocas desiguais (Prebisch), ou do mecanismo das exportações de capitais, controlando nossa economia por dentro (Furtado), e conseqüentemente impedindo o desenvolvimento industrial autônomo. Mais recentemente, a moderna teoria da dependência, versão Fernando Henrique Cardoso/Enzo Faletto, acenou para a possibilidade de países como o Brasil alcançarem o industrialismo sem revolução, através do desenvolvimento dependente e associado aos países centrais, vislumbrando com isso a nossa identificação com o outro, pelo menos com sua face urbano-industrial. A democracia, a cidadania, as liberdades, os direitos civis e sociais são outra conversa.


Bonfim, Manoel. A América Latina: Males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
Candido, Antonio. O significado de Raízes do Brasil, in Raízes do Brasil, Holanda, Sérgio Buarque. 13a. edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
Cardoso, F. H.; Faletto, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
Furtado, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
Gurrieri, A. La obra de Prebisch em la Cepal. México: Fundo de Cultura Econômica, colecion “Lecturas” n. 46, 1982.
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
Joyce, James. Dublinenses (Os mortos). Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1984.
Leite, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1976.
Lewis, Paul H. La crisis del capitalismo argentino. Buenos Aires: Fundo de Cultura Econômica, 1993.
Morse, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (pontos de partida para uma revisão histórica). São Paulo: Ática, 1977.
Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1963.
-------------. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1972.
Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870/1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.



Versão modificado do artigo publicado na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.

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