sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Artigos - Conversas com Cascudo - Enéas Athanázio


 

Revi numa noite destas o documentário “Conversas com Cascudo” que a SESCTV reprisou. É trabalho bem feito, mostrando o mestre na intimidade de seu casarão da Avenida Junqueira Aires e na pujança da sabedoria. Conservou até o fim o cacoete do professor que foi a vida toda, prelecionando, quase declamando lições. Fechou o documentário com a frase, dirigida ao Brasil, que correu mundo, publicada e repetida tantas vezes: “Enxergando pouco e meio surdo, dei de mim o que pude, mas, se for chamado, aqui serei encontrado, pronto a servir como puder ao meu povo e à minha pátria.” Palavras pronunciadas à janela do casarão onde viveu e trabalhou esse “provinciano incurável”, como o apelidou Afrânio Peixoto, com a silhueta inconfundível desenhada contra a claridade, sugando o inseparável charuto. Como Érico Veríssimo em Porto Alegre e Gilberto Freyre no Recife, Luís da Câmara Cascudo (1898/1986) se recusou a deixar a província natal, contribuindo para desmentir o mito de que elevada cultura só é possível nos grandes centros. Todos alcançaram reconhecimento nacional e até internacional, fomentando núcleos culturais importantes ao redor deles em suas regiões.

Decorridos quase vinte anos de sua morte, Cascudo é lembrado como poucos intelectuais brasileiros. Trabalhos de todos os gêneros surgem a respeito de sua obra, embora seja forçoso reconhecer que ainda não teve o biógrafo que merece. As abordagens biográficas existentes são fracionárias e incompletas, deixando de lado aspectos importantes, como as viagens etnográficas que realizou pela África e Portugal, além de outras fases de sua laboriosa vida. Suas Obras Completas vão sendo reeditadas pela Global Editora e ensaios importantes têm sido publicados, merecendo destaque o recente “À mesa com Cascudo”, de Pedro Vicente (*), abordando aspectos muito curiosos. “A cultura popular é o complexo – afirmou o mestre. – Representa a totalidade das atividades normais do povo, do artesanato ao mito, da alimentação ao gesto. Ora, a mim interessa tudo o que é do povo, até o que ele faz no banheiro ou no mato.” Para ele, cultura popular é mais ampla que folclore, como repetiu no documentário referido.

Sendo assim, foi ele buscar os segredos de nossa comida, tema abordado no ensaio de Pedro Vicente. Foi estudar o padrão alimentar da África negra, a transferência da culinária portuguesa para o Brasil, o cardápio indígena e suas influências na alimentação brasileira, sem esquecer as adaptações determinadas pelas condições locais. Considera menores as influências culinárias de outras nacionalidades. O resultado dessas buscas incessantes, cujas notas encheram suas gavetas por longos anos, foi um livro monumental, em dois alentados volumes: “História da Alimentação no Brasil”, clássico da história nacional. Como diz o ensaísta, as investigações de Cascudo iam da água, do pasto, da horta e do pomar à cozinha como fábrica de sonhos.

Tive a inesquecível experiência de passar uma tarde com ele na cidade de Natal, em 1983, três anos antes de seu falecimento. Estava alegre e disposto e muito conversamos. No Memorial Câmara Cascudo, onde se encontra a biblioteca que foi dele, encontrei vários livros meus, todos anotados, sinal de que ele os leu. Chegou mesmo a escrever sobre os contos de “O Azul da Montanha.”

Como disse Drummond, Cascudo deixou de ser uma pessoa, passando a ser nome de dicionário; “o” Cascudo, está “no” 46, Julho de 2005, Págs. 11/20.

Cascudo, consulte “o” Cascudo. Refere-se, é claro, ao “Dicionário Brasileiro de Folclore.”



(*) Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Número 34, Vol.

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