Pergunto-me se é possível se falar de um estado de poesia que encerre o estilo kafkiano. Caso isso seja possível, foi o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo quem melhor o revelou na moderna poesia brasileira. Desconfio também que esse traço tão inequívoco contribuiu para que o poeta-crítico Bruno Tolentino dissesse, anos atrás, ao tomar conhecimento da poesia de Alberto, que “a melhor poesia que se faz no Brasil vem do Nordeste”. Naturalmente que ele tinha em perspectiva poetas da estatura de um Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. No presente, porém, a poesia de Alberto era a prova mais sólida de que essa geração que veio do modernismo, passando pela geração de 45, tinha continuidade no presente.
Alberto encontra Kafka a certa altura da sua poesia para não mais largá-lo. Como intróito ao seu livro Meditação sob os lajedos (Edufrn: Natal, 2002), ele se valeu de uma epígrafe kafkiana: “Que aldeia é esta em que me perdi?”, retirada de O Castelo. Como o agrimensor desse romance, Alberto sofre com o sentimento de perda de norte que aflige o homem dos nossos dias. Por isso, Kafka não cumpre apenas o papel de dar o tom da Meditação; ele o protagoniza, exemplificando-o. É o que mostra o poema abaixo.
Heráclito
Alberto da Cunha Melo
Não só o rosto de Tereza,
Tereza inteira e este arcebispo,
o fragmento do asteróide
Franz Kafka, tudo é irrepetível,
e a cada ano a Terra, doente,
circunda um sol bem diferente;
não há, pois, um plágio perfeito
desse vento vindo do nada
a erodir o chão dos eleitos;
e eis o castigo original:
ser impossível ser igual.
As afinidades de Alberto da Cunha Melo com Kafka distam de longe, até onde sei. Nos últimos encontros que tivemos em Recife, na companhia do amigo comum Pedro Vicente, Alberto foi sedimentando minha convicção de que entre ele e Kafka havia mais do que uma afinidade de ideias; havia uma identidade de visão de mundo. E essa comunhão de pensamento teria de ser necessariamente laica, secular e alheia a qualquer transcendência. Espiritualmente, ele era filho do deísmo de Einstein, herdeiro do panteísmo de Spinoza. E tanto um quanto o outro descartam a existência de um deus pessoal, vendo-o apenas como um princípio causal.
No ensaio que escreveu como apresentação à Meditação..., o escritor Mário Hélio resume a poesia do autor desta forma: “Tomando lições da precariedade da vida – no sentido cósmico e humano – Alberto da Cunha Melo pôde criar uma espécie de metafísica do cotidiano feita de agonias perpétuas”. Livros anteriores do mesmo autor, como Oração pelo poema, Carne de terceira e Yacala confirmam essa impressão.
Essa poesia ensina, todavia. Ensina, por exemplo, que o niilismo pode ser a mais fecunda fonte do parnasso. Para prová-lo ainda uma vez, Alberto escreveu O cão de olhos amarelos – e outros poemas inéditos (A Girafa: Recife, 2006). “Lições tardias”, contido na última parte desse livro, parece resumir em si toda a poética de afinidades com o escritor de Praga. Ou continuá-lo:
Lições Tardias
Alberto da Cunha Melo
Para Silvana Guimarães
Não devemos aprender a esperar.
Devemos, sim,
esquecer as coisas esperadas.
Ainda que nos digam:
“espere-me, à hora tal, em tal jardim”,
o jardim nos deve bastar.
Que a chegada daquilo
que nos fez esperar
seja algo normal naquele mundo,
como a a morte de uma borboleta
ou a fuga de um lagarto nas pedras.
Se nada chega,
se ninguém aparece,
não notaremos a sua falta.
E é ainda sobre chegar ou não a algum lugar, de alguma parte, que trata o poema “Kafka na caatinga”. Ei-lo:
Kafka na caatinga
Alberto da Cunha Melo
Tudo lhe chegava incompleto:
o salário, a alegria
e as certidões de amor
de amadas, pais, amigos
e outras categorias do cinza
que não valem a pena mencionar;
o que lhe importava mesmo
era reunir essas nuvens,
essas lúgubres promessas de água
em alguma chuva precisa
ou definitiva tempestade.
Enfeixar, porém, a poesia do autor de Yacala em um rótulo qualquer, honroso que seja, não seria justo. As afinidades de Alberto da Cunha Melo com Kafka não se confundem com a prosa do autor de Praga; antes caracterizam um estilo que se confunde cada vez mais com a modernidade tardia ou pós-modernidade: a secularização da vida humana, a consciência de sua finitude e da ausência de transcendência. A vida humana passa a ser entendida cada vez mais como transitória, como na filosofia de Heráclito. Alberto prefere a palavra “emigrante”, designando a totalidade da vida sob esse sigo. Terminemos com a leitura de “Canto dos emigrantes”, poema do livro Noticiário (Recife: Edições Pirata, 1979), e que foi selecionado para a antologia Os cem melhores poetas do sécuo XX (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Como o leitor poderá facilmente constatar, tratou-se de uma escolha justíssima.
Canto dos emigrantes
Alberto da Cunha Melo
Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.
Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si ou para todos, para sempre
todos emigram.
Nelson Patriota é jornalista, escritor e membro do Conselho Estadual de Cultura do RN; entre outros livros é autor de Vozes do Nordeste. A charge que ilustra essa página é de autoria do poeta e sociólogo Sebastião Vila Nova.
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