domingo, 24 de maio de 2009

ARTIGOS - A CABEÇA NO FUNDO DO ENTULHO DA LEITURA NA FLORESTA - FERNANDO MONTEIRO


Ao entrar numa das mega-livrarias reluzentes de produtos da chamada “indústria cultural” – entre os quais se enfileiram os livros, esses sobreviventes de um já remoto mundo –, o leitor médio brasileiro com certeza estará em busca, basicamente, de quatro tipos de obras:
 
1) Os best-sellers, isto é, a literatura de entretenimento criadora de produtos para serem consumidos como se consome litros de Coca-Cola;
 
2) As obras factuais, referentes a temas buscados no mundo tangível e real (exemplos: o livro de Dráuzio Varella sobre Carandiru lido junto com novo um título prometendo “sensacionais revelações” sobre o assassinato do presidente Kennedy etc);
 
3) Os livros de auto-ajuda – que não ajudam ninguém a respeito de nada, quer dizer, ajudam [sim] a engordar o faturamento das suas editoras e até dos seus autores) e, em QUARTO e último lugar, o leitor estará procurando, por fim, LITERATURA propriamente dita.
 
Não adianta vir pra cima de mim tentando dizer que, ora, é tudo literatura.
 
Sabemos que não é. Por exemplo: Lya Luft sabe, perfeitamente, que o que ela deu para escrever, nos últimos anos, não é literatura de modo algum, e não adianta ela até ameaçar (conforme ameaçou, num programa televisivo de entrevistas) que “se retiraria” etc, caso os entrevistadores continuassem a chamar de auto-ajuda a auto-ajuda da lavra recente da senhora Luft, com a qual Lya ajuda o editor Sérgio Machado a ajudar a conta bancária própria com os novos títulos da “escritora” gaúcha auto-ajuditícia.
 
Os livros factuais que estão aí, na maioria praticamente absoluta: não adianta enrolar, também neste “segmento”. Truman Capote escreveu um grande livro – A Sangue Frio – com base na realidade da vida de dois assassinos condenados à morte, mas esse conteúdo o talentoso norte-americano transtornou e transformou, fez virar literatura, como novo tipo de “reportagem” quase ficcionalmente tratada etc etc. O futuro monturo de Carandiru mornamente recordado pelo médico Varella tem alguns momentos de interesse, sim, mas o capote de Capote era um número maior, e isso serve de comentário aos outros Carandirus plantados nas vitrines brilhando como catarro em parede.
 
Recuemos um pouco no tempo: há menos de trinta anos, a então boa cabeça do leitor brasileiro estava motivando matéria na revista VEJA (12/08/1981). O título era “Qualidade é sucesso”, e o texto – não assinado – assinalava “a volta da literatura de qualidade, com os clássicos nas livrarias e Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, comemorando um semestre na lista dos mais vendidos no país”.
Recuemos mais ainda: a primeira relação brasileira dos livros mais vendidos, publicada em 1978, apresentava um romance de Érico Veríssimo – Incidente em Antares –, o estudo A Hegemonia dos Estados Unidos, de Celso Furtado, e um ensaio do americano Alvin Toffler (alguém se lembra do futurólogo?) como campeão de vendas: O Choque do Futuro. Consultando-se a relação, nos meses subsequente, Érico comparece com o primeiro volume de sua autobiografia – Solo de Clarineta – e o cinematográfico O Exorcista, de William P. Blatty, aparece nas primeiras posições entre os estrangeiros, numa altura em que a revista separava obras nacionais e de fora (embora misturasse ficção com não-ficção).
 
No ano “glorioso” de 1981 – da matéria na VEJA – o leitor brasuca havia levado ao primeiríssimo lugar (ao longo de cinco meses) o já citado e excelente Memórias de Adriano, e, em seguida, estava lendo Sempreviva – romance do bom Antonio Callado – e se mostrava também influenciado pelo cinema, ao guindar O Beijo da Mulher-Aranha, de Manuel Puig, às posições de topo nas quais O Exorcista já fizera ecoar aqui a tendência observada pelo também roteirista Vidal. Na lista memorável, vinha, em seguida, um livro mais ou menos (Um Homem, de Oriana Fallaci, com alguma qualidade pelo menos do “novo jornalismo” etc), e O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, na quarta e quinta posições, respectivamente, sendo o argentino um freqüentador ocasional do topo da relação, no tempo daquele país ainda civilizado, literariamente, que foi, até pouco tempo, o Brasil que, em 1981, se mostrava surpreendente mesmo era na “sexta posição” (a confiar na VEJA etc) de agosto daquele ano: senhores e senhoras, brasileiras e brasileiras, nordestinos e sudestinos, o nosso Pindorama estava lendo – com cinco mil exemplares vendidos em um mês – nada mais nada menos que Poesia, de T. S. Eliot!
 
Poeta considerado difícil e requintado, Eliot tivera a primeira edição de uma antologia da Nova Fronteira esgotada no primeiro mês do lançamento no segundo semestre do ano da graça de 1981, o tal cuja dos “livros mais vendidos” prosseguia com a sétima posição ocupada por uma obra do excelente Julio Cortázar – Alguém que Anda por aí –, seguida sabem do quê? Outra surpresa: dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Marcel Proust, esgotada em dois meses, enquanto 190.000 exemplares de Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski, haviam sido vendidos em bancas de revista, na coleção “Gênios da Literatura”, selecionada com notável apuro.
É tudo verdade, como diria Orson Welles. (Ou, pelo menos, é a verdade de VEJA, vejam bem).
O que deu errado?
 
Menos de trinta anos depois, na selva atual, você vai e confere que estamos patinando, nas listas, no mangue pantanoso dos Paulos Coelhos, ou esforçamo-nos para alcançar as 100 Escovadas Antes de Ir para a Cama (Melissa Panarello), queremos saber Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor? (Allan e Barbara Pease), se Tudo Valeu a Pena (Zibia Gasparetto) para o Homem-Cobra e a Mulher-Polvo (Içami Tiba) e também Quem Mexeu no Meu Queijo? – pergunta transcendental do título da obra de Spencer Johnson (seja lá quem for).
 
Harry Potter e a pedra filosofal já alcançou a marca dos 110 milhões de exemplares vendidos, e é o décimo colocado entre na lista das maiores vendagens de livros de todos os tempos da semana passada – logo depois do Livro dos Mórmons e de outros campeões como o Dom Quixote, de Cervantes, o Livro de Pensamentos de Mao, o Alcorão e a Bíblia Sagrada, o super-campeão, com a assinatura do autor mais lido de todos os tempos: Deus (embora Paul Rabbit pretenda desbancá-Lo do ranking, em mais alguns anos, mas isso é outra história). Nestes tempos de pouca fé, as pessoas procuram livros que lhes fortaleçam a crença mais em si próprias do que no Autor de longas barbas. Atendendo a isso, Os segredos da mente milionária, de T. Harv Eker logrou ocupar a terceira posição, durante meses, nas listas profundamente mudadas de um mundo em que tudo vale a pena, Lya, se a alma for pequena, Transformando o Suor em Ouro, segundo o também escritor Bernardinho. Sim, estão transformando suor – e outras matérias secretadas pelo nosso corpo – em ouro, nas livrarias atulhadas de “auto-ajuda”. Você tem centenas de opções, incluindo os livros da já mencionada Luft, além de Como se tornar um líder servidor, de James Hunter, A lei da atração, de Michael Loster, Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, de Allan Pease, Quem mexeu no meu queijo?, de Spencer Johnson, A estratégia do oceano azul – como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante, de W. Chan Kim e Renée Mauborene, Desvendando os segredos da linguagem corporal, de Allan Pease e Barbara Pease, Pai rico, pai pobre, de Robert T. Kiyosaki, Aprender a viver, de Luc Ferry, Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, A ciranda das mulheres sábias e Mulheres que correm com os lobos, ambos de Clarissa Pinkola Estes, As 48 leis do poder, de Robert Greene, Dinheiro: os segredos de quem tem, de Gustav Petrasunas Cerbasi, A física da alma, de Amit Goswami (um detalhe: os escritores de auto-ajuda, brasileiros e estrangeiros, parecem gostar de nomes estranhos; Lya Luft não é tão simples como Maria da Silva, mas é certamente superado por T. Harv Eker, W. Chan Kim, C. Pinkola Estes, G. Petrasuna Cerbasi, Amit Goswami e outras excentricidades talvez escolhidas para fazer supor que a “ajuda” está vindo de extra-terrestres disfarçados de autores humanóides)...
 
Continuando: há outros títulos, nas listas, que revelam a presença maciça do gênero que fez a fortuna de Lair Ribeiro (que, por sinal, desapareceu das últimas listagens). Não posso deixar de ser citado Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos cerca, de Sthepen Dubner (outro nome duvidoso) e Steven Levitt, além do encolhido O gerente minuto, saído da cachola de certo Kenneth H. Blanchard. Seu conterrâneo Jack Welch – que tem nome de boxeador de Los Angeles – comparece nas listas com Paixão por vencer, na linha da Lya de Perdas e ganhos (será que ela seguiu na trilha da autora de Perdas necessárias, de Judith Viorst, também nas listas das mais vendidas, literalmente?). E três sujeitos batizados com os nomes de Bruce Patton, William L. Ury e Roger Fish, se juntaram para escrever Como chegar do sim à negociação de acordos sem concessões, também muito bem vendido, sempre segundo as listas das revistas.
 
No topo delas, algo de qualidade inequívoca como Adriano da Yourcenar foi substituído pela obra campeã do indefectível Khaled Hosseini, O caçador de pipas, imediatamente seguida por A cidade do sol escrito às pressas, pelo mesmo Khaled, para aproveitar a “onda” de Irã, Afeganistão, Iraque, Paquistão e outros países que estão na moda literária, sejam em termos de ficção ou de “reportagem”. De Bagdá, com muito amor, de Jay Kopelman e Melinda Roth e O livreiro de Cabul, de Arne Seirstad (ao qual se seguiu o autobiográfico Eu sou o livreiro de Cabul, de Shah Muhammad Rais, personagem real de O livreiro), apareceram, inde-fecal-tivelmente, com as suas comerciais abordagens de antigas culturas que pelo menos a jovem Arne nunca teve o interesse de estudar à sério.
 
O que deu errado? A pergunta está lançada para o debate da I Bienal da Floresta do Livro e da Leitura.

Fernando Monteiro, ensaista, poeta e ficcionista. Entre outros livros publicou: Aspades, ETs, Etc., Armada América e O grau Graumann.

Um comentário:

GRUPO KABRA disse...

Maravilha Pedro esta matéria com nosso grande amigo e grande escritor pernambucano, o Fernando Monteiro, um dia fernando escreverá sobre a ida dele a STAMBUL, não sei nem se já não o fez, mas deveria, é sempre bom ler algo sobre o berço da humanidade.

grande abarço

FRED SVENDSEN
Artista Plástico