sábado, 6 de agosto de 2011

Memórias - Varal das lembranças - As salas de cinema de minha iniciação / Pedro Vicente Costa Sobrinho


Sala do Cine São Luís - Recife-PE


Logo cedo e ainda muito criança eu comecei a freqüentar salas de cinema. Tia Neném, quase mãe adotiva, foi quem, desde os meus cinco anos, levou-me a essas salas e nesse tempo certamente eu ainda não sabia ler. A primeira sala de projeção à qual tive acesso, salvo engano, foi a do pequeno Cine Alhambra, que pertencia a Vicente Carício, velha raposa do PSD local, a quem já adolescente eu vim a conhecer. O Cine Alhambra localizava-se na Rua 13 de maio, também era conhecido popularmente como o cinema velho, ao ser então pelo público comparado com o Cine Samuel Campelo, sala de exibição que havia sido recentemente construida na cidade de Jaboatão e cujo prédio em ruínas até hoje pode ser visto na Praça Nossa Senhora do Rosário antes conhecida como Pátio da Feira, na vetusta Rua Barão de Lucena. A ida ao cinema, sempre aos domingos, era um ritual na minha família. Meu avô Chico Antônio, meu pai e Tia Neném lideravam o grupo, que tinha como ponto de encontro e saída a casa de meu avô, na Rua Padre Roma; esta era então uma rua bem comum na paisagem dos bairros operários da cidade: calçamento de barro batido, com maioria das casas de taipa sem água encanada e esgoto; poucas casas estavam ligadas a rede de energia elétrica, cujo posteamento quase sempre não dispunha de luminárias. Meu avô e minha Tia Neném eram casados e moravam de aluguel numa casa de taipa de quatro cômodos, coberta com telhas de cerâmica, teto sem forro e piso de cimento com ocra vermelha; havia ainda uma pequena puxada coberta com zinco onde ficava o fogão de barro. Por detrás, um estreito e comprido quintal com algumas árvores frutíferas, entre as quais se destacava uma frondosa e produtiva jaqueira, e bem longe, no fundo do quintal, situavam-se a privada e a estrebaria da jumenta Garota. Esta humilde casa também não dispunha de cacimba de água nem luz elétrica. De lá então o cortejo saía a caminhar pelas ruas quase às escuras ou mal iluminadas na direção da sala de cinema que ficava relativamente perto da Rua Padre Roma, cerca de pouco mais mil metros de percurso. Muitas vezes para encurtar o caminho nós íamos pelas estreitas margens da via férrea no trecho que ligava o açude da antiga pedreira de seu Neves ao Beco de Colônia. Lembro-me bem que os adultos para essas ocasiões vestiam-se com certo rigor: paletó e calça quase sempre da mesma cor, camisa de colarinho e gravata. Meu avô, altivo e empertigado, trajava o seu usual terno branco, camisa da mesma cor e gravata vermelha: única peça de roupa que possuía para uso em situações que ele considerava especiais. Meu pai e meu avô eram de pouca leitura, quase analfabetos, e não conseguiam acompanhar a maldita legenda, às vezes rápida, às vezes longa demais, e, por sua vez  Tia Neném sempre estava disponível para lhes socorrer e esclarecer o que parecia mais difícil de ser entendido no enredo dos filmes que juntos assistiam. A ausência da dublagem em filmes estrangeiros justificava plenamente a preferência deles por filmes brasileiros, principalmente pelas comédias musicais que depois ficaram  sendo conhecidas como chanchadas. No meu caso, também por não saber ou ainda não ler bem, mesmo com a certeza de que podia contar com o auxílio de Tia Neném, eu sempre procurei da melhor maneira possível concentrar minha mente e meus olhos para que seguissem com toda atenção a seqüência de imagens em movimento na tela, e assim pudesse atenuar o obstáculo que me era posto pela legenda; esse pequeno esforço certamente garantiu-me como recompensa um melhor entendimento do filme, e, desse modo, eu conseguia extrair dele o maior quinhão possível de fruição e prazer. Hoje, posso dizer com convicção e sem qualquer temor de errar que em parte às legendas de filmes e em parte às histórias em quadrinhos é provável que eu deva, com relativa precocidade, o acesso ao hábito da leitura; e que a eles também atribuo um papel de inquestionável relevância na minha formação de leitor.

A freqüência de público ao Cine Alhambra, suponho eu, pouco a pouco foi se tornando menor logo depois  que começou a funcionar o novo cinema. O Cine Teatro Samuel Campelo foi construido em 1945, no mesmo terreno onde ficava o Teatro Municipal, velho e belo  edifício datado  de 1911, que funcionou como teatro e cinema até 1945, quando veio a ser demolido. A sala do cinema novo era mais ampla e confortável com quase mil lugares, poltronas novas, ventiladores, equipada com som e projetores de 35 milímetros de última geração  e programa atualizado de filmes; no ano de 1956, o palco e a tela do cinema foram reformados para que fosse instalada a projeção em cinemascope.  É provável que o velho Cine Alhambra não tenha resistido mais que um ano de competição com a nova sala exibidora, e daí então ele lacrou suas portas e sumiu sem deixar vestígios. Salvo engano, creio eu que os filmes que estavam em cartaz nas principais salas de cinema de Recife foram também exibidos cedo ou pouco mais tarde no Cine Teatro Samuel Campelo, e não era raro o lançamento simultâneo de algumas fitas.

Burt Lancaster e Gina Lollobrigida - Trapézio

Nem sempre quando criança eu pude freqüentar regularmente as sessões noturnas de cinema, aos domingos. A censura de idade me impedia, pois geralmente os filmes exibidos à noite eram para maiores de dez anos. Lembro-me ainda que à época os filmes tinham censura livre ou por faixa etária eram proibidos para menores de dez , quatorze e dezoito anos. Apesar de muito curioso eu nunca procurei saber por que Tia Neném chamava as sessões noturnas de cinema de “soirées”; e também igualmente por que ela chamava de matinês as sessões que regularmente aconteciam nas tardes de sábados e domingos e, eventualmente, aos domingos pela manhã. Meu amigo e poeta Alberto da Cunha Melo dizia-me que era coisa de brasileiro chamar de matinées, palavra francesa, as sessões vespertinas e infantis de cinema. Nos dias de sábado ou domingo durante quase seis anos sucessivos eu freqüentei regularmente às matinês do Cine Samuel Campelo, acompanhado quase sempre pela Tia Neném e algumas vezes também conduzido pela minha prima Maninha, que se chamava Claudete; exímia contadora de histórias que desde cedo me fez navegar pelo fantástico universo dos contos de fadas, Malazartes, Carochinha e Trancoso. Aos seis anos eu já conseguia ler as legendas dos filmes e isso me dava melhor condição para compreender seus enredos e tramas. Os filmes programados nas matinês quase sempre eram faroestes tipo “B”, também popularmente conhecidos por filmes de caubói, e quase sempre vinham acompanhados de fitas seriadas. Inicialmente o dinheiro para compra do ingresso para as matinês vinha do bolso de meu pai, e, na maioria das vezes,  dado pela Tia Neném, que ganhava esse dinheiro com muito esforço e sacrifício, dia e noite a pedalar numa velha máquina de costura. Aos sete anos eu encontrei uma forma de ganhar dinheiro para custear a entrada no cinema, eximindo portanto meu pai e Tia Neném desse encargo a mais que, com certeza, pesava muito em seus magros salários. Desde então, ao voltar da escola, quase todos os dias eu saía munido de um saco de estopa ou carro de mão para coletar, nos fundos de quintais e ruas do bairro, cacos e vasilhames de vidro, papel velho e metais: cobre, latão, bronze, ferro e alumínio, que depois eram vendidos num ferro velho que até hoje se encontra instalado ao lado direito da cabeceira da ponte que dava acesso a fabrica Portela, indústria de papel que, com outro nome, ainda hoje existe em Jaboatão. Naquele tempo até que era uma grana de bom tamanho, pois dava bem pra que eu comprasse a entrada ao cinema, e, com a sobra, ainda pudesse adquirir balas, chicletes, drops, amendoins e até mesmo gibis: revistas de quadrinhos que foram minha primeira literatura.

Flash Gordon no Planeta Mongo

No Cine Teatro Samuel Campelo eu assisti muitos filmes de caubói, seriados, comédias e dramas, centenas deles. Afora alguns personagens que me foram transmitidos pelas narrativas orais e que permaneceram na minha memória, eu ouso dizer que a maioria dos meus mitos e heróis foram forjados nas matinês e soirées do Cine Teatro Samuel Campelo. É bom destacar que esses mitos e heróis estavam também presentes nas muitas revistas de quadrinhos que eu lia, não sendo, portanto, nada de estranho que aos doze anos naturalmente o meu imaginário estivesse sobejamente povoado por Durango Kid, Zorro, Cisco Kid, Rocky Lane, Tex Ritter, Bill Elliott, Rex Allen, Flash Gordon, Roy Rogers, Gene Autry, Hopalong Cassidy, Tim Holt, Jim das Selvas, Tom Mix, Bomba, Fantasma, Capitão Marvel, Super Homem, Tarzan e outros personagens de filmes e seriados. Alguns dos seriados que eu assisti nas matinês ficaram para sempre em minha memória: O Filho do Zorro, O Falcão do Deserto, Mistério das Selvas, A Adaga de Salomão, Flash Gordon nos planetas Marte e Mongo, A Deusa de Joba, O Comando Secreto e A Ilha Misteriosa. Das soirées lembro-me bem dos nomes de alguns astros de filmes: Gary Cooper, Burt Lancaster, Alan Ladd, John Wayne, Errol Flynn, Cantinflas e James Cagney (que eram os eleitos de meu pai),Audie Murphy, James Stewart, Henry Fonda, Humphrey Bogart, Gregory Peck, Raf Vallone, Oscarito, Grande Otelo, Cyl Farney, Anselmo Duarte, Mazzaropi e Ankito. Nesse elenco de astros e mocinhos eu incluo especialmente o legendário ator Roy Barcroft, o suposto bandido “João Branco”, cuja presença sempre foi muito solicitada para satisfazer certo sadismo do público infantil das matinês. Mulheres? Atrizes? Não me lembro bem delas!?  Isso porque  até então eu pouco me ligava nelas; mas, com certeza, até aos treze anos, pois daí por diante as mulheres passaram a me tomar parte substancial da minha atenção. Das muitas divas que me perturbaram a imaginação e o sono eu guardarei sempre ternas lembranças de Grace Kelly, Ingrid Bergman, Kim Novak, Marilyn Monroe, Ava Gardner, Elizabeth Taylor, Maureen O’Hara, Maureen O’Sullivan, Silvana Mangano, Yvonne De Carlo, Cláudia Cardinalle, Alida Valle, Sofia Loren, Gina Lolobrigida, Dorothy Lamour e Doris Day.


Ingrid Bergman

Dos muitos heróis, mitos e astros do cinema que eu cultivei durante a infância e meia adolescência e que me ficaram na memória, Tarzan, dentre eles, merece menção muito especial. Meu pai, que também admirava o herói das selvas, comprava regularmente numa livraria instalada na Estação Ferroviária Central de Recife a edição do mês da revista da EBAL, que trazia em suas páginas as aventuras desse personagem mitológico, criado por Edgar Rice Burroughs. Eu colecionava então todos os números dessa revista e como forma de retribuição ao presente que meu pai com sacrifício me ofertava, eu lia em voz alta as histórias de Tarzan para ele. A leitura das revistas de quadrinhos de Tarzan foi por mim feita por anos a fio, e, de vez em quando, os livros de Edgar Rice Burroughs também faziam parte desses encontros familiares de leitura. Lembro-me, ainda, que eu assisti a quase todos os filmes de Tarzan exibidos naquele tempo nas salas de cinema de Jaboatão, e certamente foi o meu pai que me levou para ver a maioria dessas fitas. O cine nem sempre era o Samuel Campelo, pois, além dele, Jaboatão dispunha de mais quatro ou cinco salas de cinema espalhadas pelo município. Freqüentei, com certeza, a quatro delas, cujas instalações ficavam nos distritos de Prazeres, Cavaleiro, e na Vila Militar Floriano Peixoto em Socorro. Em Cavaleiro, fui muitas vezes ao Cine São José, onde me recordo de ter visto o documentário Mundo Cão; algumas vezes, também frequentei  à precária sala do Cine Guarany, onde assistí aos quinze anos o primeiro filme pornô. Na Vila Militar ficava o Cine Floriano, que era mais freqüentado por militares e diariamente exibia filmes em duas sessões noturnas; a primeira para recrutas e soldados e a segunda para os oficiais e suas famílias; e esta última era até então aberta ao público. Apesar de ficar distante uma légua ou pouco mais, lá íamos de ônibus ou de trem, com a volta quase sempre feita através de caminhada. Nessa sala da Vila Militar eu assisti a quase todos os filmes de Tarzan aos quais tive acesso ao longo de minha infância. No papel do herói das selvas eu conheci através desses filmes os atores Johnny Weissmuller, Lex Barker e Gordon Scott; nos seriados somente vi atuando como Tarzan, Hermann Brix, o mesmo Bruce Bennett.


Chita, Johnny Sheffield (Boy), Johnny Weissmuller (Tarzan) e Maureen O'Sullivan (Jane)

No ano de 1956, com onze anos, meus pais se mudaram pro município de Ribeirão na zona da mata sul de Pernambuco, onde lá morei por quase seis anos. A cidade contava com duas salas de exibição: o Cine Arte, instalado na João Pessoa, principal rua da cidade; e o Cine Bairro Novo, que ficava próximo ao grupo escolar Padre Américo Novais, no qual eu concluí meu curso primário. Ao mudar de local e ir para um prédio novo na Rua Barão de Serinhaém, o Cine Bairro Novo passou então a se chamar Cine Bandeirantes. Os dois referidos cinemas ficavam até relativamente próximos da casa onde eu morava com meus pais, que se situava na Rua Falcão de Lacerda,  próxima da Caixa d’ Água, que distribuia água tratada para cidade; tão somente bastava então descer uma pequena ladeira de barro batido e caminhar por duas ou três quadras com ruas calçadas de pedras na direção de uma ou da outra sala de cinema; não mais que um percurso de um milhar de metros. O Cine Bairro Novo somente exibia fitas na bitola 16 mm e em sessões noturnas; sua sala e acomodações eram precárias e o projetor era barulhento e com muitas paralisações; desta sala somente me recordo de três filmes: Os sete samurais, de Akira Kurosawa, Doze homens e uma sentença, filme de estréia do diretor americano Sidney Lumet, e Arroz Amargo, do italiano Giuseppe De Sanctis. Lembro-me até hoje muito bem que numa certa noite o Cine Bairro Novo estava a exibir o filme Fanfan La Tulipe, com Gérard Philipe e Gina Lolobrigida, e, no meio da fita, o velho projetor de 16mm enguiçou e os ingressos naturalmente foram devolvidos; todavia, a sessão então anunciada para que esse mesmo filme voltasse a ser exibido infelizmente  nunca veio a acontecer. Não mais voltei a ver Fanfan La Tulipe e também não mais voltei a assistir a um só filme com o ator Gérard Philipe, figura mitológica do teatro e cinema de França. O Cine Bandeirantes, seu sucessor, era por sua vez também pequeno, cerca de 150 lugares, projetor novo, no entanto ainda de 16 mm. A oficina de marcenaria do meu pai localizava-se muito próxima, quase no mesmo quarteirão onde ficava o prédio do cinema. Ainda me recordo com certa nitidez de haver muitas vezes encontrado e conversado com seu Ismael Ribas sobre cinema e filmes; o dono do Cine Bandeirantes era sem dúvida uma pessoa muito simpática, cordial e refinada. A outra sala, o Cine Arte, eu  quero sobretudo a ele  atribuir o   papel mais relevante  na minha  formação como apreciador de cinema.


Silvana Mangano (ao centro) - Arroz Amargo, de Giuseppe De Santis

Naquele tempo, a sala do Cine Arte era até de bom tamanho, pois dispunha de quase meio milhar de poltronas. A sala era dividida em primeira e segunda classes, essas duas áreas estavam separadas por gradil, com cadeiras e preços diferenciados. Durante o tempo de espera para  início do filme, o serviço de som reproduzia  repertório musical que ia do erudito ao popular. Durante esse curto prelúdio, eu pude ouvir péla primeira vez em minha vida a muitas valsas de Johann Strauss Jr: Valsa do Imperador, Vida de Artista, Danúbio Azul, As Mil e uma Noites, Contos do Bosque de Viena, e, ainda, a Serenata de Schubert (Ständchen), na voz de Jairro Aguiar, com letra em português de autor desconhecido, numa parceria ousada e que certamente, suponho eu, jamais seria consentida pelo genial  mestre de Viena. Por sua vez, o repertório de música popular reproduzido na sala também era diversifcado e  de boa escolha; desse, contudo, em vez dos títulos das  músicas, eu somente retive em minha memória os nomes de alguns dos seus intérpretes: Nelson Gonçalves, Jairro Amorim, Bievenido Granda, Caubi Peixoto, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Carlos Galhardo e Orlando Silva. Nesse mesmo tempo de espera, um moço, que carregava uma caixa-tabuleiro com tiras de couro enlaçadas ao pescoço, vendia balas, gomas de mascar, chocolates, pastilhas, drops e outras guloseimas ao público. As sessões de sábado e domingo superlotavam e devido a isso sempre foram monitoradas por policiais, como garantia de certa tranqüilidade ao expectador. O Cine Arte sempre me foi um ambiente de afetividade quase familiar. O projecionista do Cine Arte, o mestre de obras João Saturnino, era meu vizinho; seus filhos Miranda, Milton e Miguel foram à época meus bons amigos, e faziam bico como auxiliares do pai na cabine de projeção, e, por rodízio, também eram eles responsáveis pela venda de guloseimas dentro da sala do cinema. O gerente do Cine Arte, Sr. Isaac, dono do melhor bar e sala de sinuca da cidade, era parceiro de meu pai no jogo de bilhar. A gentil e simpática senhora, Dna. Carmelita,  que trabalhava na portaria do cinema era minha amiga. Dá até pra rir: o policial que monitorava a sala do cinema era o cabo Miguel, meu colega de ginásio. Das matinês do Cine Arte, guardo comigo uma lembrança que certamente eu jamais vou esquecer: a presença de Marlúcia, minha namoradinha de ocasião, a quem durante as sessões, às escuras, eu furtivamente bolinava: beijava-lhe a boca de lábios carnudos e corados, acariciava-lhe os seios duros e pequenos, e deslizava devagar minha mão sobre sua calcinha para sentir a morna umidade  do seu sexo. Diante de tudo isso, só me resta naturalmente lembrar que a ligação que eu cultivei com o Cine Arte foi de natureza bem diferente das relações que eu tive com outras salas de cinema; mesmo com o Cine Teatro Samuel Campelo, apesar dos muitos amigos que juntos durante anos a fio assistimos filmes em sua sala,  sempre  nele eu me considerei um expectador anônimo, simplesmente mais um rosto perdido na multidão.

Oscarito e Grande Otelo

Do mesmo modo que no Cine Teatro Samuel Campelo, a platéia das matinês do Cine Arte era também muito inquieta e barulhenta. Esse comportamento da platéia era sobejamente justificado por se tratar de um público que na sua maioria era de crianças e adolescentes. Assobios, gritos estridentes, aplausos, vaias e batidas ensurdecedoras nas cadeiras faziam coro nos momentos de ação e no início e fim dos capítulos dos seriados. Os cavalos adestrados do mocinho, especialmente Black Jack e Trigger, também motivavam igual barulhada. Mas, em minha memória ficou gravado mesmo o barulho ensurdecedor que a platéia fazia quando o letreiro de iniciação do filme anunciava a presença de personagem com suposto nome de João Branco, que era por todos conhecido como o vilão que desafiava o mocinho em muitas fitas de caubói e dele recebia surras homéricas. Anos depois eu soube que João Branco era tão somente o responsável pelas legendas em português de muitas fitas de cinema, especialmente de faroestes; e quem protagonizava o bandido nesses filmes era o inesquecível Roy Barcroft, veterano nesse papel nos chamados filmes faroestes classificados como “B” de produção americana.

Roy Barcroft

Durante todo o tempo que eu morei em Ribeirão raramente eu deixei de ir às sessões noturnas de cinema aos domingos e feriados. Algumas vezes, eu freqüentei a sessões do Cine Arte no meio da semana, no entanto isso somente acontecia nos feriados ou quando gazeteava aulas do Colégio, juntamente com o saudoso Aírton, meu melhor amigo no curso ginasial da Escola Técnica de Comércio de Ribeirão. Um fato curioso, não se podia ter acesso à sala de cinema trajando a farda da escola, isso devido à ordem expressa aos donos de casas de diversão pelo Padre Mousinho, pároco da cidade, diretor do colégio e autoridade moral de maior respeito junto à comunidade. O disfarce era sempre trazer comigo para escola outra camisa por baixo do blusão da farda; no intervalo da primeira aula, sair às escondidas e despir-me mais adiante do tal blusão. Tudo isso se fazia quase sempre muito rápido, um pouco antes do acesso às sessões, que iniciavam pontualmente às oito horas da noite. Ás matinês quase sempre eu não podia ir, pois logo que comecei a trabalhar como balconista no comércio, durante as tardes dos sábados e domingos eu estava geralmente ocupado; além disso, os filmes de caubói e seriados exibidos nessas sessões vespertinas já não me despertavam o mesmo interesse de anos atrás. A partir dos meus treze anos a sala de sinuca e as partidas de futebol dos campeonatos local e estadual foram pouco a pouco ocupando espaço no meu já então reduzido tempo livre; e, como bom torcedor do Santa Cruz, eu não podia perder a transmissão pelo rádio a nenhum jogo da cobra coral que fosse realizado às tardes de domingo. Mas, apesar dessas lacunas, eu posso afirmar que, durante os cinco anos que morei em Ribeirão, com certeza mais de três centenas de filmes eu assisti em suas duas salas de cinema; muito, dentre eles, eu ainda considero como os filmes de minha vida.



Rocco e seus irmãos - Luchino Visconti



Voltei para Jaboatão no meio do ano de 1960, na condição de adolescente pobre e ginasiano, com pesada carga de filmes assistidos e já um leitor prolixo de quadrinhos e de livros de ciência e literatura; logo ao chegar eu fui posto diante de uma nova realidade com novos desafios para enfrentar. Com certa urgência eu precisava  arranjar um trabalho para ajudar nas despesas de casa. O primeiro emprego foi na secção de embalagem da firma Joaquim Matoso e Filhos Ltda. A outra ocupação também foi no comércio, como balconista e dublê de gerente na firma Antonio C. Sá Barreto. Pouco tempo depois, veio o engajamento na militância política, e tornei-me então profissional remunerado pelo Partido Comunista Brasileiro, o saudoso PCB. Eesse tempo de volta a Jaboatão também foi muito rico e fértil, pois marcado por novos encontros e reencontros com pessoas que tiveram papel importante nas decisões que orientaram meu projeto de vida; entre elas menciono  Alberto da Cunha Melo, Jaci Bezerra Lima, Sebastião Ricardo, David (Touro Sentado) Capistrano e José (Dedé) Napoleão. Diante dessas mudanças de curso, o Cine Samuel Campelo já então em franca decadência não podia mais preservar o forte apelo de antes. Recife, por sua vez, com suas dezenas de salas de projeção, oferecia como alternativa um programa extenso e variado de filmes, e naturalmente valia a pena pegar o trem ou ônibus aos domingos e escolher com certo rigor a sala de cinema e a fita que estava no momento em cartaz. Para essa escolha eu já avaliava o filme a ser assistido com novos critérios, e neles incluía ator, atriz e direção. Os Cines Moderno, São Luis, Art Palácio, Trianon, Glória e algumas vezes o distante Coliseu foram as salas que mais eu freqüentei em Recife, e que me deram acesso a outras filmografias especialmente a francesa e italiana. Em que pese decerto à importância que essas salas de Recife e os filmes que nelas assisti tiveram na minha formação de cinéfilo, eu considero que nem esses filmes nem tampouco essas salas foram tão relevantes para tal formação quanto os filmes que eu vi no Cine Samuel Campelo e, sobretudo no Cine Arte. Muitos filmes que ao longo dos cinco aos dezenove anos eu vi nos cinemas de Jaboatão, Ribeirão e Recife, e que graças ao acesso aos Cineclubes, Televisão a cabo e especialmente as fitas em VHS e DVD, algum tempo depois eu tive a feliz oportunidade de revê-los, certamente, eu posso confessar com toda franqueza que eles não me causaram nenhuma decepção. O que me parece estranho, insólito e até digno de registro é o fato de que durante todos esses anos de iniciação eu não ter visto a um só filme de Charles Chaplin. Mas este é outro assunto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Pedro,
Lendo suas últimas crônicas, falando de Ribeirão,onde também morei alguns anos ,achei incrível,estudamos no mesmo Grupo escolar, fomos alunos das mesmas professoras, Therezinha,minha madrinha, e D.Cleonice. Conhecemos as mesmas pessoas, Sr.Isaac, a Sra. do cinema, D. Carmelita,Dr.Stenio, Padre Mouzinho. Pessoas que hoje, são como um quadro no mural da memória. Saí de Ribeirão em 1958. Nem falarei de Jaboatão, que fomos contemporâneos. Estudamos no mesmo Colégio, mas ai é outra historia. Desculpe a invasão. Abraço Rosa Matilde

Anônimo disse...

Minha caríssima Rosa,
Estou felicíssimo com sua angelical invasão. Somos frutos das mesmas escolas e dos mesmos professes em Ribeirão. Quando reencontro pessoas de nossa época eu sempre procuro retomar os contatos. A internet tem sido uma facilitadora, e através do meu blog e do facebook tenho tido essa sempre renovada alegria. Agora eu me encontro em Natal, diga-me onde você está e de agora por diante vamos nos comunicar. Se você verificar meu blog, vai encontrar que eu me tornei escritor com alguns livros já publicados, agora eu estou escrevendo crônicas de memórias e Ribeirão e Jaboatão que vão aparecer constantemente. Um abração, Pedro Vicente.

Anônimo disse...

Pedro,
Obrigada pela atenção, respondendo-me. Foi pela lista do Blog do Homero Fonseca que visitei pela primeira vez o seu,não sei precisamente quando.Identifiquei-o posteriormente,pelas postagens sobre os seus amigos do colégio,de um tempo que também fui aluna e os conhecia.Não lembro pessoalmente de você, mas do seu apelido nao esqueci.Confirmei,salvo engano , com Zé Luis se realmente era você, faz 3 ou 4 anos . Porém, sair do silêncio de leitora foi alguém falando de um tempo que foi infância de Ribeirão, de pessoas que conheci e não tenho noticia alguma.Lembro de um médico ,Dr.Nelson Peixoto que morava na João Pessoa ele usava um chapéu e estava sempre de paletó e gravata, para mim uma figura de romance, inesquecível ,pelo tempo ja deve ter morrido.Morei na João Pessoa quase em frente ao Cine Art.Creio que a última vez que fui lá, deve ter sido no ano 1966 ou67.Falando do hoje ,vivo em Brasília desde 1971,sou dentista aposentada do TST.Vou sempre à Recife. Espero que das crônicas de Ribeirão e Jaboatão saia mais um livro .Não li nenhum dos seus livros,por questões geograficas provavelmente,dos seus amigos,sempre acompanhei as publicações porque estou sempre em contato com Recife.Talvez eu lembre mais alguma coisa daquele tempo , contarei outro dia. Abraço Rosa Matilde

Anônimo disse...

Rosa,
Você falou em Zé Luis, esse foi junto com Alberto da Cunha Melo meus bons amigos de Jaboatão; e saímos juntos do jornaleco Dia Virá. Eu me refiro a eles no próximo post que faço em meu blog, com matéria também da memória. Se vieres a lembrar de alguns amigos de Ribeirão passe-me os nomes, pois faço questão de tentar contatos com eles. Meu próximo tema vão ser os circos que passavam pela cidade, nessa crônica falo de Luciano da farmácia e seu cabelo alisado com brilhantina glostora. Do maestro Miro da banda de música da cidade e seu irmão que se apresentava no circo Edson, sem ser ele o palhaço, era, no entanto o principal humorista. Além disso, falo do palhaço Cipaúba que fugiu com a bela Ilza, moça prendada da cidade. São coisas da vida minha ex-colega e atual amiga. Abração, Pedro Vicente.