segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Memórias - Varal das Lembranças: Política, sindicato e comunismo na minha formação (2) - Pedro Vicente Costa Sobrinho


O ano de 1963 foi um marco decisivo na minha formação política. A posse de Miguel Arraes no governo de Pernambuco abria novas perspectivas para a vida política e alimentava esperanças nas classes sóciais subalternas: camponeses, proletariado urbano e rural. Logo no começo do governo Arraes aconteceu o massacre na Usina Estreliana, em Ribeirão, no qual cinco trabalhadores foram mortos pela milícia armada do usineiro José Lopes de Siqueira Santos. Eu já conhecia os jagunços de José Lopes, travestidos de caçadores, pois alguns deles eram fregueses da casa comercial em que eu trabalhava em Ribeirão.  Os usineiros davam o sinal de que iam reagir até com emprego de armas à política preconizada por Arraes para o campo.  Não seria fácil a adoção pacífica do salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas diárias, pagamento de horas extras, férias e 13º salário para os trabalhadores rurais; latifundiários, usineiros e empresários de todos os setores da economia locais selaram uma aliança para combater tudo que viesse do novo governo sob o estigma de que toda medida por ele tomada tinha por objetivo comunizar Pernambuco.

Uma das decisões do governo que causou ampla reação da classe dominante local foi a retirada da polícia dos conflitos entre trabalhadores e patrões. As greves passaram acontecer sem que se mobilizasse de imediato contra ela o aparato repressivo policial. A Delegacia do Ministério do Trabalho e a Secretaria Assistente do Governo foram os órgãos acionados para negociar com as partes em litígio.

Jaboatão, além de ser conhecido por moscouzinho em decorrência do levante de 1935 e também da tendência dos seus eleitores de votar nos candidatos de esquerda, era um centro potencial de conflitos trabalhistas nas áreas urbana e rural. As três usinas de açucar: Muribeca, Bulhões e Jaboatão nunca tomaram conhecimento da existência de qualquer lei trabalhista.  A Indústria de Celulose, Papel e Papelão Portela, por sua vez, tinha várias pendências com seus operários. Os ferroviários, até por serem empregados de uma empresa do governo federal, eram os mais combativos e aguerridos nas suas lutas; e em Jaboatão estava instalada a maior oficina da REFESA, tendo a cidade a maior concentração de trabalhadores ferroviários do Nordeste; além disso, o seu sindicato era  melhor organizado e com abrangência de amplitude regional. O comércio e a pequena indústria locais, com raras exceções, não assinavam as carteiras de trabalho dos seus empregados, exigiam jornadas acima das 48 horas semanais sem remunerar as horas extras, e sequer respeitavam a obrigatoriedade do pagamento do salário mínimo.

                                 Cláudio Braga e Jango

Nas eleições de 1962, Jaboatão contribuiu com expressiva votação para eleição de Miguel Arraes. O líder ferroviário Cláudio Braga também obteve bom número de votos, sendo eleito deputado estadual. A cidade que há mais ou menos quinze anos atrás havia elegido o primeiro Prefeito comunista do norte e nordeste, bancada com três vereadores e um deputado estadual comunistas, mantivera sua tradição de voto na esquerda.

A luta pela hegemonia no sindicato de trabalhadores rurais da cidade era conduzida pelas organizações da esquerda: PCB, PC do B (recém fundado), trotsquistas e Liga Camponesa, de um lado, e pela Igreja Católica, com lideranças cristãs orientadas pelo padre Paulo Crespo, pároco da cidade, considerado pela reacionária classe dos ricos locais como um vigário vermelho.  De início, a associação de cariz católica conseguiu a carta sindical expedida pelo Ministério do Trabalho, resultando daí um forte  movimento de protesto  da esquerda,  que culminou com a invasão da sede do sindicato e a expulsão das lideranças orientadas pela Igreja.  A nova diretoria do sindicato foi resultado de uma composição de forças de esquerda, e João Evangelista, reconhecida liderança camponesa, foi o escolhido para presidir a diretória que se denominou provisória.

No começo de 1963 eu fui demitido da firma Café Ouro Preto.  A empresa de Antonio Barreto era a única na cidade que assinava regularmente a carteira de trabalho dos seus empregados, por isso eu recebi o devido aviso prévio, férias e parcela do 13º mês. Devido à doença de meu pai eu tive que acumular vales de adiantamentos salariais, que foram naturalmente descontados no acerto final de contas. Afora as horas extras não pagas, dos sábados, as quais eu renunciei nada tive a reclamar, pois a rescisão do contrato foi correta e, apesar dos descontos, eu ainda amealhei alguns trocados, e também nesse meio tempo meu pai já havia voltado a trabalhar e, com isso, eu fui liberado em parte de minha contribuição para as despesas de casa.  No Colégio Estadual de Jaboatão eu consegui vaga para cursar a terceira série ginasial, e para que minha matrícula fosse regularmente aceita eu tive de providenciar minha transferência da Escola Técnica de Comércio de Recife.

Continuei as minhas relações com o movimento sindical e, salvo engano, no mês de março, numa reunião de lideranças sindicais foi decidida a criação do  Pacto de Unidade Ação dos Trabalhadores de Jaboatão (PUA),  organização que coordenaria as ações dos sindicatos e de outras associações trabalhistas do município. Dessa reunião participaram lideranças de sindicatos de trabalhadores: Ferroviários, da Indústria Portela e das Usinas, e algumas associações para-sindicais: padeiros, comerciários, servidores públicos municipais etc. Por indicação aceita por  todos os presentes eu fui escolhido para presidir a comissão provisória do PUA, com a atribuição expressa  de organizar seus estatutos, registrar a associação e realizar as eleições definitivas.  De imediato recusei o encargo, alegando não estar preparado para tamanha responsabilidade; aí, então, entraram os comunistas do PCB que atuavam nos sindicatos para me convencer a aceitar a direção, assumindo o compromisso de que me ajudariam a conduzir a nova entidade.  Eu, que já praticamente me considerava um membro do PCB, pois já conhecia seu programa e estatutos, aceitei o encargo como tarefa e inclusive motivei, fora dali, uma conversa com Dedé (José Napoleão da Silva), secretário político do Comitê Municipal do PCB em Jaboatão, e então pedi pra me filiar oficialmente  ao partido. A resposta ao meu pedido de filiação demorou um pouco; passados um ou dois meses depois dessa primeira sondagem, eu fui aceito,  sem que, no entanto,   fosse ainda definido o  obrigatório  vínculo a uma organização de base onde deveria me engajar para militância no partido.


                                             Padre Paulo Crespo                       

A posse da Diretoria provisória do Pacto de Unidade e Ação (PUA) foi muito concorrida e prestigiada. O salão do Clube Social dos Trabalhadores da  fábrica Portela ficou praticamente lotado com a presença de trabalhadores de todas as categorias profissionais do município, inclusive das áreas rurais. Todos os sindicatos e associações locais estavam representados na assembléia. A Secretaria Assistente do Governo Arraes foi representada pela Coordenadoria Sindical, e lembro-me da presença de José Potiguara e Rômulo, seus principais assessores. O CONSINTRA (Central Sindical de Pernambuco) mandou representante. David Capistrano falou em nome Comitê Estadual do PCB. Lamentei a ausência de Amaro Luís de Carvalho (Capivara), liderança do PCdoB, com quem pessoalmente sempre mantive um bom e respeitoso relacionamento. As Ligas como organização já não existiam em Jaboatão; o Padre Paulo Crespo não compareceu por se encontrar viajando.

                                              Amaro Capivara

 
Um pouco depois de meu ingresso no PCB em Jaboatão, eu vim a constatar que o partido não se encontrava organizado conforme seus estatutos preconizavam. Os comunistas estavam dispersos, com um perfil de movimento em que os indivíduos agiam de modo individual e se identificavam ideologicamente como grupo por tradição e afinidade com a política do PCB, naturalmente veiculada pelo seu órgão oficial: o jornal Novos Rumos.  Até os trabalhadores da ferrovia, com certeza, padeciam do mesmo pecado. Adalberto Sena, que falava em nome dos camaradas ferroviários, sempre me pareceu uma voz que se apoiava num certo consenso informal, nunca  como decisão de uma  organização de base ou comitê  de grande empresa. Conheci e convivi com muitas lideranças ferroviárias: Manaçu, Lenito França, Wandesval Dias Luna, Adalberto Sena e outros, mas nunca pude observar neles um comportamento que estivesse referido a uma posição tomada pela organização de base do PCB; que seja realçado então o caso de Dedé (José Napoleão da Silva); ele, supostamente, era secretário político do PCB em Jaboatão, mas  atuava numa OB de servidores públicos do IAPI em Recife. A minha atividade inicialmente no PCB foi marcada por essa linha de conduta que havia se tornado uma prática política dos comunistas na cidade.

Faço aqui um hiato, para contar uma história de certo modo hilária que aconteceu um pouco antes de minha adesão “oficial” ao PCB. Nos fins de semana eu sempre me encontrava com um amigo de nome Nau, em sua casa, para conversar sobre política e receber dele o jornal Novos Rumos; ele era funcionário do IAPI, e fazia parte da direção da Frente Única de Jaboatão e também um dos mais interessados que eu me filiasse  ao PCB.



Certo dia, durante um desses encontros, ele me convidou a participar de uma reunião em Recife no edifício Juscelino Kubistchek, onde se encontrava instalado o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários. Era, salvo engano, um sábado à tarde, e daí tomamos o ônibus em direção a Recife e fomos então pra aludida reunião. A reunião estava se realizando numa ampla sala situada na cobertura do prédio, onde estava instalada uma lanchonete e mais parecia uma área de lazer para os servidores daquela repartição federal. O espanto na face de cada um dos presentes era fácil de ser percebido quando entrei na sala na companhia de Nau; naquele momento, eu era com certeza um convidado indesejado. Avistei Dedé (José Napoleão da Silva), que a mim se dirigiu e pediu-me que eu ficasse por algum tempo na área externa do salão, aguardando o que ia deliberar o coletivo: se podia ou não participar da reunião. A indiscrição de Nau causou certo constrangimento ao grupo e também a mim; ainda bem que o coletivo quase por unanimidade acolheu de modo carinhoso e solidário a minha presença. Pela primeira vez pude assistir uma reunião do PCB, com pauta previamente aprovada pelos presentes, com informes nacional, local e restrito a questões internas referentes as relações de trabalho dos servidores com o IAPI; rodadas de discussões para cada assunto, com a palavra facultada a todos os presentes. A democracia interna prevista nos estatutos era posta em pleno funcionamento. Essa reunião foi uma aula que nunca esqueci, e me convenceu do acerto de minha adesão naquele momento ao PCB, no qual militei por quase 30 anos.


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