quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Gastronomia - À MESA COM CASCUDO: da água, do pasto, da horta e do pomar à cozinha como fábrica de sonhos - Pedro Vicente C. Sobrinho


LUÍS DA CÂMARA CASCUDO confessava-se um provinciano incurável. De sua aldeia Natal, de modo solitário, varava noites em sua biblioteca, no velho casarão da Junqueira Aires, de onde construiu uma das mais significativas obras do pensamento brasileiro. O volume, a densidade e diversidade de assuntos e interesses de sua produção intelectual causam espanto e admiração a qualquer um que se aventure a navegar o mar imenso de sua bibliografia.

O poeta Carlos Drummond de Andrade desse modo se referiu à obra e a Cascudo: “Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo. O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou outra, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, artes do nosso povo. Em vez de falar Dicionário Brasileiro, poupa-se tempo falando “O Cascudo seu autor.../... e sua vasta bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de viver o Brasil./... em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana”(PROVÍNCIA 2 , 15).

O universo de preocupações de Cascudo desde cedo ultrapassou de longe o ambiente restrito do folclore. Em entrevista ao poeta Lêdo Ivo para revista Manchete, assim se explicou: “A cultura popular é o complexo. Representa a totalidade das atividades normais do povo, do artesanato ao mito, da alimentação ao gesto. Ora, a mim interessa tudo o que é do povo, até o que ele faz no banheiro ou no mato.” Com seu perfil de intelectual de corte renascentista, em mais de uma centena de livros publicados, soube transitar com mestria e genialidade nas artes e ciências: o historiador, o antropólogo, o etnógrafo, o sociólogo, o biógrafo, o memorialista, o crítico, o musicólogo, o tradutor, o romancista, o ensaísta, entre outros, e mais que tudo o escritor. Dele assim falou Paulo Rónai: “É essa visão plástica que lhe permite dar a suas afirmações, além do apoio de provas pesquisadas, a persuasiva densidade do lirismo.../ Nisto reside talvez a maior originalidade de mestre Câmara Cascudo, poeta ousado e pesquisador cauteloso./.., a quem sua intuição de artista e seus excepcionais dotes de escritor permitem dominar do alto uma disciplina na qual.../... a honesta e minuciosa pesquisa da realidade ambiente e a capacidade de enquadrar os fenômenos dentro de uma perspectiva universal são inseparáveis”( PROVÍNCIA 2, 71 e 72).

ESBOÇO DE UM PERFIL – Cascudo (1898-1986) fez seus estudos secundários no Ateneu Norte-rio-grandense. Confessa ter tido uma infância isolada e doente, cercado de brinquedos, mas sem companheiros de folias. Iniciou-se no jornalismo aos 19 anos. Aos 21 anos publicou o seu primeiro livro. Cursou Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro sem concluir. Em Recife diplomou-se em Direito. Foi professor de História do Brasil em escolas secundárias. E de Etnografia Geral na Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Norte. Aposentou-se como professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da UFRN, pela qual recebeu os títulos de “Professor Emérito” e “Doutor Honoris Causa”. Recebeu os prêmios nacionais João Ribeiro e Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, e o troféu “Juca Pato” pelo conjunto de obras; e o nacional Henning Albert Boilesen. A sua contribuição ao jornalismo diário no jornal A Republica, coluna Acta Diurna, reunida até agora já perfaz oito volumes. Realizou viagens de estudos a Portugal e África. O grosso de sua obra de mais de uma centena de títulos foi publicado principalmente pela José Olympio, Companhia Editora Nacional e Itatiaia. A Global Editora vem reeditando seus livros; já lançou 15 títulos e anunciou para logo: História dos Nossos Gestos e a monumental História da Alimentação no Brasil. (BARRETO, 2003).

CASCUDO, O HISTORIADOR DA COMIDA – Cascudo e Gilberto Freyre são os pensadores brasileiros que de modo primeiro e inovador trataram a questão da comida e da cozinha com ciência e arte. Em Gilberto pode-se com segurança até afirmar que a comida e a cozinha perpassam toda sua obra; desde sua preocupação inicial no Manifesto Regionalista (1926), e mais contundentemente em Casa Grande & Senza1a (1933), Nordeste (1937) e Açúcar (1939). De Cascudo diga-se o mesmo e ainda mais, pois desde sua veemente defesa da cozinha sertaneja, em Viajando o Sertão (1934), e daí em todo percurso de sua obra tratou sempre a comida e a cozinha como indissociáveis valores da cultura de um povo. É de bom grado citar o que diz na abertura de sua História da Alimentação: “Toda existência humana decorre do binômio estômago e sexo. A fome e o amor governam o mundo, afirmava Schiller” (CASCUDO, 1983, 21).

Em Cascudo o estudo da cozinha cobre décadas. Saudara Gilberto Freyre pelo seu “Açúcar”. Publicou diversos artigos sobre comida e bebida: Folk-lores da cachaça (1943); O coquitel do Visconde de Mauá (1943); Doces de tabuleiro (1944); Um rito da cachaça (1949); Comendo formigas (1954); O bom paladar é dos ricos ou dos pobres? (1964). E livros: Dante Alighieri e a tradição Popular (onde se examina a evolução teológica sobre a gula) (1963); A Cozinha Africana no Brasil (1964); Made in África (1965); História da Alimentação no Brasil (1.ª edição: 1967/68); Prelúdio da Cachaça (1968); Sociologia do Açúcar (1971); Civilização e Cultura (1973) e Antologia da Alimentação no Brasil (1977). Neste ultimo livro, Cascudo afirmou que completara e fechava tudo que havia estudado sobre alimentação (SEREJO).

O LIVRO HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO – Cascudo conta que por mais de vinte anos coletou informações sobre o assunto. O projeto era desenvolver trabalho que tratasse da alimentação de modo diferenciado do problema da nutrição, isto é, fora do ângulo restrito da dietética. Daí o comentário que fez quanto à parceria frustrada com Josué de Castro: “O Anjo da Guarda de Josué afastou-o da tentação diabólica. Não daria certo. Josué pesquisava a fome e eu a comida. Depois de anos de busca de financiador para o projeto, concluíra: “Acabei sem pensar no sonho teimoso e perseguidor, guardando em gaveta tranqüila as notas adormecidas.” Em 1962, o jornalista Assis Chateaubriand chama Cascudo a São Paulo para discutir o assunto. Aprovado o tema, o plano, e assegurados os recursos, Cascudo pôs as mãos à obra: “Sacudi as primeiras cartas perguntadeiras para Norte, Centro e Sul. Para Europa e África. Espanei os cadernos. Reavivei as marcas nos livros abandonados. Mobilizei o sabido, deduzível e provável. A viagem começou” (CASCUDO, 1983,16 e 17).

Em pouco menos de dois anos, o primeiro volume da obra foi entregue ao editor e publicado na Coleção Brasiliana. A Companhia Editora Nacional lançou o livro em 1967, e no ano de 1968 saiu o segundo volume. O projeto estava concluído em seis anos: pesquisa, texto e publicação. Cabe realçar que uma versão certamente inconclusa da obra foi publicada em Portugal, 1963 (MARINHO, 1998, 9).

ESTRUTURA DA OBRA – Os dois volumes da obra de conformidade com sua segunda edição, ITATIAIA/EDUSP, 1983, 926 páginas estão deste modo dispostos: prefácio, dois estudos introdutórios (Todo trabalho do homem é para sua boca e Sociologia da alimentação), e treze secções ou capítulos: Cardápio indígena, Dieta africana, Ementa portuguesa, Adendo, Elementos básicos, Técnicas culinárias, O rítmo da refeição, Farnel de trabalho e viagem, Superstições alimentares, As bebidas no Brasil, Comida de esteira e mesa, Mitos e realidades da cozinha Africana no Brasil, Folclore da alimentação. E mais a extensa bibliografia e notas.

No primeiro volume da História da Alimentação, Cascudo discorre sobre os fundamentos e as contribuições mais importantes dos cardápios indígena, africano e português, inclusive suas técnicas de manuseio e preparo dos alimentos.

Do cardápio indígena são realçadas as técnicas de cultivo, aproveitamento e transformação culinária da mandioca sob as formas de farinha, pirão, mingau, beijus, tapiocas e bebidas. E mais a manipueira que sangrava do tipiti, usada pela cunhã para o manipói, que até hoje se constitui em ingrediente básico para o tucupi e o tacacá. Além disso, o milho, a batata, abóboras, feijão, palmitos, o mate chimarrão, a pimenta essencialmente como tempero, o pescado, a frutaria e caça (de pena e pata) silvestres; e técnicas como o moquém e o forno subterrâneo. Para Cascudo, herdamos do indígena as bases da nutrição popular, os complexos alimentares decisivos na predileção cotidiana brasileira. Acrescentando ainda que as moças indígenas foram as primeiras cozinheiras de que o português dispôs. E alem disso, no que se relaciona às técnicas, a culinária africana não vencera a indígena na feitura, extensão dos elementos disponíveis e aproveitamento.

No que diz respeito à dieta africana, Cascudo estuda e informa sobre o padrão alimentar na África negra, principalmente nas áreas fornecedoras de braços para a empreitada colonial. No Brasil, a comida do escravo era a mesma das classes mais humildes e pobres. Segundo o autor, era até mais regular, diária, segura em sua limitação e com possibilidade de melhorias festivas. As trocas alimentares têm tratamento particular, com destaque para o que veio da África: o azeite-de-dendê, inhame, melancia, galinha-de-angola, a banana que considera a maior contribuição africana para a alimentação dos brasileiros. Adiante Cascudo destaca: “A mucama cozinheira aproveitou os elementos próximos. Comer camarão, lagosta, caranguejo, com molho seco de pimentas é tanto do gosto indígena quanto do apetite africano. Reunem-se, numa nacionalização gustativa, elementos indígenas e portugueses, tornados africanos pelo batismo do dendê e alguns amerabas, como moqueca e o caruru, ganham forma e viço na incessante adição dos novos componentes” (CASCUDO, 1983).

Ao tratar da instalação da cozinha portuguesa no Brasil, Cascudo pesquisou e resgatou de modo abrangente o que se comia em Portugal no século da colonização. Os fundamentos básicos para o estudo foram a farta documentação colhida de sua viagem a Portugal, os textos de Gil Vicente e outros escritores, e mais Domingos Rodrigues. Este ultimo, autor de “Arte de cozinha”, considerado o mais antigo tratado de cozinha em português. A partir daí, recuperou e delineou de modo exaustivo todo o processo de transferência da cultura culinária do português, (alimentos e técnicas), e também a incorporação e a adaptação desta aos recursos alimentares locais, inclusive técnicas. O português é considerado o mestre e organizador da cozinha brasileira. Pelas suas mãos os africanos e indígenas dosaram os seus temperos; tiveram seus cardápios re-elaborados e marcados por duas presenças definidoras do paladar nacional: o sal e o açúcar.

No segundo volume, ao esboçar uma sociologia da alimentação, Cascudo viaja continentes descrevendo costumes e preferências culinárias. Comenta e critica o embuste dos cardápios e pratos servidos pelos grandes restaurantes: “O paladar, não tem quem o defenda naqueles que o perderam, no embotamento mecânico das refeições distraídas, no automatismo displicente e diário” (CASCUDO, 1983).

Nos fundamentos da cozinha brasileira descreve os elementos básicos que a constituíram e lhe deram personalidade. As técnicas culinárias: assado, cozido, guisado e frito; os molhos e a doçaria. Os recursos locais, mais as trocas africanas e preponderantemente portuguesas deram-lhe corpo e alma. As influências culinárias de outras nacionalidades são consideradas inexpressivas com relevância apenas para as alemães e, principalmente, italianas que, no entanto, são postas no seu devido lugar. E afirma: “O português deu-nos o fundamento de nossa cozinha graças à maleabilidade da adaptação inicial. O italiano portou-se como um aliado comandando tropas pessoais sem miscigenação na panela brasileira” (CASCUDO, 1983).

O monumental livro encerra-se com um conjunto de artigos que, num arranjo original, complementam a mais vasta pesquisa até hoje realizada sobre a alimentação no Brasil. Pode-se então concluir que as obras de Câmara Cascudo em especial, Gilberto Freyre, Josué de Castro, A. da Silva Melo, Nunes Pereira e secundariamente Eduardo Frieiro, A. J. de Sampaio, Osvaldo Orico, Darwin Brandão e Manoel Quirino fecham o ciclo clássico de estudos sobre os hábitos alimentares e a Arte da Cozinha dos brasileiros.


REFERÊNCIAS

BARRETO, Anna Maria Cascudo. O colecionador de crepúsculos (Fotobiografia de Luis da Câmara Cascudo). Brasília (DF):[s.n.] , 2003.
CASCUDO, Luis da Câmara.História da alimentação no Brasil, vol. 1 e 2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1983.
MARINHO, Francisco Fernandes. A bibliografia cascudiana.Natal:[s.n.],1998.
PROVINCIA 2. Edição fac-similar da revista publicada no ano de 1968. Natal: EDUFRN, Fundação José Augusto e Instituto Histórico e Geográfico do RN, 1998.
SEREJO,Vicente.A bibliografia referente aos temas alimentação e culinária em Luis da Câmara Cascudo foi compulsada como fonte para o artigo que foi publicado, em parte, na Revista Continente Multicultural, ano III, n.32, p.20/23, ago. 2003, Recife(PE).Na realização do trabalho de levantamento da bibliografia contei com o apoio inestimável do professor Vicente Serejo. Cabe realçar que esse apoio não se limitou a indicação e fornecimento de parte da bibliografia, pois veio provido de comentários valiosos e que foram incorporados ao texto


Nota: artigo publicado na revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Natal (RN): N. 34 – v.46, julho/2005, p. 11 a 20.

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