terça-feira, 12 de julho de 2011

Artigos - O regional e o nacional em Vozes do Nordeste, livro org. por Pedro Vicente Costa Sobrinho e Nelson Patriota / Elide Rugai Bastos


É a origem regional dos autores analisados que justifica a reunião dos diferentes trabalhos e confere unidade ao texto. Trata-se de interessante releitura de autores nascidos no Nordeste e que, em vários casos, têm a região como tema. São onze os intelectuais estudados – Clovis Bevilácqua, Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Josué de Castro, Celso Furtado, José de Alencar, Augusto dos Anjos, José Lins do Rêgo e Jorge Amado -, que produziram sua obra em tempos diversos.

Uma vez que os ensaios estão centrados em uma obra em particular de cada um dos pensadores, a organização dos textos segue a ordem cronológica dessa produção, que se situa no período que vai das últimas décadas do século XIX até os anos 70 do século XX. Os analistas procedem de várias áreas do conhecimento - história, economia, sociologia, antropologia, teoria literária -, tendo em comum a preocupação com o pensamento brasileiro.

A introdução, escrita pelos organizadores, enfatiza a intenção do livro: mostrar a pluralidade de posições que o espaço abarca, posição que os organizadores identificam como um coro de vozes polifônico e não uníssono dando forma “à cultura nordestina”. Embora a questão comparativa não centralize sua preocupação, isso explicita a existência, entre aqueles intelectuais, de posições política diversas, que aportam a diferentes soluções face aos problemas ou dilemas apontados.

Mas, podemos falar de cultura nordestina tendo como centro esses pensadores? São autores não necessariamente regionalistas, portanto, não é a questão regional o que confere eixo às análises e reflexões. A temática também não é comum. Nem mesmo no gênero literário, que os organizadores reúnem sob os títulos Ensaístas, Ficção e Poesia. É evidente o caráter nacional de sua obra. Assim, penso que vale enfatizar que os textos apontam outros elementos a unificá-los além da origem regional comum. Nessa direção encontram-se questões da especificidade da formação nacional, do subdesenvolvimento, das condições específicas de vida das populações, elementos claramente presentes nas reflexões de Celso Furtado, Gilberto Freyre, Josué de Castro, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Manoel Bomfim, e que, em muitos dos casos, têm como referência a situação do Nordeste. Alguns comentaristas assinalam a centralidade desses temas nas obras estudadas mostrando como a experiência local ilumina a compreensão da questão nacional.

Na impossibilidade de comentar os onze trabalhos limito-me a dois exemplos. Ilustração significativa da questão encontra-se no ensaio sobre Celso Furtado. Analisando “O m Ito do desenvolvimento econômico” (1974), Clóvis Cavalcanti enfoca o texto num quadro mais geral do debate do autor, que compreende os livros A economia brasileira (1954), Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961), Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967). Isto é, mostra que para Furtado a imbricação das noções desenvolvimento-subdesenvolvimento não opera na direção de uma oposição mas explicita uma complementaridade. Em outros termos, a análise simultânea dos dois termos da equação permite perceber a “gênese da formação do subdesenvolvimento”. Captar a dimensão histórica do processo de desenvolvimento econômico é ponto de partida fundamental para a percepção multifacetária do fenômeno – organização da produção, produtividade do trabalho, distribuição e utilização social do produto. É o conhecimento da realidade que permite dar conta dessas múltiplas facetas e possibilita a elaboração de uma teoria sobre o fenômeno.

Esse ponto de partida fundamenta a afirmação de ser o subdesenvolvimento uam “deformação” e não uma fase necessária de um continuum que tem como etapa final o desenvolvimento. Permite, ainda, que Furtado adicione à reflexão outra esfera analítica: a cultural. Mostra como as “recCeitas típicas” para a superação do subdesenvolvimento operam na reprodução das estruturas sociais que garantem sua permanência: relações assimétricas, dependência, concentração de renda, desigualdade regional, exclusão social, mimetismo cultural.

Nesse amplo quadro analítico, Furtado chama a atenção para o caráter de “mito moderno do desenvolvimento econômico”, mito que se apóia na crença que taxas mais altas de crescimento do produto configurariam a superação do subdesenvolvimento. Sua argumentação se desenvolve na direção de mostrar que, ao contrário do que se supõe, o aumento dessas taxas, uma vez que acompanhadas de concentração de renda, “longe de reduzir o subdesenvolvimento, tendem a agravá-lo”. Mais ainda, o próprio caráter de mito leva a que se apresente como plano de ação pronto e que acaba por não ser desafiado, transformando-se em estereótipo a determinar comportamentos.

Como se vê, Cavalcanti chama a atenção para a atualidade do tema, também porque lembra que o autor aponta os custos ecológicos do processo. Estamos diante de problemas cotidianamente rememorados pelas medidas econômicas que atingem o país, pelo caráter das relações estabelecidas com os países centrais e organismos financeiros internacionais. Mudam os termos mas a questão permanece.

Em conjunto, o trabalho permite perceber que, se a grande experiência regional de Celso Furtado na direção da SUDENE lhe permitiu visualizar melhor a problemática, a formulação das teses ganha caráter muito mais amplo, não só nacional com mundial.



A experiência regional

Outro exemplo da eficácia da experiência regional para iluminação da questão nacional é o ensaio de Abdias de Moura sobre Josué de Castro. Embora só seja analisado o livro Geografia da Fome, a temática levantada prenuncia o debate desenvolvido em Geopolítica da Fome, uma vez que Moura parte da pergunta levantada no prefácio do primeiro texto: “Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?” Mostra que as preocupações de Castro, que se iniciam a partir da pesquisa sobre as condições de vida das populações pobres do Recife, se desenvolvem na reflexão sobre a fome endêmica. Isto o leva a construir um mapa da fome, não só da região ou do país, mas considerando a população mundial. A partir daí opera em uma dupla via: elaboração de um diagnóstico e formulação de uma política de combate aos constrangimentos sociais, econômicos e políticos que resultam na privação de alimentos. Do ponto de vista das abordagens da temática, em ambos os livros, o autor busca uma análise menos quantitativa que qualitativa dos problemas relativos à fome e é desse patamar que a relaciona à questão do subdesenvolvimento, colocando-se em perspectiva mais ampla do que a local. Outra vez a atualidade do tema nos move à reflexão e à releitura desses livros já considerados clássicos sobre a população pobre dos países periféricos e das sociedades marginalizadas no processo de desenvolvimento.

Poderia se estender os exemplos, uma vez que as obras analisadas, tendo por base o país e o Nordeste, referem-se, direta ou indiretamente, às condições de vida das populações.

Como se vê, o livro interessa não apenas a leitores das áreas de economia, história, literatura ou ciências sociais, mas objetiva um público mais amplo que vivencia os dilemas apontados e sofre suas conseqüências. Creio que valem algumas observações sobre pontos a serem cuidados em nova edição. Homogeneizar as citações e notas facilitaria a leitura. A duplicidade de critérios faz com que as referências bibliográficas só se refiram a alguns dos ensaios, enquanto outros têm sua indicação nas notas colocadas ao final, não presentes em todos os artigos. Seria interessante, ainda, a indicação, em cada ensaio, das datas e local de nascimento do autor estudado, bem como a data da primeira edição da obra analisada, dados presentes apenas em alguns artigos.

Mas, deixemos de implicância com um livro bom e que merece ser lido com interesse. Estão certos os organizadores quando sugerem que o texto suscita novos questionamentos e provoca o interesse em revisar as obras analisadas. Seria bom ver novos autores e novos textos serem estudados nessa mesma linha de preocupações.





Elide Rugai Bastos, Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Mestre, Doutor e Livre-docente; publicou entre outros livros: Ligas Camponesas (Ed. Vozes) e As criaturas de Prometeu. Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira (Ed. Global). Resenha do livro Vozes do Nordeste – Revista do Livro Universitário, São Paulo (SP), ano II, n. 12, dez. 2002.

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