segunda-feira, 22 de setembro de 2008

ARTIGO - A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA OU A MAIS VALIA REVELADA EM MARX NO LIVRO I DE "O CAPITAL" - Pedro Vicente Costa Sobrinho


Nos capítulos II e III, de O capital, Marx deu conta do processo de troca e da circulação das mercadorias, revelando de forma mais acabada o enigma do dinheiro, cuja gênese já fora demonstrada através do "desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, de sua forma mais simples e sem brilho até a ofuscante forma dinheiro" (O capital, cap. I, p. 54).1
O processo de circulação e troca até aí foi descrito como uma relação entre produtores que alienam os seus valores de uso, cuja finalidade última é a satisfação de suas necessidades. Ora, as necessidades de um possuidor de determinada mercadoria, considerada não-valor de uso para si, só poderiam ser satisfeitas na medida em que houvesse parceiros, possuidores de outras mercadorias, ou da mercadoria geral (dinheiro) que funcionasse como equivalente geral, e lhe permitisse, por meio da troca, a aquisição de valor ou valores de uso dos quais fosse carente.
A fórmula expressa por Marx como forma direta de circulação da mercadoria é M-D-M, ou seja, mercadoria que se transforma em dinheiro, dinheiro que se transforma em mercadoria. A metamorfose da mercadoria em dinheiro, na qual o dinheiro funciona como termo médio, dá lugar de imediato a sua retransformação em mercadoria, pois o ato contínuo é a busca de um valor de uso qualitativamente diferenciado do valor de uso que se situa como termo inicial.
Logo na abertura do capítulo IV de O capital, expressou Marx: "A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias, comércio, são os pressupostos históricos sob os quais ele surge. Comércio mundial e mercado mundial inauguram no século XVI a moderna história da vida do capital".
As condições para que o capital iniciasse a sua trajetória moderna, consolidando-se e afirmando-se como personagem dominante no cenário mundial foram dadas. A apreensão desse movimento implicou em determinar seu ponto de partida, como esclareceu Marx: "Abstraiamos o conteúdo material da circulação de mercadorias, o intercâmbio dos diferentes valores de uso, e consideremos apenas as formas econômicas engendradas por esse processo, então encontraremos como seu produto último o dinheiro. Esse produto último da circulação de mercadorias é a primeira forma de aparição do capital" (O capital , cap. IV, p. 125).
A determinação do ponto de partida, todavia, não implicou numa reconstituição histórica da formação do capital, “... nem unilinear nem evolutiva; e muito menos cronológica. (...) não se precisa remontar à história da formação do capital para reconhecer o dinheiro como a sua primeira forma de aparição. A mesma história se desenrola diariamente ante nossos olhos".2
Este simples aspecto realçado revelou: "... que para Marx, a história é dada a partir do presente, pela análise dialética do presente. O presente do capitalismo 'repõe' toda a sua história, na medida em que todo o passado indispensável ao entendimento do presente 'ressurge' no interior das relações presentes".3
O que vai diferenciar, no entanto, o dinheiro como dinheiro, isto é, como mercadoria geral sob a forma de equivalente universal, onde e em cujo corpo as mercadorias exprimem o seu valor, do dinheiro que ressurgiu no final do processo com um incremento quantitativo?
Em primeiro lugar, a diferenciação se dá comparando-se as formas em que se realizam a circulação e a troca simples com a troca capitalista. Na troca simples ou na forma direta de circulação de mercadorias, o movimento se processa de mercadoria para mercadoria; mercadoria que se troca por mercadoria com a mediação dinheiro: M-D-M; a busca no mercado, por meio da venda, de um valor de uso diferenciado do valor de uso possuído através da compra, vender para comprar é sua especificidade. A troca capitalista segue um percurso diferente, que se exprime sob a forma D-M-D’, dinheiro que se transformou em mercadoria, que se reconverte em dinheiro, comprar para vender.
A análise mais rigorosa dos percursos contidos nas formas M-D-M e D-M-D’ revelou não apenas suas diferenças formais, mas suas diferenças de conteúdo. Enquanto na primeira, M-D-M, o seu percurso tem como resultado final um valor de uso, significando que o dinheiro se consome ao realizar sua reconversão, na segunda, no percurso expresso na fórmula D-M-D’, "... o comprador gasta dinheiro para, como vendedor, receber dinheiro. Com a compra, ele lança dinheiro na circulação, para retirá-lo dela novamente pela venda da mesma mercadoria. Ele libera o dinheiro só com a astuciosa intenção de apoderar-se dele novamente. Ele é, portanto, apenas adiantado". (O capital, pp. 126-127). O dinheiro está predestinado a retornar ao ponto de partida; esse refluxo do dinheiro às mãos do seu possuidor, no entanto, explica Marx, "... não depende de a mercadoria ser vendida mais cara do que ela foi comprada" (Ibid., p. 127).
A fórmula D-M-D’, trocar dinheiro por dinheiro mediado por mercadoria, "... parece uma operação tão sem finalidade quanto insossa" (Ibid., p. 128).
A originalidade desta fórmula está em que o dinheiro adiantado como ponto de partida cumpriu o seu fluxo retornando ao seu possuidor com uma diferença quantitativa. A metamorfose do dinheiro em capital se completou. Diz Marx: "O valor originalmente adiantado não só se mantém na circulação, mas altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais-valia ou se valoriza. E esse movimento transforma-o em capital" (Ibid., p. 128).
A transformação do dinheiro em capital, o movimento contínuo e incessante que pôs e repôs dinheiro em circulação, alterando sempre sua grandeza passou a constituir-se numa finalidade em si mesma, sendo o processo de valorização sua única razão de existência, de acordo com Marx:

"Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circulação - a valorização do valor - é sua meta subjetiva, e só enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo indutor de suas operações, ele funciona como capitalista ou capital personificado" (Ibid., cap. IV, p. 129).

A incorporação do mais-valor ao dinheiro vai expressar-se sob a fórmula D-M-D’, que se configura como fórmula geral do capital, ressalva Marx, "como aparece diretamente na esfera da circulação". A questão foi posta, porém ainda não resolvida; a fórmula geral foi submetida ao crivo crítico da análise marxiana.
O problema a ser resolvido consistia em saber se o valor adicionado ao dinheiro despendido no início do processo (sua valorização) foi gerado na esfera da circulação ou não, e se mesmo efetivamente foi derivado dela, em coerência com o lema de "comprar barato e vender caro", tão próprio ao capital comercial. Analisando a questão, em seus múltiplos aspectos, podemos ordenadamente assim dispô-la:
a) na troca de valores de uso na qual os produtores tinham vantagens mútuas, pois permutavam entre si valores de uso diferentes, produzir, portanto, o valor de uso que o outro oferecia no mercado tornava-se desvantajoso;
b) na troca acima considerada, se permutar valores de uso diferentes foi mutuamente vantajoso, estes não sofrem também alteração enquanto valor de troca. O mesmo valor permanece, após a troca, nas mãos de ambos os possuidores;
c) a venda da mercadoria acima do seu valor pelo seu vendedor o colocaria em vantagem enquanto estivesse situado no pólo de venda; ao se transformar em comprador colocar-se-ia, ato contínuo, em desvantagem;
d) a existência de uma classe de pessoas que só comprava em desvantagem, levava a supor que o dinheiro utilizado por essa classe deveria originar-se dos próprios possuidores de mercadorias. O ato de vender acima do valor seria uma forma de recuperação do dinheiro cedido gratuitamente;
e) a esperteza de um possuidor de mercadoria que conseguisse, com golpe de mestre, trocar sua mercadoria com vantagem sobre outro parceiro, não alteraria no processo o valor circulante global. Sua capitalização simplesmente alteraria a distribuição do dinheiro entre os parceiros; onde um ganharia, o outro perderia;
f) como alternativa última só resta apelar para a intermediação entre produtores, emergindo daí a figura do comerciante que imporá um duplo prejuízo aos produtores, os que compram e os que vendem, que ora se situam num pólo, ora no outro. Essa questão no entanto é remetida para mais adiante pois, segundo Marx, "... para que a valorização do capital comercial não seja explicada por mero engodo dos produtores de mercadorias, é preciso dispor de uma longa série de elos intermediários, que ainda falta completamente aqui onde a circulação de mercadorias e seus momentos simples constituem nosso único pressuposto" (Ibid., p. 137).
Demonstrou Marx com um rigor lógico irrefutável, que "... a mais-valia não pode originar-se da circulação, que, portanto, em sua formação deve ocorrer algo por trás de suas costas e que nela mesma é invisível" (Ibid., p. 137).
O produtor poderia evidentemente acrescentar valor a sua mercadoria ao incorporar trabalho, ao objetivar o seu trabalho no produto que passaria a ter um novo valor incorporado, enquanto portador de um quantum mais de trabalho, "mas não valores que se valorizem". (Ibid., p. 138). A produção "em si", se restrita ao seu âmbito exclusivista, não é suficiente para explicar a adição de um mais-valor. Diz Marx: "É, portanto, impossível que o produtor de mercadorias, fora da esfera de circulação, sem entrar em contato com outros possuidores de mercadorias, valorize valor e, daí, transforme dinheiro ou mercadoria em capital" (Ibid., p. 138).
E seguindo em Marx: "Nosso possuidor de dinheiro, por enquanto ainda presente apenas como capitalista larvar, tem de comprar as mercadorias por seu valor, vendê-las por seu valor e, mesmo assim, extrair no final do processo mais valor do que lançou nele. Sua metamorfose em borboleta tem de ocorrer na esfera da circulação" (Ibid., p. 138).
Os diversos atos dos possuidores de mercadorias, o conjunto de suas relações não foi até aqui suficientes para revelar o mistério do valor que se valoriza. A compra de mercadoria é realizada pelo seu valor, e a valorização só pode dar-se pelo seu valor de uso, pelo seu consumo. Aí, então, entra em cena uma mercadoria especial, que comprada pelo seu valor é capaz pelo seu uso, de criar valor. A esta mercadoria específica Marx denominou capacidade de trabalho ou força de trabalho, e assim a conceituou: "Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie" (Ibid., p. 139).
O possuidor do dinheiro, ao deparar-se na esfera da circulação com o possuidor da mercadoria força de trabalho, apesar da natureza peculiar desta nova mercadoria e seu caráter todo especial, procurou comprá-la de conformidade com as regras já estabelecidas no mercado e de acordo com as características que são comuns às mercadorias mais comezinhas, ou seja: a) que tenha valor; b) que o seu valor seja trabalho objetivado; c) que tenha valor de uso, isto é, que se preste ao consumo.
Ao se assumir o conceito de força de trabalho como mercadoria verificou-se que a força de trabalho não é destacável do produtor que a possui, existindo, portanto, na sua corporalidade, diferenciando-se de qualquer outra mercadoria por não ser resultado de um processo de produção específico. Daí então, como determinar esse valor? Acompanhemos a explicação de Marx:

"O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto, também reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor" (Ibid., p. 141).

Essas necessidades foram também um produto do processo histórico:
"As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia, etc, são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depende, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres" (Ibid., p. 141).

O valor da força de trabalho é o trabalho objetivado nos meios de subsistência; o trabalho socialmente necessário investido na produção dos bens que garantem a reposição das energias gastas e as condições de vida do trabalhador, e, além disso, sua própria perpetuação como vendedora de força de trabalho através da procriação, e até sua formação com o mínimo de adestramento necessário ao exercício de habilidades exigido pelo processo de produção. Realçou ainda Marx: "Em antítese às outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral" (Ibid., p. 141).
Igualmente como ocorre com as outras mercadorias, o comprador da força de trabalho adquire o direito de usá-la. O valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, que é utilizado ou consumido no processo de produção. "O valor de uso, que este último (o possuidor de dinheiro) recebe por sua vez na troca, só se mostra na utilização real, no processo de consumo de força de trabalho". E ainda: "O processo de consumo da força de trabalho é, simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-valia" (Ibid., p. 144). A mercadoria força de trabalho foi devidamente e escrupulosamente paga pelo seu valor, no entanto é necessário destacar que existe uma diferença real entre o trabalho objetivado na força de trabalho e o que se pode extrair dela no processo de produção. Diz Marx:

"Abandonemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa (esfera da circulação), existente na superfície e acessível a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business. Aqui há de se mostrar não só como o capital produz, mas também como ele mesmo é produzido, o capital. O segredo da fabricação de mais-valia há de se finalmente desvendar" (Ibid., pp. 144-145).

Ao alienar sua força de trabalho, o vendedor dessa mercadoria cede ao comprador o direito de fazer uso dela durante determinado tempo estabelecido no contrato. No entanto, sua utilização em apenas parte da jornada de trabalho é capaz de gerar o valor correspondente ao valor que lhe foi pago. Na outra parte, tempo complementar da jornada, ela cria um valor excedente que é apropriado pelo comprador. A parte da jornada que corresponde ao tempo de uso da força de trabalho para repor o seu valor denomina-se trabalho necessário. A outra parte da jornada, cujo resultado não pertence ao vendedor da força de trabalho, denomina-se trabalho excedente, que cria um valor excedente e corresponde à mais-valia.
Na produção foi revelada a metamorfose do dinheiro que se transformou em capital. O capital, por sua vez, valor que se valoriza por meio da apropriação do trabalho não-pago. O capitalista, o capital personificado, e o trabalhador, trabalho personificado, são atores que ocupam lugares diferentes e opostos no processo de produção capitalista, um de explorador, o outro de explorado. O enigma da exploração capitalista foi desvendado, a apropriação do mais-trabalho assume, neste modo de produção, a forma específica da mais-valia.


A exploração capitalista, suas formas: a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa

A revelação do mistério que envolvia a metamorfose do dinheiro em capital colocou em cena as duas personagens centrais do modo capitalista de produção de mercadorias: o capitalista e o trabalhador. De um lado, o personagem que se coloca em cena como possuidor do dinheiro (meios de produção e de subsistência), e pela lógica do processo de produção foi determinado a valorizá-lo, apropriando-se do mais-trabalho. Do outro lado, aquele que apenas dispõe da mercadoria força de trabalho como um bem natural, e se acha compelido a vendê-la para garantir sua sobrevivência.
A produção capitalista pressupôs como condição fundamental para sua realização, à existência de uma classe de trabalhadores que no mercado pudesse dispor livremente de sua mercadoria e que estivesse livre das relações de dependência pessoal e se movimentasse como produtores autônomos, iguais e independentes; ao mesmo tempo não dispusesse de qualquer outra mercadoria a não ser a sua força de trabalho.

"A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apóie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo de separação do trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho, um processo que transforme, por um lado, os meios sociais de subsistência e meios de produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados" (Ibid., cap. XXIV, p. 262).

Esse processo, como diz Marx, não pode ser explicado pela anedota que coloca de um lado uma elite laboriosa, inteligente e, sobretudo, parcimoniosa e, do outro, vagabundos dissipadores de tudo que tinham. O movimento histórico, desvelado em sua essência, como Marx o fez no capítulo XXIV de O Capital "A assim chamada acumulação primitiva", configura-se como nada idílico, no qual a violência da expropriação se inscreve nele com sangue e fogo.
A base de todo o processo que criou as condições para a produção capitalista assentou-se na expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês. Marx tomou a Inglaterra como modelo por considerá-la em sua forma clássica, e no exemplo inglês relacionou os seguintes fatos determinantes: a) a transformação das terras de lavoura em pastagens; b) o roubo dos bens da igreja; c) a fraudulenta alienação dos domínios do Estado; d) a usurpação da propriedade comunal (a lei de cercamento das terras comunais); e) o clareamento das propriedades.4
No seu conjunto, o encadeamento desses processos teve como conseqüência: a) incorporação da base fundiária ao capital; b) criação para indústria urbana de uma oferta necessária de um proletariado livre; c) criação do mercado interno para o capital.
Os trabalhadores livres, liberados para o exercício do comércio livre, e os possuidores de dinheiro, os capitalistas, estabeleceram entre si relações de troca aparentemente de equivalentes. A sua natureza de troca desigual, sua essência de relação de exploração revelou-se no processo de produção. O comprador da mercadoria força de trabalho utilizou o seu valor de uso não apenas na formação do valor, na criação do valor equivalente ao valor pago pelo capital à força de trabalho, mas no processo de valorização, mais precisamente na produção do valor excedente, na extração da mais-valia.
A demonstração científica rigorosa da natureza da exploração capitalista, sob as formas de mais-valia absoluta e mais-valia relativa, levou Marx, como ponto de partida, a fazer as distinções necessárias entre processo de trabalho e processo de valorização.
Ao tratar do processo de trabalho Marx o considerou independente de qualquer forma social determinada. Abstraiu, portanto, dele, as relações sociais necessárias que os homens contraem no processo de produção e o tomou na sua condição de relação direta entre o homem e a natureza, isto é, "... Atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as formas sociais" (Karl Marx, O capital, cap. V, p. 153).
O processo de trabalho foi analisado em todos os seus componentes. O trabalho, seu objeto, seus meios, seu resultado como trabalho objetivado, como valor de uso. A análise do processo de trabalho, abstraindo-se dele as formas sociais, cedeu lugar ao processo de trabalho onde o capitalista apresentou-se como possuidor dos fatores objetivos da produção ou meios de produção e do fator pessoal subjetivo, ou força de trabalho. Ao dispor das condições de trabalho e do direito pela compra do uso da força de trabalho, o capitalista imprimiu o seu controle ao processo de produção e apropriou-se do seu resultado. Diz Marx: "O processo de trabalho é um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo lhe pertence de modo inteiramente igual ao produto do processo de fermentação em sua adega" (Ibid., p. 154).
Para o capitalista, o valor de uso não poderia ser considerado um fim em si mesmo, mas o valor de uso enquanto portador do valor de troca, que contenha nele os valores adiantados para sua produção e um valor adicional, a mais-valia. Segundo Marx: "Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia" (Ibid., p. 155).
E, ainda, explicitando melhor:

"O capitalista, ao transformar dinheiro em mercadorias, que servem de matérias constituintes de um novo produto ou de fatores do processo de trabalho, ao incorporar força de trabalho viva à sua objetividade morta, transforma valor, trabalho passado, objetivado, morto em capital, em valor que se valoriza a si mesmo, um monstro animado que começa a 'trabalhar' como se tivesse amor no corpo" (Ibid., pp. 160-161).
A unidade do processo de trabalho e processo de valorização tornou distinto o processo de produção capitalista de mercadorias, o processo de formação de valor não se esgotou na transferência do valor objetivado nos meios de produção (trabalho morto) nem na criação do novo valor equivalente ao trabalho pago, valor de troca da força de trabalho objetivado nos meios de subsistência; mas alongou-se em valor adicional (trabalho não-pago) apropriado como mais-valia pelo capitalista.
A produção de mercadorias na forma capitalista de produção é, sobretudo, produção de mercadorias para produzir mais-valia, conforme Marx: "Produção de mais-valia ou geração de excedente é a lei absoluta desse modo de produção" (Ibid., cap. XXIII, p. 191).
O movimento do capital no seu processo de valorização (movimento este contínuo e incessante do qual o capital não pode livrar-se sob pena de decretar a sua própria morte) na medida em que o capitalista fez uso da força de trabalho durante um determinado período de tempo, denominado jornada de trabalho, incorporou trabalho sob as formas de trabalho necessário e trabalho excedente.
O trabalho necessário compreende o dispêndio de trabalho durante parte da jornada de trabalho em que o trabalhador criou novo valor, repondo o valor adiantado pelo capitalista (tempo de trabalho necessário) sob a forma de salário, que corresponde ao valor de troca da força de trabalho, isto é, os meios de subsistência que possibilitam a manutenção e reprodução do trabalhador enquanto força viva.
A jornada de trabalho contratada acolheu, por sua vez, no seu tempo de duração dois momentos, num primeiro período o trabalho pago foi devidamente compensado, num segundo período o capitalista apropriou-se dele como trabalho não-pago. Diz Marx:

"O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força de trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. Essa parte da jornada de trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais trabalho" (Ibid., cap. VII, p. 176).
E adiante: "[...] é igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-la como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objetivado" (Ibid., cap. VII, p. 176).
A exploração do trabalhador pelo capitalista tem o seu grau de exploração dimensionado na taxa de mais-valia, que é determinada pela relação entre a mais-valia, mais-trabalho objetivado, e o capital variável, valor da força de trabalho ou trabalho necessário. Por sua vez, a taxa de mais-valia revela o grau real da exploração da força de trabalho, mostrando que em um tempo da jornada de trabalho o trabalhador produziu para se pagar, e que em outro tempo da jornada de trabalho ele produziu sem nada receber do capitalista, como trabalho não-pago.
A mais-valia em seu movimento contínuo como apropriação, como móvel central da produção capitalista, implica na adoção pelo capitalista de formas para ampliar o tempo de trabalho excedente. As formas encontradas pelo capital para extração do mais-trabalho foram definidas, por Marx, como mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A mais-valia absoluta e a mais-valia relativa não são formas excludentes da exploração capitalista. A distinção entre uma e outra forma foi assim formulada por Marx: "O prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador teria produzido apenas um equivalente pelo valor de sua força de trabalho, e a apropriação desse mais-trabalho pelo capital - isso é a mais-valia absoluta" (Ibid., cap. XIV, p. 106). A mais-valia absoluta está afeta ao prolongamento do tempo de trabalho excedente, e diz Marx: "À mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta" (Ibid., cap. X, p. 251). Quanto à mais-valia relativa, assim explicitou Marx: "À mais-valia que, ao contrário, decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa" (Ibid., cap. X, p. 251).
A mais-valia absoluta, como forma de apropriação do mais-trabalho pelo prolongamento absoluto da jornada de trabalho depara-se com limites naturais e sociais. No capítulo VIII, no título que se refere especificamente à jornada de trabalho, Marx demonstrou que o capitalista na sua avidez de mais-trabalho buscou muitas vezes ultrapassar os limites possíveis de exploração do trabalhador, via alongamento da jornada de trabalho, colocando em risco a própria existência do trabalhador enquanto força de trabalho. Marx acrescenta: "Abstraindo um movimento dos trabalhadores que cresce cada dia mais ameaçadoramente, a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que levou à aplicação do guano nos campos ingleses. A mesma cega rapacidade, a qual, em um caso, esgotou a terra, em outro afetou pelas raízes a força vital da nação" (Ibid., cap. VIII, p. 193).
Mesmo dados os limites da extração da mais-valia absoluta pelos próprios limites da jornada de trabalho, diz Marx: "Ela constitui a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida para a produção da mais-valia relativa'. (Ibid., cap. XIV, p. 106).
A mais-valia relativa origina-se na alteração das grandezas integrantes da jornada de trabalho. Tomando-se por referência uma dada jornada de trabalho, a alteração da relação entre trabalho necessário e trabalho excedente implica na redução do tempo de trabalho necessário e o conseqüente aumento do mais-trabalho, sem mudança na jornada de trabalho. A alteração nessa relação é resultante de mudanças na produtividade ou na intensidade do trabalho ou da combinação de ambos. A alteração entre os componentes da jornada de trabalho, entre o trabalho necessário e o mais-trabalho, ocorre na medida em que forem introduzidas mudanças que aumentem a produtividade do trabalho em ramos de produção que produzem meios de subsistência necessários à reprodução da força de trabalho.
A produção da mais-valia relativa tomou grande parte da exposição de Marx, no livro I de O capital. A exploração do trabalhador pelo capitalista, pela redução do trabalho necessário, foi submetida a uma análise e desvendamento dos métodos particulares de produção da mais-valia relativa nos capítulos sobre a cooperação; divisão do trabalho e manufatura; maquinaria e grande indústria etc. Todo o movimento que vai da subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital. Da introdução de novas técnicas à total subordinação da ciência ao capital. Da manufatura ao sistema de parcialização generalizada do trabalho. Da degradação do produtor à condição de simples apêndice vivo da máquina.
"O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa" (Ibid., cap. VIII, p. 189).

A exploração capitalista, uma forma específica de apropriação do mais-trabalho

A exploração capitalista como foi exposta nas duas primeiras partes deste trabalho, em que procuramos acompanhar, através de notas de leitura do livro I de O capital, o rigor analítico do pensamento de Marx, tem como elemento fundante, para compreensão do processo, a forma de apropriação do trabalho excedente, do mais-trabalho, no modo de produção capitalista. Todavia, a apropriação de trabalho excedente não seria suficiente para diferenciar as condições em que se dá a exploração capitalista de outras formas de exploração que a antecederam, pois estas também tinham como fundamento a existência de um tempo excedente, a apropriação do mais-trabalho criado pelos produtores diretos. Diz Marx: "E sem tal tempo excedente, nenhum mais-trabalho e, portanto, nenhum capitalista, nenhum senhor de escravos, nenhum barão feudal, em uma palavra, nenhuma classe de grandes proprietários" (Ibid., cap. XIV, p. 107).
Fica claro que a existência de pessoas ou classe social que tenha como base do seu sustento a apropriação do produto do trabalho alheio perpassou as diversas formas de organização social da produção. O conteúdo da exploração é o mais-trabalho, quer seja a exploração do escravo, do servo, ou do proletariado moderno: "Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador, diferencia as formações socioeconômicas, por exemplo, a sociedade da escravidão da do trabalho assalariado" (Ibid., cap. VII, pp. 176-177).
E, em outro momento de O capital, esta afirmação é reiterada:

"O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo de trabalho excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produção, seja esse proprietário [aristocrata] ateniense, teocrata etrusco, civis romanus, barão normando, escravocrata americano, boiardo da Valáquia, landlord moderno ou capitalista" (Ibid., cap. VIII, p. 190).

O conteúdo da exploração capitalista, a apropriação do mais-trabalho do produtor direto como explicitou o texto de Marx, não se diferencia do conteúdo da exploração que se dava nas sociedades pré-capitalistas; no entanto, se pelo seu conteúdo a exploração capitalista é uma continuidade do processo de exploração do produtor direto, com relação à sua forma a exploração capitalista revelou elementos constitutivos diferenciados que a torna historicamente específica.
As diferenças que tornam específica a forma de exploração capitalista em relação às formas de exploração pré-capitalistas serão examinadas sob três aspectos. Primeiramente, cabe destacar como diferença fundamental, entre a exploração capitalista e a exploração pré-capitalista, o fato de que a forma de exploração capitalista, e, com mais ênfase, a própria existência do capital pressupõe a existência do trabalhador livre possuidor da força de trabalho:

"[...] a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado à medida que e porque ela é oferecida à venda ou é vendida como mercadoria por seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para que seu possuidor venda-a como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no mercado e entram em relação um com o outro como possuidores de mercadorias iguais por origem, só se diferenciando por um ser comprador e o outro, vendedor, sendo portanto ambos pessoas juridicamente iguais" (Ibid., cap. IV, p. 139).

De posse da força de trabalho, mercadoria que tem a propriedade de criar valor, portanto valorizar o capital, o portador desta mercadoria, o trabalhador (trabalho personificado) relaciona-se com o capitalista (capital personificado) como formalmente igual, sem que seja submetido à relação de dependência pessoal, livre de qualquer forma de domínio e coação de caráter extra-econômico. A exploração capitalista, a extração de mais-trabalho sob o capitalismo encontra o seu fundamento na base econômica, enquanto a exploração pré-capitalista tem por base a desigualdade entre os homens, a relação de dependência pessoal. Diz Marx: "Em vez do homem independente, encontramos aqui todos dependentes - servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as condições sociais da produção material quanto as esferas de vida estruturadas sobre ela" (Ibid., cap. I, p. 74). E mais: "[...] a sociedade grega baseava-se no trabalho escravo e tinha, portanto, por base natural a desigualdade entre os homens e suas forças de trabalho" (Ibid., cap. I, p. 62).
A extração de mais-trabalho, a apropriação do trabalho excedente nessas condições só se realiza mediante uma coerção extra-econômica.
Uma segunda diferença, entre a exploração capitalista e a exploração pré-capitalista, decorre do fato de que, enquanto a exploração pré-capitalista é clara, cristalina, a forma capitalista é opaca, não-transparente, não-perceptível de imediato. Diz Marx: "A comparação da avidez por mais-trabalho nos principados do Danúbio com a mesma avidez nas fábricas inglesas oferece interesse especial, porque o mais-trabalho na corvéia possui forma independente palpável" (Ibid., cap. VIII, p. 191).
E adiante:

"O trabalho necessário que, por exemplo, o camponês valáquio executa para sua automanutenção está espacialmente separado de seu mais-trabalho para o boiardo. Um ele realiza em seu próprio campo, o outro na propriedade do senhor. Ambas as partes do tempo de trabalho existem, independentemente, uma ao lado da outra. Na forma de corvéia, o mais-trabalho está nitidamente dissociado do trabalho necessário" (Ibid., cap. VIII, p. 191).

No caso da relação capitalista - onde o mais-trabalho e o trabalho necessário se confundem - a exploração se escondeu e se ocultou por trás da relação de troca que se estabeleceu entre o capitalista e o trabalhador, como possuidores de mercadorias que trocaram valores iguais; dinheiro, sob a forma de salário, como meio de subsistência, por força de trabalho; e que aparentemente nada têm a reclamar um do outro. A essência dessa exploração só pôde ser revelada mediante uma observação científica rigorosa da natureza e do funcionamento das leis que regem o modo de produção capitalista.
Um terceiro aspecto a realçar, como especificidade da exploração capitalista, está vinculado ao caráter de essencialidade do próprio movimento do capital, que determina a sua própria origem e a razão de sua existência. O modo de produção capitalista é reiteradamente explicitado em Marx como produtor de mercadorias:

"O valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu'on aime pour lui-même. Produz aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores do valor de troca. E para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria" (Ibid., cap. V, p. 155).

A produção de mercadoria não é produção de mercadoria em si mesma, mas a produção de mercadoria por ser portadora de valor de troca, de "valor" que incluiu, na sua oculta composição, trabalho morto (capital constante) + trabalho necessário (capital variável) e + mais-trabalho (mais-valia); além disso a apropriação do mais-trabalho como seu móvel central, como determinante implicando que: "Como a produção de mais-valia é o objetivo determinante da produção capitalista, não é a grandeza absoluta do produto mas a grandeza relativa do mais-produto que mede o grau da riqueza" (Ibid., cap. VII, p. 185). E reitera Marx: "A produção capitalista [...] é essencialmente produção de mais-valia, absorção de mais-trabalho" (Ibid., cap. VIII, p. 212).
Ao produzir mercadoria, naturalmente, como forma exclusiva de apropriar-se do mais-trabalho, o capitalista não o fez para garantir sua própria existência e reprodução enquanto pessoa. De acordo com Marx:

"... A produção anual tem de fornecer todos os objetos (valores de uso) com os quais têm de ser repostos os componentes materiais do capital consumido no decorrer do ano. Depois de deduzir estes, resta o produto líquido ou o mais-produto, no qual se encontra a mais-valia. E do que se compõe esse mais-produto? Talvez de coisas destinadas a satisfazer às necessidades e aos apetites da classe capitalista, entrando, portanto, em seu fundo de consumo? Se isso fosse tudo, a mais-valia seria dissipada até a última migalha e teria lugar meramente reprodução simples" (Ibid., cap. XXII, p. 164).

O mais-trabalho é apropriado de forma contínua e crescente, o ciclo tem que se repetir de forma que assegure uma reprodução ampliada. "Para acumular, precisa-se transformar parte do mais-produto em capital" (Ibid., cap. XXII, p. 164); a mais-valia que extrai do produtor direto e que realimenta, de forma permanente, o processo de exploração em escala ampliada.
Como explicou Marx: "É a velha história: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó etc. O capital original de 10 mil libras esterlinas gera uma mais-valia de 2 mil libras esterlinas, que é capitalizada" (Ibid., cap. XXII, p. 165).
A produção de mercadorias enquanto valores de uso que satisfaçam necessidades sociais, bem como a extração do mais-produto enquanto forma de satisfação das necessidades pessoais do capitalista estão sobejamente subordinadas à produção da mais-valia, como valorização ilimitada e infinita do capital. O produto que se objetiva, como finalidade última e exclusiva do capital, que emerge das relações de exploração capitalista, não serve ao consumo como um bem necessário, como "[...] uma coisa, qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie", não importando "... se elas se originam do estômago ou da fantasia" (Ibid., cap. I, p. 45); mas é valor, precisamente a mais-valia que valoriza o capital ad infinitum. Diz Marx:

"Apenas na medida em que é capital personificado tem o capitalista valor histórico e aquele direito histórico à existência que, como diz o espirituoso Lichnowski, nenhuma data tem. Somente nessa medida sua própria necessidade transitória está embutida na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Mas, nessa medida, também não é o valor de uso a satisfação, mas o valor de troca e sua multiplicação o móvel de sua ação. Como fanático da valorização do valor, ele força sem nenhum escrúpulo a humanidade à produção pela produção[...]" (Ibid., cap. XXII, p. 172).

Esse movimento contínuo, crescente e ilimitado do capital na busca da apropriação do trabalho excedente como forma de valorização diferenciou sua forma de exploração, da forma de exploração pré-capitalista.
A exploração pré-capitalista como ficou evidenciado teve como conteúdo a apropriação do trabalho excedente, a exploração do produtor direto pelo amo ou senhor. No entanto, quanto à extração do mais-trabalho, com relação à sua dinâmica e amplitude, havia entraves naturais decorrentes do próprio caráter da produção, do produto e da finalidade do mais-trabalho. E Marx esclareceu: "É claro, entretanto, que se numa formação socioeconômica predomina não o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o mais-trabalho é limitado por um círculo mais estreito ou mais amplo de necessidade, ao passo que não se origina nenhuma necessidade ilimitada por mais-trabalho do próprio caráter da produção" (Ibid., cap. VIII, p. 190).
A produção pré-capitalista está essencialmente assentada na produção do valor de uso, diz Marx: "Nos modos de produção da velha Ásia e da Antigüidade etc, a transformação do produto em mercadoria, e, portanto, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha papel subordinado ..." (Ibid., cap. I, p. 75).
Os valores de uso tinham, nela, sua produção restrita aos limites das necessidades do produtor direto, como trabalho necessário, e das necessidades do senhor ou amo, que se apropriava deles como produto excedente, o mais-trabalho. A dinâmica da produção pré-capitalista do produto excedente, do mais-trabalho, era determinada pelas necessidades de consumo do amo ou senhor. Segundo Marx: "O sobretrabalho mostra-se tenebrosamente na Antigüidade, por conseguinte, onde se trata de ganhar o valor de troca em sua figura autônoma de dinheiro, na produção de ouro e prata. Trabalho forçado até a morte é aqui a forma oficial de sobretrabalho". Mas agrega: "Entretanto, estas constituem exceções no mundo antigo" (Ibid., cap. VIII, pp. 190-191).
A exploração capitalista não encontra, por sua vez, limites naturais no consumo do capitalista, no seu estômago. O seu consumo não conta como consumo pessoal, mas como consumo produtivo, da extração do mais-trabalho, da exploração do trabalhador.
Mais um aspecto diferencial, em adição aos aspectos já destacados, pode ser apresentado como específico da forma de exploração capitalista com relação às outras formas de exploração antecedentes. A questão está relacionada aos níveis da violência da exploração. A exploração do produtor direto nas diversas formas da organização social da produção sempre se deu via emprego da violência e coerção do explorador com relação ao explorado; no entanto, no livro I de O capital, Marx destacou em vários momentos os rigores da forma de exploração do capitalismo. A ênfase dada no texto de Marx à questão fez-nos destacar esse aspecto como uma das formas que diferencia a exploração capitalista, e assume nela um caráter de especificidade. Diz Marx:

"O movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores assalariados, aparece, por um lado como sua libertação corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos escribas burgueses da História. Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo" (Ibid., cap. XXIV, p. 262).

O texto de Marx é mais do que contundente ao narrar as andanças do capital, a sua sede vampiresca por trabalho vivo, a sua presença brutal e violenta na História. A sua forma específica de exploração do mais-trabalho, a mais-valia, foi capaz de despertar os instintos mais brutais que se encontravam adormecidos nas formas de exploração do passado. Diz Marx:

"Tão logo porém os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores do trabalho escravo, corvéia etc., são arrastados a um mercado mundial, dominado pelo modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda de seus produtos no exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da servidão etc, são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. Por isso, o trabalho dos negros nos Estados sulistas da União Americana preservou um caráter moderadamente patriarcal, enquanto a produção destinava-se sobretudo ao autoconsumo direto. Na medida, porém, em que a exportação de algodão tornou-se interesse vital daqueles Estados, o sobretrabalho dos negros, aqui e ali o consumo de suas vidas em 7 anos de trabalho, tornou-se fator de um sistema calculado e calculista. Já não se tratava de obter deles certa quantidade de produtos úteis. Tratava-se, agora, da produção da própria mais-valia. Algo semelhante sucedeu com a corvéia nos principados do Danúbio" (Ibid., cap. VIII, p. 191).
A extração da mais-valia como forma moderna de apropriação do trabalho excedente não só subordina as formas de exploração do passado, em coexistência lado a lado com ela, mas lhes acrescenta uma dosagem de destruição da força de trabalho, até mesmo a eliminação física do seu portador.
E finalizemos com Marx:
"E como produtor de laboriosidade alheia, extrator de mais-trabalho e explorador da força de trabalho, o capital supera em energia, exorbitamento e eficácia todos os sistemas de produção anteriores baseados em trabalho forçado direto" (Ibid., cap. IX, p. 244).
* Publicado na revista Novos Rumos, V. 1, nº. 3, julho/set., São Paulo, Ed. Novos Rumos, 1986.
1 Karl Marx, O capital, Coleção Os economistas (São Paulo: Abril, 1983/1984).

2 Octavio Ianni. “Passado e Presente” in Dialética & capitalismo (Rio de Janeiro: Vozes, 1980. p. 40).

3 Octavio Ianni, op. cit., p. 38.
4 Karl Marx, op. cit., cap. XXIV.
Versão modificada de artigo publicado na Revista Novos Rumos. São Paulo (SP).

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