sábado, 6 de agosto de 2011

Memórias - Varal das Lembranças: Política, Sindicato e Comunismo na minha formação (1) / Pedro Vicente Costa Sobrinho

Idos de 1950, meu pai recentemente casado com Dina fora morar de aluguel na Rua Formosa, numa pequena casa conjugada de alvenaria; quase defronte a nossa casa havia um terreno baldio, cuja área era, vez por outra,  aproveitada para instalação de pequenos parques de diversão e também para circos mambembes. A Rua Formosa era curtinha, sem calçamento, precariamente iluminada e com poucas edificações. Próximo dela ficava o Quadro,  pequeno centro comercial com algumas mercearias, butecos, inclusive duas padarias. Não sei  a razão pela qual as pessoas davam a esse lugar o nome de Quadro, porém, suponho, que isso se devia ao fato de convergirem para aquele pequeno pátio nada menos que quatro ruas, e sobretudo pela sua forma, um tanto irregular, de quadrilátero. Nesse lugar, quase sempre havia um palanque armado para shows e apresentações folclóricas; ali eu assisti muitas vezes o Pastoril animado pelo talentoso, debochado e pornográfico palhaço Fadiga, cujas Diana, mestras, contramestras e dançarinas das alas dos cordões azul e encarnado do folguedo eram notórias meretrizes, que moravam nos prostíbulos da zona do Alto do Corrope. Durante os períodos de campanhas políticas, esse espaço era naturalmente ocupado para comícios eleitorais. Próximas da Rua Formosa havia ainda duas escolas primárias: da Igreja Batista Betel, outra municipal também conhecida como O Barracão; e eu freqüentei em momentos diferentes  as duas escolas.

Durante a campanha de 1950 para eleição do Presidente da República, apesar dos meus cinco anos, numa certa noite eu acompanhei com atenção o grande movimento de pessoas em direção ao  Quadro. No dia anterior, já fora lá armado um palanque e, pela manhã do dia do evento, logo  espalhou-se uma onda de boatos que circulou por todas as ruas próximas de onde seria realizado o comício.  Dizia-se que seria muito perigoso sair a noite para o tal comício, pois era certa a presença do comunista Carlos Prestes, e que a polícia e o exército não iriam permitir que nele falasse o tal Cavaleiro da Esperança; mas, diante de tudo que se falou, eu fiquei espantado com a multidão que logo a tardinha foi ocupando todo o espaço do Quadro e das ruas que para o pátio convergiam; até meu pai, pra minha surpresa e medo, fora de costume, havia chegado mais cedo em casa para ir também ao comício. Dina já devia estar sabendo do interesse de meu pai, pois quando ele chegou à mesa estava posta. De rápido nos aprontamos, e ele nos levou ao comício. O locutor começou anunciar os oradores que falariam no comício, e naturalmente enfatizava o nome do Cavaleiro da Esperança, razão maior para presença daquele soberba e aguerrida multidão vinda de todos os recantos da cidade. Logo que foi anunciada a presença de Prestes no local, gritos, vivas e aplausos ecoaram ensurdecedores por todo o pátio e ruas adjacentes, e, então, o Cavaleiro da Esperança foi conduzido nos braços do povo até em cima do palanque. Pouco tempo depois no local chegaram soldados do exército e policiais fortemente armados com ordem expressa para impedir que ele fizesse seu discurso. Segundo meu pai, alegava-se que Prestes estava impedido por Lei de participar de manifestações políticas em locais públicos, e daí o motivo da proibição. A multidão reagiu ao ato dos milicos com vaias e gritos de repulsa, e de voz alta e uníssona bradava: “ Prestes vai falar e que ninguém iria impedir”. A turma do “deixa disso” cautelosamente amansou e conteve a massa, e fez então o convite para que todos caminhassem em passeata até a sede do sindicato dos ferroviários; onde, por ser recinto fechado, Prestes poderia e fez o seu discurso, encima de palanque improvisado na porta de entrada da Delegacia Sindical, e ampliado por dois alto-falantes dirigidos para rua. Meu pai não nos levou até lá, pois já era tarde e na madrugada do dia seguinte ele tinha que ir para o trabalho. Esse fato constrangedor marcou meu primeiro encontro de certo modo frustrado com a política e logo tendo como protagonista Luís Carlos Prestes. É bom frisar que meu pai nunca foi comunista, nem sequer demonstrava qualquer remota simpatia pela esquerda; era eleitor de Vargas, que na época concorria com Juarez Távora, Ademar de Barros, Plínio Salgado e Cristiano Machado ao cargo de presidente da República, e o PCB de Prestes, ora conclamava o eleitor a votar em branco. Depois desse precoce e tumultuado encontro, voltei a ver Prestes, em pessoa, pelo menos, por mais três vezes: em Moscou, quando de sua visita ao Instituto de Ciências Sociais, anexo do PCUS, em 1968; no Rio de Janeiro, no apartamento que lhe foi cedido por João Saldanha na rua Rainha Elizabeth, quando de sua volta ao Brasil já anistiado; e ainda em uma das festas pelo seu aniversário. De Prestes, eu mantenho até hoje o maior respeito e a admiração que   cultivei desde a infância; porém, reservo-me o direito de discordar de muitas posições políticas que ele assumiu durante sua trajetória de vida.  

Cerca de dois anos depois, eu fui visitar numa manhã de domingo minha tia Neném, e encontrei ela muito assustada e preocupada com o que vinha ocorrendo em Jaboatão com operários das oficinas da Rede Ferroviária do Nordeste, pois inúmeras prisões haviam sido feitas sob acusação de envolvimento com o Partido Comunista, inclusive seu vizinho Gérson Ximenes fora preso pelo DOPS, e comentava-se à boca pequena que ele estava sendo muito torturado. Na casa de tia Neném duas palavras eram pronunciadas com cuidado e de modo silente e, geralmente, acompanhadas de um “ Deus me livre”: comunista e ladrão, essa última ela eufemisticamente chamava de pessoa que pegava no alheio. Dois fatos explicavam esse seu modo de agir: seu vizinho à direita era Gérson Ximenes, tido como comunista; e a vizinha à esquerda era sua comadre Júlia, cujo um dos filhos era gatuno. Mas, o que mais preocupava tia Neném naquela manhã era o meu tio João Santana seu enteado, operário da ferrovia e às vezes de comportamento também exaltado. Bem depois vim a saber, salvo engano, que as prisões que foram feitas na época na cidade estavam relacionadas com o envolvimento de ferroviários na “Campanha do Petróleo é Nosso”, lutas pela regulamentação do direito de greve e contra à carestia e suposta ligação com o PCB. Jaboatão, era até então conhecido como Moscouzinho, devido a vizinhança com o quartel do 14° Regimento de Infantaria (14R. I.), palco central da Rebelião Comunista de 1935 em Pernambuco, e também pelo envolvimento de muitos dos seus habitantes com o movimento insurrecional.

Já morando em Ribeirão eu voltei a me aproximar de conversas muito rápidas e superficiais sobre questões políticas que ocorriam numa oficina para consertos de aparelhos de rádio e eletrolas que ficava próxima da marcenaria de meu pai. Lá se conversava sobre socialismo e sobre política local. A cidade de Ribeirão era até então um feudo controlado por dois usineiros: José Lopes de Siqueira e Armando Monteiro; os dois celebraram um acordo desde longa data para evitar que qualquer candidatura de oposição viesse a prosperar e, naturalmente, como decorrência do trato, ficou acertado que de quatro em quatro anos, alternadamente, um deles “nomeava” o prefeito da cidade, cabendo, então, ao outro, a responsabilidade de indicar o vice. Jogo de cartas marcadas, aceito consensualmente pelos comerciantes e senhores de engenhos do município. Salomão, amigo de meu pai, contou-nos que até os candidatos à Câmara Municipal eram indicados para compor as listas dos partidos políticos dos caciques, e previamente eram escolhidos os que deveriam ser votados e eleitos. A usina Estreliana, de propriedade de José Lopes, era o maior colégio eleitoral do município, elegendo metade do número de vereadores da cidade. Na usina Estreliana era muito fácil votar por ser o voto irrestritamente secreto, mas para o eleitor, que recebia um envelope já devidamente lacrado contendo no seu interior as chapas dos candidatos escolhidos; somente era dar-se ao trabalho de depositar na urna. Rindo, Salomão disse-nos que conseguiu romper o cerco e ser votado na usina, graças à persistência de uma velhinha que alegou para o mesário que por lhe dever favores não podia deixar de votar nele; por ser caso único, foi aberto o envelope e trocada a chapa de vereador, sendo posto no seu lugar o voto pra Salomão. Se não me falha a memória, Dr. Stênio Leite era única ovelha desgarrada da elite provinciana local que se opunha a esse tipo de falcatrua; mas isso, ora, eu desconfio que era um simples simulacro, jogo de” faz de conta” tolerado pelos caciques locais.

Em 1958, durante a campanha para o governo do estado, recebemos no Colégio a visita do senador Jarbas Maranhão, candidato do PSD, que concorria com Cid Sampaio da UDN às eleições para governador de Pernambuco. A visita permitida pelo Padre Mousinho não agradou aos chefes políticos locais, que de mala e bagagem apoiavam a candidatura do usineiro Sampaio. Eu apesar de ainda não ser eleitor fui atraído para candidatura de Cid Sampaio pelo meu colega de classe José Teodósio, que era prestamista e bem mais velho que eu. Recordo- me, ainda, que foi ele que ora me levou a sua casa para ouvir através do rádio o grande comício realizado na Pracinha do Diário de Pernambuco em Recife, em que Luís Carlos Prestes manifestou o apoio dos comunistas à candidatura do usineiro Cid Sampaio; esse ato para Teodósio poderia definir as eleições em favor de Cid Sampaio, pois a seu ver os comunistas tinham muitos eleitores em Recife e nas cidades vizinhas, e que o candidato a vice-governador era um conhecido socialista Pelópidas Silveira, ex-prefeito de Recife. Assim mesmo, graças a esses precários, intermitentes e superficiais contatos, os comunistas e sua política passaram a meus olhos a serem bem vistos.

Quando de minha volta à Jaboatão em 1960 pra morar com minha tia Neném, estava-se em plena campanha eleitoral para presidente, e eu de início fui Janista, mas logo depois que soube que os comunistas apoiavam o general Lot eu mudei de arma e bandeira: joguei fora vassourinha para empunhar a espada.

Meus tios e meu avô votavam no general Lot e principalmente no seu vice Jango, mas quem mais me influenciou para mudança de opinião foram as longas conversas que levava à noite com Sebastião Ricardo, em sua casa quando de volta do seu trabalho. Sebastião Ricardo era caldeireiro ou ferramenteiro, profissional altamente qualificado do ramo industrial, e trabalhava como autônomo chefiando uma pequena equipe de operários: torneiros, mecânicos, soldadores, eletricistas, que em equipe fazia a manutenção da maquinaria de usinas de açúcar nas entressafras. Por orientação dele eu comecei a ler jornais: A Hora e Classe Operária, e livros que tratavam de política e principalmente do socialismo. Meu tio João Santana, ferroviário, regularmente me passava o jornal Novos Rumos e, às vezes, Terra Livre, ambos de origem no Partido Comunista Brasileiro. Daí por diante fui me envolvendo com a política e já me considerava um militante socialista sem estar contudo vinculado a qualquer partido de esquerda.

Em l962, já trabalhando como balconista no café Ouro Preto, firma de Antonio Barreto, eu comecei a me envolver com o movimento sindical. Juntos eu Antonio, empregado de outra firma comercial, tomamos a iniciativa de organizar o sindicato dos comerciários em Jaboatão, e para isso fizemos contatos com quase todos empregados das maiores empresas comerciais da cidade, a fim de obter adesões para que a coisa se tornasse possível. Além disso, fomos a Recife pedir orientação e apoio ao líder comerciário João Batista de Vasconcelos, presidente do Sindicato dos Empregados do Comércio de Recife. Em Jaboatão, fomos por Alberto da Cunha Melo levados até ao padre Paulo Crespo, que orientava por missão da Igreja Católica o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaboatão e Moreno. O padre nos orientou quanto aos riscos que estávamos correndo de ser demitidos, pois ele conhecia bem o reacionarismo dos comerciantes de sua paróquia, mas nos deu seu apoio e nos assegurou sua presença na reunião de fundação. Apesar da convocação por panfleto que foi largamente distribuído e também através de conversas individuais com cada um dos colegas comerciários, a reunião na sede da Delegacia do Sindicato dos Ferroviários foi um fiasco. O padre Paulo Crespo e João Batista de Vasconcelos, que haviam cumprido o compromisso assumido de vir participar da reunião, falaram que a coisa era assim mesmo, não sendo portanto novidade pra eles, pois os patrões jogavam contra e até ameaçavam de demissão os empregados que ousavam participar de sindicatos, e que a gente não devia desistir porque mais cedo ou mais tarde o sindicato seria criado; mesmo assim, conseguimos aprovar na reunião uma comissão organizadora provisória, da qual eu fiz parte. As conseqüências da temerária iniciativa não tardaram a vir: Antonio  logo foi demitido da firma de Luís de Melo, e eu tive a cabeça pedida pela Associação Comercial de Jaboatão; mesmo sendo bom balconista e muito benquisto pela clientela do Café Ouro Preto, e na prática também era o dublê de gerente, pois gozava de certa confiança de seu Antonio Barreto, dono da firma. Eu, no entanto, nunca vim a saber  porque razão a minha demissão foi adiada até o início do próximo ano de 1963.

Através do poeta Alberto da Cunha Melo eu conheci o grupo que fazia o jornal alternativo “Dia Virá”. Do grupo do jornal todos os seus integrantes eram católicos, afora Zé Luis de Melo, Alberto e Paulo José da Silva(Pajosi) que seguiam a orientação da ala progressista da Igreja Católica, que tinham como referência a política social da igreja contida nas Encíclicas Papais, principalmente a Rerum Novarum, de Leão XIII, e mais recentemente Mater Et Magistra e Pacem in Terris, do papa João XXIII, os outros não eram e nem tinham compromisso com a esquerda; contudo, em virtude da proximidade que tinha com Alberto e Jose Luis de Melo, eu até que nunca me senti um estranho no ninho.

Depois do fracasso da reunião com os comerciários, a convite de Adalberto Sena, Delegado Sindical, eu comecei a participar de reuniões na sede da Delegacia do Sindicato dos Ferroviários de Jaboatão, e assim fui fazendo amigos no meio sindical. Por trás de minha casa, no Alto da bela Vista, ficava a sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Celulose, Papel e Papelão do estado de Pernambuco, e o meu amigo Zuca era o secretário; através dele conheci toda liderança operária que trabalhava na Fábrica Portela, uma das maiores indústrias de papel da América latina. A maioria dessa liderança tinha ou já havia tido ligação com o Partido Comunista Brasileiro. A partir de então a convivência mais próxima, afora o grupo do “Dia Virá”, Niel e Sebastião Ricardo, passou a ser com lideranças sindicais: os irmãos José e João de Aquino, Adalberto Sena, Manassú, João Evangelista, Camilo, Wandesval Dias Luna, Lenito França, Fernando, Pina. e comunistas notórios como José Napoleão da Silva (Dedé), Borboleta, Correinha, o alfaiate Zé Gaiolão, Cirilo, Elias, José Bosford e outros nomes que não consigo localizar na memória.

Faço um hiato, então, para registrar uma história que Borboleta, um dos líderes dos servidores municipais de Jaboatão, contou-me sobre sua prisão na Casa de Detenção de Recife, hoje Casa da Cultura, por conta do seu envolvimento na insurreição comunista de 1935. Disse-me que, antes dos presos políticos acusados de participar da rebelião de 1935 serem transferidos para ilha de Fernando de Noronha, ele e alguns companheiros tiveram de conviver na mesma cela com presos comuns: vigaristas, gatunos, larápios e outros criminosos de alto periculosidade. Até tudo bem, pois os presos políticos então eram maioria e logo se organizaram em coletivo, constituindo um grupo de certo modo coeso e solidário, com rituais e regras comuns; o pessoal dito marginal ficava então de fora, só vindo a participar de coisas que eram do interesse de todos os detentos. Disse-me ainda, Borboleta, que enquanto ele esteve na Casa de Detenção houve algumas desavenças que, no entanto, eram de imediato contornadas pelo coletivo, “mas isso só era possível quando envolvia pessoas que gozavam de certa sanidade mental”; o que não era o caso de um jovem que dividia a cela com o grupo, e que enlouquecera por supostos espancamentos e torturas infligidas pelos policiais. “Este rapaz contrariava todas as regras acertadas, às vezes gritava noite inteira e assim não deixava quase ninguém dormir, os presos comuns queriam se livrar do sujeito, mas a gente não podia concordar com isso e passamos a proteger o cara”. Os problemas mais sérios da cela eram a superlotação, o calor que beirava os quarenta graus, o vaso sanitário sem tampa e à vista de todos, que ficava num canto da cela, e a falta de água pra lavar o rosto e, sobretudo, para se beber; a comida era uma gororoba pouca e de má qualidade, mas dava pra remediar. Fazia-se de tudo pra manter o espaço limpo, e ficou acertado um rodízio para que cada detento pudesse ficar algum de tempo próximo das grades da cela, onde naturalmente circulava um mais pouco de ar; pra resolver a falta de água foi acordado que todos tinham que evitar usar a privada durante a tarde, pois ela nesse horário passou a ser a fonte de água para abastecer o coletivo.; quanto a isso,” limpava-se bem a privada depois do almoço, vedava-se o fundo com uns trapos de pano e dava-se a descarga, e de novo esperava-se um certo tempo até que a caixa da descarga voltasse a ter água, e assim a água acumulada no vaso era então transportada para vasilhames improvisados, pra ser distribuída em quotas iguais pra todos integrantes do coletivo”. Além disso, encontrou-se um meio de colocar um cobertor isolando o vaso sanitário do ambiente, dando certa privacidade ao usuário. De início houve certa resistência ao acordo da parte de um ou dois marginais sob a alegação de que os comunistas não mandavam neles, mas, no geral, a coisa foi aceita, pois era insuspeita a melhoria que este trazia ao coletivo. O problema maior era o jovem insano, que sempre inventava de defecar fora da hora recomendada e então o pessoal o segurava e não permitia: ele gritava, esperneava e caia em prantos e, às vezes, ficava todo cagado exalando fedor insuportável. “A coisa só foi resolvida quando por pressão dos presos políticos o pobre coitado foi removido da cela em que a gente estava”, concluía Borboleta.

No meio do ano de l962, a esquerda em Jaboatão, em reuniões na sede da Delegacia do Sindicato dos Ferroviários, começou organizar-se para o desfecho da campanha eleitoral no município. Para o governo do estado havia unanimidade, o nome era Miguel Arraes, contra os dois usineiros: Cleofas, que ficou conhecido com João três quedas, e Armando Monteiro Filho, oligarca da Mata Sul, senhor da usina Cucaú. Para deputado estadual os ferroviários haviam escolhido o seu líder Cláudio Braga; federal, não me lembro se foi definido o nome. Apesar de minha forte ligação com os ferroviários, eu, sem ainda ter vínculos com o PCB, fiquei com o candidato dos comunistas: o líder bancário Gilberto Azevedo. Logo que o comitê eleitoral foi instalado e o material de campanha ficou pronto, eu me abasteci de chapas e panfletos e, individualmente ou em grupo, distribuía de casa em casa, principalmente no Alto da Bela Vista em que morava , e em outros Altos circunvizinhos; também participei de muitos comícios e passeatas.

A direita também se organizou, salvo engano, criando a Frente Nacionalista de Jaboatão, de apoio a João Cleofas e a dois outros candidatos: deputado federal, outro a estadual. Um dos dirigentes da Frente era o meu patrão Antonio Barreto, mas confesso que, em momento algum, ele tenha exercido qualquer pressão sobre o que eu fazia, nem sequer falou-me de qualquer coisa relacionado ao assunto. O responsável pelo comitê da tal Frente era um ex-comunista Jacinto Caldas; eu sempre que podia conversava com ele sobre sua militância no PCB, e observei que Jacinto não conseguia se livrar do velho partidão, atribuindo sua saída a certo radicalismo dos velhos companheiros. Ele então falou- me do clima de terror e perseguição que se instalou na cidade após a rebelião de 1935; e que muita gente por isso havia se mudado e, segundo ele, a cidade ficou com muita casa vazia. Nunca obtive provas do confronto armado entre forças policiais e trabalhadores numa pedreira situada no município de Jaboatão, que me foi contado por Jacinto; disse-me ainda que fora um verdadeiro massacre, pois houve muita morte de operários. Paulo Cavalcanti confirma em um dos seus depoimentos esses massacres de trabalhadores por forças policiais em Pernambuco, estimando em centenas de mortos pois a ordem era não fazer prisioneiros. Tempo depois, José Napoleão (Dedé) disse-me que Jacinto Caldas tinha sido expulso do PCB porque sob tortura havia denunciado pra polícia alguns camaradas de sua OB, na Great Western. Durante as eleições de 1963 para prefeito de Jaboatão, Jacinto integrou-se conosco à campanha eleitoral, e voltou a apoiar candidatos comunistas.

Lembro-me ainda que durante a campanha eu juntei-me ao Alberto da Cunha Melo para distribuir chapas e panfletos de apoio à candidatura de Francisco Julião a deputado federal. No dia das eleições, juntos, eu e ele, fizemos boca de urna para Miguel Arraes, Julião e para nossos candidatos a deputado estadual. O poeta Alberto rindo dizia; “essa era uma autêntica união "sacrocomunista”, pois eu apoiava o comunista Gilberto Azevedo, ele, por sua vez, como coroinha do Padre Crespo, apoiava o cristão Arnaldo, e juntos comungávamos com Julião e Arraes. O resultado das eleições em Jaboatão foi o que se esperava de uma cidade com a alcunha de Moscouzinho: Arraes ganhou de Cleofas com grande vantagem de votos, e Cláudio Braga, obteve boa votação na cidade e elegeu-se deputado estadual. No cômputo geral das eleições, Julião elegeu-se para Câmara Federal, e o PCB fez uso de outras legendas partidárias e elegeu Gilberto Azevedo e Cícero Targino à Assembléia Legislativa de Pernambuco.

Após a euforia da vitória de Miguel Arraes, eu desliguei-me um pouco da militância sindical e política. Meu pai havia adoecido repentinamente, e logo depois foi internado no hospital Pedro II com a suspeita de câncer no pâncreas, graças ao apoio e favores de amigos. Na condição de trabalhador autônomo ele não contribuía para nenhum Instituto de Previdência e, portanto, não gozava de qualquer cobertura médica ou de proventos por doença, e daí então eu tive que assumir integralmente as despesas de casa. O salário não dava pra isso, e a saída foi me endividar na firma em que trabalhava. Lembro-me de haver procurado Zé Luis, que estudava medicina e já estagiava no Pedro II, para pedir-lhe que verificasse a real situação de saúde de meu pai. Certa noite, Zé Luis, Alberto e eu, nos encontramos no barzinho em que éramos habituais fregueses; o principal assunto foi a saúde de meu pai, e Zé Luis então me disse que havia falado com o médico que atendia meu pai, e ele havia dito que a suspeita de câncer não mais existia, e que o velho seria submetido de imediato a uma cirurgia com larga margem pra que tudo desse certo. Essa foi uma noite de larga comemoração com cachaça, cerveja, ovos cozidos e tomate com sal, pobre e usual cardápio de sempre.

Durante esse ano, outros fatos políticos ainda mereceram minha atenção: a campanha pela volta do presidencialismo, a greve dos trabalhadores rurais de Jaboatão e Moreno pelo pagamento do salário mínimo, e o Congresso Internacional de Solidariedade a Cuba. Recordo-me que numa área defronte a Estação Ferroviária foi realizado o comício pela volta do Presidencialismo, e Leonel Brizola, que havia sido eleito deputado federal pelo estado da Guanabara, com cerca de 10% do seu então colégio eleitoral, foi o orador principal, falando de modo didático e veemente diante de um bom público que quase lotou o pátio e as ruas que ficavam mais próximas. Brizola, só uma outra vez voltei a vê-lo, quase vinte anos depois em Rio Branco,, quando, então, o ajudei a organizar o PDT no Acre. A greve dos Trabalhadores Rurais transcorreu num clima de conflito e tumulto; de um lado, em decorrência da brutal reação contra ela esboçada pelos donos das três usinas abrangidas: Muribeca, Jaboatão e Bulhões; e também motivadas pelas divergências entre a esquerda e a igreja que disputavam a hegemonia do movimento de trabalhadores rurais em Pernambuco.  A esquerda unida: Ligas, PCdoB e PCB, denunciou durante a assembléia que os líderes, que haviam sido postos a frente do sindicato pela Igreja Católica estavam traindo a causa, e daí, então, foi eleito um novo comando da greve, pondo a atual diretoria sob controle. Os católicos em desacordo abandonaram a assembléia e a greve, indo à justiça para questionar a legalidade da decisão. Algumas vezes durante a greve fui ao sindicato dos ferroviários, onde estava instalado o comando de greve, para levar alimentos coletadas no comércio local para distribuir com os grevistas, inclusive alimentos doados por Antonio Barreto, dono da firma comercial onde trabalhava. Participei eventualmente de reuniões, e foi nelas que conheci Capivara, Dionísio e Clóvis Campelo do PCdoB,  Luis Serafim, das Ligas Camponesas e os líderes sindicais João Evangelista e Camilo, mais próximos ao PCB. 

Em conversa com meu amigo Fernando, operário gráfico numa Tipografia em Recife, eu vim a conhecer a obra de Josué; dias depois ele também me emprestou seu exemplar de “O livro negro da fome”. O livro causou-me profunda impressão, choque e revolta, pois mesmo sendo um pobre, a minha pobreza, contudo, estava longe de ser comparada com a miséria daquelas populações que Josué colocara em suas páginas. Através de Fernando soube ainda que ora Josué estava deputado federal, e que havia proferido recentemente conferência no Teatro Santa Isabel, dentro das atividades preparatórias para o Congresso Internacional de Solidariedade a Cuba, pois a ilha revolucionária estava naquele momento ameaçada de novo de ser invadida por tropas norte-americanas. Josué, segundo Fernando, havia cativado o público que lotou o teatro ao proferir conferência de mais de três horas, intitulada: “Cuba não está só”. Alguns meses depois, Alberto da Cunha Melo convidou-me para assistir, no Teatro Santa Isabel, palestra do professor Amaro Quintas sobre Cuba, evento que fazia parte do ciclo de atividades preparatórias para o tal Congresso. O teatro estava lotado e lá, pela primeira vez, ouvi um pequeno discurso de David Capistrano da Costa, histórico dirigente do PCB, cuja célebre vida de revolucionário passava pela participação na insurreição aliancista de 1935, Guerra Civil da Espanha e na Resistência Francesa. Gostei muito da palestra de Amaro Quintas, que foi apresentado pelo escritor Mauro de Almeida, autor do livro Filosofia dos Pàra-choques,  mas saí de lá ainda mais entusiasmado por ter conhecido o notável Davi Capistrano, com quem pouco tempo depois vim a ter maior proximidade, pois ele era o membro do CEE do PCB que dava assistência ao Comitê Municipal de Jaboatão; esse fato certamente consolidou a grande admiração que já tinha por ele. Davi veio a desaparecer em 1974, vitima da ditadura militar, e até hoje não se conhece que fim seus algozes deram ao seu corpo.

A literatura política que li, além dos jornais de esquerda, foi farta e diversa. Mas, de todo material que me foi posto em mãos, eu considero mais importante a leitura dos livros: O Manifesto Comunista, Princípios Fundamentais de Filosofia, A Concepção Materialista da História, A Formação do Partido Comunista Brasileiro e A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, todos emprestados pelos amigos comunistas.

O Natal de 1962 foi um dos piores de minha vida.Por causa da doença de meu pai a família só havia acumulado dívidas, até de aluguel; ainda bem que o senhorio, Nelson Ximenes, era um bom amigo e confiava na gente. O 13º salário que recebi mal deu pra liquidar a dívida que durante alguns meses eu havia  acumulado no Café Ouro Preto, firma em que trabalhava. Mas, o pior havia passado, ora meu pai vinha bem e estava em franca recuperação da saúde, só me restava, então, não ser tomado pelo desânimo e agir como sugeriu Paulo Vanzolini: “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima.”


Fotos pela ordem de postagem no texto: (1) Luis carlos Prestes; (2) Miguel Arraes; (3) Leonel Brizola; (4) Davi Capistrano da Costa.

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