segunda-feira, 31 de agosto de 2009

ARTIGO - POESIA E TERROR - JOSÉ CASTELLO

José Castello



Ano de 1958. Já no fim da noite estalinista, chega às livrarias de Moscou a primeira antologia poética de Anna Akhmátova, uma das mais notáveis poetas da Rússia. Anna tem quase setenta anos. Sua poesia solar, em que o silêncio importa tanto quanto a palavra, seduz os leitores russos. Três anos depois, os 50 mil exemplares da segunda edição são vendidos em poucas horas.

Durante três décadas, o regime de Joseph Stalin proibiu as edições da poesia de Anna (1889-1966). Em 1921, seu primeiro marido, Nikolas Goumilev, é fuzilado. Em 23, seus livros são banidos. Seu único filho, Lev, é perseguido e deportado. Sua poesia carrega, desde a origem, o veneno do terror.

Meio século se passa. Estamos no Recife. Uma foto esmaecida de Anna Akhmátova aparece na capa de um livro de Fernando Monteiro. A imagem é o primeiro golpe desferido por Vi uma foto de Anna Akhmátova (Fundação de Cultura Cidade do Recife). Os olhos distorcidos pela penúria, uma expressão em que o desespero se mistura com a bondade, as franjas antigas a decorar um rosto sensual e morto.

Escreve Fernando, sem nos poupar de nada: “Vi essa mulher, com meus olhos cegos./ Vi sua vontade de morrer”. O poeta assume, desde logo, sua cegueira _ limitação que é, também, potência. Através dos versos (dos olhos foscos de Anna), ele contempla o crepúsculo de um mundo. Não apenas a censura e a perseguição política, mas uma dor muito maior, que só a poesia pode ver.

Os versos de Anna desmentem a rispidez da burocracia de Estado. Neles, as palavras são maleáveis e se deixam revirar. Aliás: é para isso que estão ali. O terror não é só o pavor que os poetas experimentam durante o império de Stalin. Terror – o poema hoje me permite ler – é, também, espanto. Os agentes que perseguiram Anna, os mesmos que fizeram do terror político um instrumento de dominação, sofreram de outro tipo, mais sutil e fértil, de terror (estupor): o da beleza. Por isso amordaçaram Anna Akhmátova.

No poema de Fernando, beleza e espanto se igualam. Versos que são também “a receita para enlouquecer um poema”. Todo grande poema, na medida em que assassina a poesia que o precede, se torna, sempre, um crime. Poema que leio com dificuldades, porque me dói, mas que também me desperta. Nele, o sofrimento vitaliza o presente.

A cada verso, as imagens explodem. Leio, penso e anoto – o livro, em pouco tempo, está imprestável. Mas é assim: ler é lutar com a escrita. Não é fácil duelar com um poeta hábil e de peito nu, um poeta que não se esquiva da dor. A fotografia de Anna Akhmátova chega às mãos de Fernando Monteiro durante um segundo crepúsculo: o da escrita. E escrever, para ele, é resistir.

Também em nosso mundo pragmático e “de resultados” – tanto quanto no mundo burocrático e “de ordens” de Josef Stalin -, Anna Akhmátova se torna distante e irreal. Nem chega a ser uma mulher, é só um vulto. Vi uma foto de Anna Akhmátova ultrapassa os acontecimentos dessa, ou daquela noite. Fernando escreve naquele ponto em que a poesia, ao recolocar em cena o que não queremos ver, desperta, sim – a palavra é essa – outro tipo de terror. Acostumados com as facilidades do virtual e da pronta-entrega, nem sempre suportamos.

Nas circunstâncias dolorosas do estalinismo, a poesia custou a Anna Akhmátova um alto preço. Não lutou só contra um regime de força. Em outra frente, combateu os vanguardistas que, manejando novas algemas, aprisionaram a literatura em manifestos, obrigações, dogmas. Contra a palavra implacável e estreita, Anna defendeu o frescor da palavra plena. A palavra insubstituível que, em cada poeta, tem um rosto.
A tristeza é o pano de fundo, o contraste necessário contra o qual o poema se impõe. É preciso sustentá-la. Escreve Fernando: “Você pensa, então, que não está só – mas está”. Todo leitor está sozinho. Assim é a foto de Anna: bela, justamente porque insuportável. Carregada de segredos, porque direta e simples. Uma fotografia que me leva para além da imagem; e que (como um poema) aumenta minha solidão.

Corajoso, Fernando Monteiro se assume como um poeta “que se desgoverna”. Está cansado dos pedidos de que “se acalme”, “não diga isso”, “tenha cuidado”, “meça as palavras”. A poesia é o mar da intranqüilidade. Nela tocamos nas piores coisas porque a beleza sempre nos salva. Zona de perigo, em que as precauções são inúteis. Terreno de liberdade no qual a escrita não se submete a medidas e não se amedronta.

Assim é o longo poema de Fernando: irregular (mas, por isso, magnífico); doloroso (e, por isso, comovente). Quanto a Anna, é só uma mulher que olha para a morte. Está em seu rosto: “tudo tão dramático e tão breve que punge”. Dor que enlouquece, imitando a história do professor de violino que, depois da prisão da mulher, perde o juízo e afunda em um mundo parecido com “o crepúsculo indeciso de um quadro de K. A. Somov”. Sim: enlouquecer é o mesmo que perder-se no interior de uma tela. Ou de um poema.

A foto de Anna Akhmátova surge no Recife. Mas podia estar em um bazar de Nova York. A lógica do terror, mesmo carregada de novos conteúdos, sobrevive. Terror que assim se define: “não escolher as vítimas,/ não se compadecer delas,/ não poupá-las, nem deixá-las fugir”. Não se trata dessa ou daquela bandeira, desse ou daquele dogma. Há uma parede de granito contra a qual os mortos são derrubados. Contra ela a beleza se choca.

Também Fernando – ao contrário de Ivan Turguêniev, o primeiro escritor russo a conquistar a Europa – recusa “a língua elegante do Ocidente”. Aproxima-se, mais, de Fiodor Dostoievski, um escritor em descompasso com o mundo, sempre empurrado para a sarjeta. Esse é o espanto (terror) que a poesia causa: ela nos escava e nos expõe; em um mundo de superfícies, brilhos e padrões, isso se parece com um crime.

Escrita com sangue, a poesia de Fernando Monteiro (como a de Ana Akhmátova) imita a Natureza, que “é sem justiça e sem perdão,/ acende-se nos vulcões e nos corações”. Natureza que, se soubermos olhar, expõe nosso interior. Escreve Fernando: “Vi uma foto de Anna Akhmátova/ que me permitiu ver a alma na carne".




José Castello, “Poesia e Terror”, publicado em O Globo (22.08.09) -- Caderno Prosa & Verso -- sobre Vi uma foto de Anna Akhmátova, poema de Fernando Monteiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto de José Castello, sobre um poema que parece ser grandioso (ainda não o li).
DONATO ASSIS

Anônimo disse...

Belo texto de José Castello, sobre um poema que parece ser grandioso (ainda não o li).
DONATO ASSIS
donessis@hotmail.com