terça-feira, 9 de setembro de 2008

DISCURSO - SONHAR É PRECISO ... - Pedro Vicente Costa Sobrinho



Ao púlpito: Pedro Vicente; ao lado: Vicente Serejo


Senhor Presidente. Senhores Acadêmicos. Senhores e Senhoras,


A esta Casa de Câmara Cascudo e Henrique Castriciano, solidamente edificada neste espaço graças ao trabalho, persistência e tenacidade do ilustre Manoel Rodrigues de Melo, chego movido e embalado pelos sonhos. Confesso que cultivei muitos sonhos, e posso dizer com toda segurança que não radicalizei esses sonhos e, portanto, pude colher deles bons frutos; quanto a isso fui paciente, humilde e obstinado, com a certeza de que, conforme Nietzsche, “No processo dos seus sonhos o homem se exercita para a vida futura” (BORGES, 1994, p. 90).


Senhores Acadêmicos,


Como todos os homens simples, um certo dia fiz a desejada viagem de busca das lembranças, guiando-me ao encontro delas como se fossem sonhos congelados que tentava perenizar na memória, consoante com as palavras do poeta Antonio Machado: “De toda a memória somente vale o dom esclarecido de evocar os sonhos” (BORGES, 1994, p. 62). E conduzido pelos ditames da memória, como se pudesse voltar a começar, regressei em 1982 a Jaboatão, cidade na qual vivi parte da infância; e nela cultivei os meus primeiros sonhos intelectuais, convivendo com o núcleo de poetas que ensejaram em Pernambuco a geração 65: Alberto da Cunha Melo, Jaci Bezerra Lima, José Luiz de Melo e Domingos Alexandre. Logo ao chegar, dirigi-me aos locais onde pudesse melhor evocar a minha presença, como o fez o personagem Bentinho, no Dom Casmurro de Machado de Assis: “corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim” (ASSIS, 1992, v. 1, p. 885).
 
O oratório, capela onde costumava ir à missa, foi o primeiro ponto de parada e também de amarga desilusão. Ao deparar-me com a nova realidade, tudo que até aquele instante era sólido e estável na memória se esfumou (MARX, 1977, v. 3, p. 24). Do velho oratório não restou nada, e sobre ele ergueram um prédio de inusitado mau gosto, que ocupou o espaço e aterrou as lembranças.
 
Dominado pelo espanto, pois da velha paisagem contida na memória restou para mim à pungente realidade das lembranças destruídas, conclusão a que chegara também Tônio Kroeger, personagem de Thomas Mann: “E o presente não se diferenciava em nada das visões enganadoras e ilaceráveis do sonho, no qual nos perguntamos se isto é ilusão ou realidade, e, forçados pela convicção, nos decidimos pela última, para, no fim de tudo, acordar...” (MANN, 1971, p. 52). No entanto, senhores acadêmicos, diante dos meus olhos um fato chamou-me a atenção: a presença de muitas crianças, em trajes humildes, sentadas à sombra ou correndo no pátio ensolarado do velho oratório. Aproximei-me de um indivíduo adulto que me pareceu criatura afável e bondosa. Era um ex-padre, que orientava o grupo de crianças. Disse-me com voz terna, porém determinada, que hoje aqui é um abrigo e escola para crianças de ruas, que já não tinham mais sonhos. E o trabalho que ali realizavam tinha por objetivo devolver a elas o direito de sonhar.
 
Diante dos fatos, contive minha indignação, penitenciei-me diante do que vi e passei a amar aquela obra, pois, em que pesem todas as pedras que tive que carregar e remover pelos caminhos do mundo afora, jamais deixei de sonhar. E, portanto, “se não tive ouro, se não tive gado, se não tive fazendas, e hoje sou funcionário público aposentado”, posso, no entanto afirmar que em momento algum a vida me pareceu inútil, enfadonha e sem horizonte (DRUMMOND, 1975, p. 36-37).
 
Senhores acadêmicos. Antes que passemos à parte que cumpre as exigências protocolares do ritual acadêmico, quero lhes confessar que, igualmente ao patrono padre Brito Guerra e ao fundador da cadeira 31 desta Casa, escritor José Melquíades de Macedo, sou um homem que se considera vitorioso e de bem com a vida.


Padre Francisco de Brito Guerra

 
O Patrono

A cadeira 31 recebeu como patrono o padre Francisco de Brito Guerra, em 31 de março de 1957, quando da ampliação de 30 para 40 do número de cadeiras acadêmicas. O fundador da cadeira, José Melquíades de Macedo, eleito em outubro de 1964, quando de sua posse, em 26 de agosto de 1967, já havia escrito a biografia do Padre Brito Guerra. Esta biografia, publicada em 1968, passou a ser obra de referência, a mais abalizada, para o estudo da ilustre e destacada personalidade da política e da vida cultural do Rio Grande do Norte, no século 19.
 
O Padre Brito Guerra nasceu em 18 de abril de 1777, em Campo Grande, hoje município de Augusto Severo. No estudo das primeiras letras foi orientado pelo padre Luiz Pimenta de Santana. Aos doze anos, seu pai, Manuel da Anunciação Lira, entregou sua educação aos cuidados do mestre Manuel Antonio, residente em Pasmado, povoado, à época, integrante da cidade de Igaraçu, Pernambuco.
Após sua estadia de aprendizagem em Pasmado, o adolescente Brito Guerra voltou ao Seridó, daí saindo para o Ceará, onde em Baturité lecionou latim. Em 1800, ingressou no Seminário de Olinda, e dois anos depois, em 1802, aos vinte e cinco anos, ordenou-se padre. Período de tempo relativamente curto, segundo seu biógrafo. No início do mesmo ano celebrou sua primeira missa em Campo Grande, onde nascera, e onde permaneceu como capelão durante nove meses.
 
Registre-se o fato de que há certa lacuna ou desencontro de informações quanto à trajetória de vida do Padre Brito Guerra, entre os anos de 1802 e 1810. No Rio de Janeiro, em 1810, submeteu-se ao concurso de provas e títulos para o posto eclesial de Vigário Colado de Caicó, e foi aprovado. No exercício de suas funções sacerdotais foi, por duas vezes nos anos de 1815 e 1833, designado Visitador Apostólico e Delegado do Crisma nas Províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

O Político

Padre Brito Guerra foi suplente de deputado geral pela província do Rio Grande do Norte, vindo a ocupar o cargo na condição de titular na Câmara de Deputados do Império, em 1831, por morte do padre José Paulino. Elegeu-se deputado, em 1833, para o período legislativo 1834 – 1837. Em julho de 1837, o seu nome foi incluído em lista tríplice para cargo vitalício no Senado do Império, em substituição ao senador Afonso de Albuquerque Maranhão, que havia falecido. Sendo escolhido e designado senador, exerceu o mandato no período de 1837 a 1845, quando veio a falecer no Rio de Janeiro.
 
No exercício da atividade política, na Câmara de Deputados e Senado do Império, o Padre Brito Guerra foi muito atuante, creditando-se a ele iniciativas com relação a política de açudagem; aos limites de terra entre as províncias do Rio Grande do Norte e Paraíba; na criação de cadeira de ensino de Latim em Caicó; ao salário de professores, entre outros. Brito Guerra também presidiu a sessão de instalação da Assembléia Provincial do Rio Grande do Norte.
 
O intelectual e educador
 
O Padre Brito Guerra dedicou-se ao magistério durante grande parte de sua vida. Preocupado com a instrução e formação intelectual dos jovens de sua paróquia, e de modo extensivo com toda região do Seridó, fundou escola para o ensino de latim. Segundo o mestre Cascudo:
“A escola do Padre Brito Guerra foi o núcleo irradiante da sabedoria sertaneja em toda região do Seridó. De longes terras vinham rapazes a procura do padre, que ensinava gratuitamente e hospedava os alunos pobres. A pequenez do Instituto não diminui a projeção fantástica, como elemento precípuo de formação mental de muitas gerações” (MELQUÍADES, 1968, p. 47).
 
A produção intelectual do Padre Brito Guerra, pelo menos em registro, inicia-se com sua participação entre os autores do livro “A gratidão pernambucana”. Livro que o seu biógrafo qualifica de: “espécie de florilégio perfumado em incenso e turíbulo”. Adiante, ainda o definiu “como um tratado de bajulação” (MELQUÍADES, 1968, p. 65). Sua poesia dos vinte anos, também no livro contida, não revela qualidades literárias de um verdadeiro poeta em nosso ilustre patrono. No entanto, na quarta parte do livro “Gratidão pernambucana”, na qual estão os discursos formais, escritos em latim pelos seminaristas, encontra-se a peça intitulada “Oratio Academica”. Essa peça literária e mais o primeiro discurso redigido em 1800, que também mereceu registro no referido livro, para Melquíades, realçam e atestam o mérito de orador e sermonista de Brito Guerra, sendo, portanto, segundo seu biógrafo, as primeiras peças de qualidade literária, produzidas por autor norte-rio-grandense.
 
O orador Brito Guerra, revelado nas suas primeiras obras, construiu e consolidou seu domínio e mestria na arte retórica, através dos muitos sermões que proferiu no púlpito da igreja de sua paróquia, além de outros pronunciados em núcleos religiosos da província. Na esfera da política, muitos devem ter sido os discursos que pronunciou na condição de candidato, deputado geral e senador vitalício do Brasil Império.
 
O intelectual Padre Brito Guerra também foi pioneiro com relação à imprensa e ao jornalismo no Rio Grande do Norte. “O Natalense”, jornal político, moral, literário e comercial, começou a circular em 1832, impresso inicialmente em tipografias instaladas em outras províncias: Maranhão, Ceará e Pernambuco, entre outras, peregrinando suas páginas por essas plagas até que fosse, em Natal, inaugurada a “Typografia Natalense da Sociedade Typográfica”, criando às condições para regularizar a periodicidade em suas edições.
 
Francisco de Brito Guerra, o padre, o educador, o jornalista, o epistológrafo, o orador, o político; enfim, o intelectual de corte renascentista, cujo perfil não estaria completo se lhe faltassem realçar o seu lado profundamente humanitário e o zelo com relação aos interesses de sua Província e do Brasil. Fecho a parte protocolar desse discurso usando as palavras de José Melquíades: “Assim era o padre Guerra: bom, caritativo, pensador e humano” (MELQUÍADES, 1968, p. 146).


Diógenes da Cunha Lima, Nílson Patriota e Pedro Vicente: leitura do Juramento
 
O fundador

Se o nosso patrono alimentara sonhos não realizados de merecida ascensão na carreira eclesial, o acaso e a fortuna na política todavia lhe foram sobejamente compensadores. O padre Brito Guerra assumiu mandato na Câmara de Deputados do Império, por morte do titular do cargo. Próximo da corte, ele foi escolhido para o cargo de senador vitalício do Império, também por morte do antigo ocupante.
 
No que diz respeito a José Melquíades, posso afirmar, com certeza, que foi um homem feito de sonhos, que soube transformá-los em efetiva realidade graças a sua competência, perseverança e obstinação. Ao recuperar de modo rápido e superficial os cursos de sua vida pessoal e intelectual eu procuro demonstrar, com sobras, que Melquíades foi um homem vitorioso.
 
Nascido em Igreja Nova (Macaíba), ele teve sua origem em uma família de poucos recursos, “... órfão muito cedo e teve de ganhar a vida duramente. Foi trabalhador de salinas no Açu, cozinheiro de barcaças em Areia Branca e pracista em Macaíba.” Daí, como decorrência do estimulante convívio e amizade com Dom Joaquim Antonio de Almeida, primeiro bispo de Natal, convenceu-se a entrar para o Seminário São Pedro, no qual permaneceu entre os anos 1945 a 1948. A descoberta da falta de vocação para a carreira eclesial levou-o a deixar o seminário e reingressar na vida profana.
 
Melquíades aproveitou plenamente os duros anos de Seminário. E no convívio instigante com mestres e seminaristas, à saciedade, soube cultivar as bases para uma cultura humanista sólida e erudita. Daí por diante removeu pedras e abriu caminhos, indo do colegial no Atheneu Norte-rio-grandense ao curso de Direito, concluído em 1956 na Faculdade de Direito de Alagoas. Depois se diplomou em Letras pela Faculdade de Filosofia de Natal.
 
Registro digno de realce, na vida de Melquíades, foi o fato que ocorreu quando de sua ida aos Estados Unidos. Na ocasião, deixara sua esposa grávida, próximo de 60 dias do trabalho de parto. O amor, a cumplicidade terna, afetiva e solidária de Dona Gizelda deram-lhe o suporte para manter sob controle a preocupação e a ansiedade naturais, permitindo ao marido, com a viagem, realizar o sonho por muitos anos acalentado.
 
Melquíades foi um notável professor, por vocação. Lecionou em várias escolas de Natal e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, consagrando-se como mestre no ensino do Latim, Inglês e Literatura anglo-americana. Da UFRN recebeu o título de Professor Emérito. Foi sócio-efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, e fundador da cadeira 31 desta Academia, sendo eleito em 8 de outubro de 1964, com posse em 26 de agosto de 1967.
 
Para além de sua reconhecida cultura erudita e humanista, nos marcos de exigência da província, Melquíades teve, de certo modo, uma produção intelectual alentada e versátil, pois centenas de páginas de sua lavra foram publicadas em diversos jornais e revistas nos quais colaborou. E foi também autor de cerca de dez livros, entre os quais, dois romances.
 
Não tive a honra de conhecer pessoalmente Melquíades, e sequer a oportunidade de me relacionar com seus familiares, no entanto, privo da amizade com muitos que foram seus amigos, no convívio intelectual e boêmio. Deles pude colher depoimentos convincentes de que era uma criatura generosa, solidária e pródiga de amigos. As qualidades, virtudes e méritos a ele atribuídos o tornam diferente, distinto e o enobrecem. Afinal: um homem de bem com a vida!
 
Veríssimo de Melo, em curto perfil que traçou dele, registrou a frase de um norte-americano que morou em Natal, Mr. Robert Lindquist: – Melquíades não tem um osso ruim! (MELO, 1974, v. 2, p. 301). Se assim foi o homem, cabe-nos agora nos aproximar da obra.

Comissão de recepção: Nílson Patriota, Vicente Serejo e Dorian Gray
 
O autor

Como fruto de sua curta permanência de seis meses nos Estados Unidos para estudo da língua e literatura inglesa, Melquíades escreveu seu primeiro livro: “Os Estados Unidos, a mulher e o cachorro”, com duas edições, 1961 e 1963. Livro de viajante que, com certeza, o alinha com a melhor tradição de autores da literatura de viagem, brasileiros e estrangeiros: Jean de Léry, Koster, Burton, Lobato, Érico Veríssimo, entre outros. Mestre Câmara Cascudo prefaciando o livro disse:


"José Melquíades colabora na campanha realística do conhecimento com este episódio, de casos, de notas absolutamente suas, legítimas, puras, leais. Com uma vida trabalhada e estudiosa, arguto e lépido, tendo o que muita glória literária desdenha de possuir, uma sólida e segura cultura humanística..., de formação incomprimível e autenticamente democrática, viajou pela terra e conviveu com os norte-americanos sem dobrar os joelhos e sem fazer caretas agressivas... E não lhe faltam os efeitos decorativos da linguagem tranqüila e própria, segurança de visão direta, clara e nobre... “Um livro em que se pode confiar” (MELQUÍADES, 1961, p. 11).


Li este livro com redobrado interesse, pois sou leitor entusiasta e contumaz da literatura de viagem. Nele pude encontrar qualidades inegáveis de bom observador, que soube registrar literariamente suas impressões no que diz respeito aos fatos vivenciados no cotidiano de suas relações com a sociedade americana. Realcem-se ainda o humor e a leveza da ironia contidos no texto, que dão sabor todo especial à sua leitura. Como exemplo, Melquíades dá novo conteúdo semântico para a frase “Levo uma vida de cachorro”. Se for nos Estados Unidos, diz ele, é uma vida boa.

Livro de estréia, sem dúvida, com os defeitos naturais decorrentes da ausência da chamada “imaginação sociológica” para uma leitura mais rigorosa e substantiva da sociedade americana; no entanto, faço coro com Cascudo, por ser livro no qual se pode confiar. E mais, literariamente se incorporou ao patrimônio da nossa boa literatura de viajante, pois feito para permanecer e resistir incólume à voragem do tempo.
 
O segundo livro publicado de Melquíades foi a biografia do patrono da cadeira 31, cujo título é “Padre Francisco de Brito Guerra, um senador do Império”, edição de 1968. A biografia pareceu-me uma decorrência direta da necessidade de informações para o preparo do seu discurso de posse nesta Academia. Melquíades não se dera por satisfeito com o material já disponível para traçar o perfil do patrono da cadeira 31. Pôs mãos à obra, buscou novas fontes, farejou documentos e revirou arquivos, fez viagens e assim construiu seu livro.
 
O ensaio biográfico de Melquíades sobre o padre Brito Guerra é, segundo Veríssimo de Melo, “... a mais brilhante e minuciosa pesquisa que existe sobre o fundador de nossa imprensa” (MELO, 1972, v. 1, p. 188). No entanto, ressalvada a condição de pesquisa pioneira, e mais completa por trazer novo acervo de informações a respeito do biografado, o texto é desigual, carecendo de maiores cuidados do ponto de vista da estrutura narrativa e da construção literária.
 
Os autores do ensaismo biográfico no Brasil já nos deram obras literariamente consagradas. Obras primas que podem ser comparadas com os melhores ensaios biográficos realizados por escritores franceses e, especialmente, ingleses. Dentre eles destaquem-se Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, Francisco de Assis Barbosa, Edgar Cavalheiro, Tristão de Athayde, Gilberto Freyre, entre outros.
 
Na província, nosso paradigma é Câmara Cascudo, com dezenas de biografias e perfis: alguns longos e outros mais curtos, todos eles, entretanto, prenhes de informações e literariedade. A biografia do padre Brito Guerra, por sua vez, se tem o mérito de atenuar a grave carência de informação sobre o proeminente personagem, não se realiza enquanto obra literária. No entanto, vai ficar, pois suponho que não haverá outra de igual cariz e alcance.
 
Os perfis: de Padre Brito Guerra, Dom Joaquim de Almeida e Auta de Souza, reunidos em livro e publicado em 1978, são dois deles frutos de duas palestras. O primeiro ensaio foi decorrente de obra de maior envergadura; o terceiro, escrito sem nenhuma pretensão de originalidade. O segundo perfil trata-se de um pequeno texto anos antes elaborado (o autor informa que em 1948), e se constitui num belo ensaio, no qual é feito o resgate para a história do Dom Joaquim Antonio de Almeida, primeiro bispo de Natal. Nele se traça de modo denso e com objetividade o perfil desse homem humilde, virtuoso e de rara grandeza; um personagem até esquecido, mas emblemático da igreja católica nordestina. Melquíades fez um texto com amor para quem, disse ele, “... devo tudo o que sou e lhe tenho respeitosa recordação irmanada ao imperioso dever de gratidão” (MELQUÍADES, 1978, p. 7).
Deixo neste discurso uma lacuna, porque não comento o ensaio que se enquadra como perfil biográfico: Armando Fagundes, uma vida dedicada à maçonaria, publicado em 1997. Peço desculpa aos senhores acadêmicos por essa omissão, pois confesso, não tive o devido zelo na busca de acesso ao referido texto.
 
Os livros encimados com a palavra história revelam com propriedade o historiador amador, isto é, o bom e competente leitor, o devotado pesquisador: farejador de documentos e arquivos, no entanto desprovido da teoria e técnicas indispensáveis ao profissional da ciência e da arte da história.
 
O livro “História de Santos Reis: a capela e o bairro, edição de 1999, que contém uma outra publicação de 1998: “A capela de Santos Reis – resumo histórico”, tem o mérito de ser obra pioneira e original por iniciar, entre nós, textos monográficos sobre a história dos bairros da cidade de Natal. Ninguém melhor do que Melquíades para escrever sobre o bairro de Santos Reis, pois nele morou por mais de meio século, e reunia, com excesso, duas condições básicas: o amor pelo enclave e a capacidade intelectual para realizar o empreendimento.
 
Ao ensaio devem ser creditados outros méritos, realço todavia no texto a objetividade e a delicadeza da linguagem ao traçar perfis de personagens simples, porém de importância relevante no cotidiano do bairro. Sem este resgate esses tipos anônimos ficariam nas sombras, sem o menor registro de sua presença na história dos homens. Há fatos controversos narrados no ensaio, porém não houve em vida a necessária resposta ao autor. Por isso, deixo de comentar esses fatos, por não ter condições de submetê-los ao crivo do contraditório na história.
 
“Historia do Seminário de São Pedro” (1999) é um pequeno livro proustiano. Uma busca dos idos tempos de seminário, com sua marca indelével na vida do autor. Considero imprópria a denominação de história a esse livro, pois, a meu ver, são crônicas reunidas que resgatam momentos da existência daquela instituição eclesial, com perfis de personagens que a edificaram e nela conviveram. O talento literário de memorialista de José Melquíades, já presente no seu primeiro livro, neste, sem retoques, apresenta-se de modo acabado e definitivo.
 
Livro publicado em 1992, “Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes” é o ensaio que marca de modo definitivo o ingresso de Melquíades no círculo dos bons memorialistas. Na orelha, deste, que é uma bela peça literária, Diógenes da Cunha Lima relata: “Leio os originais do ‘Clube dos Inocentes’. A cada página a memória boa me acode trazendo alegria intensa e quase lágrima”. Adiante, cita em inglês versos do poeta W. B. Yeats e transcria: “Em verdade, nada do que amamos demais pode ser avaliado pelos sentidos comuns” (MELQUÍADES, 1992, orelha 1).
 
A recepção ao livro pode ser melhor apreciada por esses extratos de depoimentos que citamos:
“José Melquíades, nesse admirável trabalho, fixa o componente humano do etéreo “Clube dos Inocentes” no tempo e no espaço, possibilitando aos contemporâneos e pósteros, a contemplação descontraída de uma das mais pungentes épocas da história lúdica, social e cultural do Rio Grande do Norte” – João Batista Cabral (MELQUÍADES, 1992, s.n.).
 
“A sua leitura nos prende e nos fascina, pelo estilo ameno e envolvente. ... Lendo-o, da memória jamais se apagará...” – Enélio Petrovich (MELQUÍADES, 1992, s.n.).
“Esse livro tem a delícia da lembrança e faz perpétuo o Clube dos Inocentes” – Diógenes da Cunha Lima (MELQUÍADES, 1992, s.n.).
 
Que mais tenho a acrescentar? Alio-me, pois, enquanto contumaz leitor do memorialismo nativo e forâneo, ao que está contido nesses expressivos depoimentos.
 
“Literatura japonesa: ficção, poesia, música, teatro, mitologia”, por sua vez, teve duas edições: 1983 e 1993. É uma obra circunstancial, motivada pela carência de material bibliográfico no Brasil, e em particular no Nordeste, referente à rica e milenar cultura do Japão. Em entrevista ao jornalista Nelson Patriota, publicada no Jornal “O Galo”, Melquíades confessou que não dominava a língua japonesa. Portanto, as informações que dão corpo ao texto vieram de fontes secundárias. A bibliografia que ele elencou na obra demonstra que suas fontes foram autores de reconhecido valor como especialistas que, no entanto, se expressaram em língua inglesa.
 
Apesar de sua pretensa extensão e abrangência, fato que o torna ainda mais epidérmico e superficial, o pequeno livro mesmo assim tem um valor todo especial; em decorrência do esforço acadêmico de organização e também por seu didatismo. Segundo Luís Carlos Guimarães: “A linguagem de fácil compreensão, com a preocupação de clareza aliada ao seguro domínio do assunto, faz sua leitura amena e empolgante” (MELQUÍADES, 1992, capa 2).
 
Melquíades foi um polígrafo. O escritor cultivou com mestria uma obra predominantemente ensaística, sem deixar no entanto de aventurar-se por outros gêneros da arte literária. A ficção foi um deles, com dois romances: “Juca Porfiro,” menção honrosa no concurso literário Câmara Cascudo (1967), publicado em 1977, e “A morte do goitizeiro”, primeiro lugar no concurso literário Câmara Cascudo (1997).
 
“Juca Porfiro”, romance de estréia, tem o mérito, segundo Manoel Onofre Jr., “... como exercício, adestramento, para o autor. Com a experiência adquirida, Melquíades alcançou a maturidade necessária para maiores vôos” (MELQUÍADES, 2001, orelha 1).
 
“A morte do goitizeiro”, por sua vez, teve boa recepção entre seus muitos leitores, vejamos os depoimentos:
 
“... é um romance universalmente elogiado e bem acolhido pela crítica. Nele o autor demonstra que possui autoridade de sobra para vôos altíssimos das altitudes machadianas” – João Batista Cabral (CABRAL, 2002, p. 6).
 
“... A linguagem enxuta, despojada de adjetivos supérfluos, confere agilidade e dinamismo à narrativa, que encanta pelo lirismo e transforma prosa em poesia. À semelhança de Machado de Assis, a ironia é sutil, o enredo bem constituído. As personagens transitam livres, serenas e transparentes” – Diógenes da Cunha Lima (MELQUÍADES, 2001, capa 4).
 
“... Sugere um clima de autobiografia; a forma do romance acrescenta à reflexão, questionamentos existenciais, a busca de um sentido para ser e estar no mundo. A linguagem ao mesmo tempo simples e rica oferece informações sobre temas que ampliam o horizonte do leitor. Muito mais que um romance, José Melquíades escreveu um livro de aprendizado de vida” – Luís Carlos Guimarães (MELQUÍADES, 2001, capa 4).
 
“... trata-se de um romance, em tom memorial, na melhor tradição do gênero. Todavia não lhe falta modernidade. Se a estrutura é um tanto desusada, o mesmo não se pode dizer da linguagem e do estilo. Clareza, agilidade, vigor são virtudes que muito dignificam o texto” – Manoel Onofre Jr. (MELQUÍADES, 2001, orelha 2).
 
O percurso que tracei para acompanhar a produção intelectual múltipla e naturalmente desigual do fundador da cadeira 31 não foi construído cronologicamente. Procurei, grosso modo, agrupá-la tematicamente: narrativas de viagem, perfis e biografias, memórias, ensaios e ficção. A produção literária compulsada restringe-se todavia ao conjunto de obras editadas sob a forma de livro, pois não foi possível reunir o muito que Melquíades publicou em jornais e revistas.
 
Que a obra de José Melquíades consiga o estatuto do permanente. Que a ela se cumpra o vaticínio do personagem Quincas Borba, de Machado de Assis: “...Vês este livro? É “D. Quixote”. “Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino” (ASSIS, 1992, v. 1, p. 649).
 
E fecho este esboço de perfil de José Melquíades, citando Jorge Luis Borges: “... Cada vez que repetimos um verso de Dante e Shakespeare, somos, de algum modo, aquele instante em que Shakespeare ou Dante criaram esse verso. Enfim, a imortalidade está na memória dos outros e na obra que deixamos. Que importa que essa obra seja esquecida? (BORGES, 1996, p. 19).



Assinatura no livro de posse
 
Senhores Acadêmicos,

 
Peço-lhes mais um pouco de paciência, pois tenho certeza que no texto desse modesto discurso não me comportei como o agregado José Dias, personagem machadiano no Dom Casmurro, que amava os superlativos: “Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases” (ASSIS, 1992, v. 1, p. 812). Nem acho que incorri, tampouco, em falta que motivou a censura do mestre Machado de Assis: “Nada mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias brevíssimas”.
 
Portanto, aproveito esta oportunidade para lhes dizer que eu me sinto sobejamente recompensado pela fortuna por ter sido aceito nesta CASA com a complacência dos 27 votos que obtive dos senhores, sem que fosse registrado dentre os 31 votos válidos nenhum voto confessadamente em contrário. Fato este que se me eleva e muito me honra, no entanto é emblemático, pois aumenta o peso da minha responsabilidade para com esta Academia e para com os senhores.
 
Confesso também a minha incontida alegria por ser conduzido ao interior deste recinto por três personalidades de reconhecido valor intelectual. Dois velhos amigos: Dorian Gray e Vicente Serejo; e ainda Nilson Patriota, de quem me tornei mais próximo e aprendi a admirar nos últimos quatro anos.
Por ser o momento propício para as confissões, eu quero ainda no decurso deste ritual quase litúrgico realçar, com orgulho indisfarçável, o fato de ser saudado em nome da CASA pelo meu amigo Manoel Onofre Jr.

Elder Eronildes, eu, Enélio Petrovich, Dorian Gray, Camilo Barreto e Manoel Onofre Jr.
Manoel tem o seguro e a garantia de quase 40 anos de convívio. Na Praça Kennedy, onde nos conhecemos, e que ficou conhecida como a praça das cocadas pelos seus contumazes freqüentadores, instaurou-se um raro ambiente de clima intelectual instigador; no qual a literatura, a música, a poesia, o cinema, sem faltar o tempero da política, eram temas exaustivamente discutidos, e davam asas à imaginação para vôos de longo curso em busca da terra do sonho distante.
 
Nas cocadas, onde Manoel era regente, com um belíssimo livro de contos já publicado, se não chegamos a nos constituir de modo coeso e afinado em grupo que pudesse ser denominado de geração; de lá saíram ou passaram poetas, cronistas, ficcionistas, ensaístas, juristas, políticos, entre outros, que ao seu modo, e nos limites da província, asseguraram “Esta glória que fica, eleva, honra e consola” (ASSIS, 1992, v. 3, p. 206).
 
Para o meu amigo Manoel Onofre Jr., que não denomino de irmão porque amigo nós somos livres para escolher, ficam os meus agradecimentos por ter aceitado a incumbência de me fazer à saudação nesta CASA. E, com o sentimento do dever cumprido, fecho este discurso com as palavras do poeta Alfred de Vigny: “... Uma vida atingida é um sonho de adolescente realizado na vida madura” (BORGES, 1994, p. 120).


 Casal: Cláudia e Alberto da Cunha Melo, eu, Socorro (esposa) e Lucila Nogueira

 
Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, v. 1, 8ª impressão, 1992.
__________. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, v. 1, 8ª impressão, 1992.
__________. Crisálidas. Versos a Corina (Fragmento de III), verso 13. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, v. 3, 8ª impressão, 1992.
BORGES, Jorge Luís. Livro dos sonhos. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 5ª edição, 1994.
__________. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 3ª edição, 1996.
CABRAL, João Batista. Discurso proferido na Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 26.04.2002. Natal: Jornal “O Galo”, ano XIV, n. 5, p. 6, maio, 2002.
DRUMMOND, Carlos. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, (poema “Confidência do itabirano”, versos 15 e 16), 1975.
MANN, Thomas. Tônio Kroeger – A morte em Veneza. São Paulo: Abril Cultural, 1ª edição, 1971.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Edições Sociais, Textos, v. 3, 1977.
MELO, Veríssimo. Patronos e acadêmicos – patronos. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, v. 1, 1972.
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Texto de certo modo corrigido do discurso proferido quando da posse na cadeira 31, da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras; publicado na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, n. 34 – vol. 46, julho/2005, Natal-RN.

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