segunda-feira, 29 de setembro de 2008

ARTIGO - O ESTADO EM MARX, NO LIVRO I DE "O CAPITAL" - Pedro Vicente Costa Sobrinho





Rosdolski[1] ao analisar a estrutura de O Capital, comparando os vários planos que Marx no decorrer dos anos de sua pesquisa e elaboração lhe foi dando, sugere que os livros IV, V e VAI, que constavam do plano primitivo, não foram abandonados nem assimilados à estrutura definitiva da obra, mas reservados para uma possível continuação que lhe daria o autor.
O livro IV do plano primitivo de O Capital estaria dedicado ao Estado. Nele, com certeza, Marx desenvolveria uma teoria orgânica sobre o Estado, com base em sua concepção de Estado já externada, explícita ou implicitamente, em várias obras que antecederam a O Capital, no âmbito da discussão teórica ou da análise de conjuntura.
Os pressupostos básicos que fundamentam a concepção marxista sobre o Estado podem assim ser enunciados:

a) O Estado não resulta da livre associação dos indivíduos, mas origina-se da divisão da sociedade em classes e dos antagonismos e conflitos inconciliáveis daí decorrentes;
b) Os fundamentos do Estado não se explicam por si mesmos; suas raízes assentam nas relações materiais de existência;
c) O Estado expressa, em sua essência, a dominação de uma classe social sobre outra classe;]
d) O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa [2].

Em O Capital, ao analisar a base econômica da sociedade capitalista, como afirmou Gruppi[3], Marx fornece a teoria fundamental a partir da qual se pode construir a teoria marxista sobre o Estado. À medida que estuda, analisa e expõe as relações internas e as leis que movem o modo capitalista de produção, Marx faz inúmeras reflexões sobre o Estado. No presente trabalho buscamos acompanhar essas reflexões, propondo-nos a expô-las de forma mais ou menos sistemática, sem nenhuma pretensão de originalidade, mas tendo como motivo central uma aproximação maior com o texto de O Capital.

Fundamentos básicos da dominação na sociedade capitalista

Os fundamentos básicos ou as bases da dominação no modo de produção capitalista nos são revelados por Marx ao explicar a relação social em que se constituiu o capital. Esse enigma revelado nos remeteu ao processo de acumulação originária, no qual a entrada em cena da personagem capital, segundo Marx, não podia ser explicada pela anedota de que “em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda” [4] . A relação em que se constitui o capital é determinada pelo encontro de tipos diferenciados de possuidores de mercadorias, ambos livres, autônomos e independentes, dispostos a estabelecerem relações de troca dos seus produtos. A diferenciação básica entre esses possuidores de mercadorias configura-se pelo fato de que um deles situa-se na relação enquanto possuidor dos meios de produção e subsistência, e o outro, seu parceiro na relação, apenas dispõe da mercadoria força-de-trabalho, isto é, encontra-se separado das condições de trabalho.
Essa relação social entre homens livres no processo de circulação já dispõe face a face indivíduos que se diferenciam no que diz respeito às suas relações com os meios de produção. Os que se situam na relação enquanto proprietários dos meios de produção são identificados como capitalistas e detentores das condições de realização do trabalho; os que se situam na relação enquanto não-proprietários são identificados como trabalhadores assalariados e detentores única e exclusivamente de sua força-de-trabalho.
No nível da observação imediata pode-se já atribuir a essa relação um certo conteúdo de desigualdade, e até mesmo observar nessa relação de desigualdade que um dos parceiros, devido à sua condição de proprietário das condições de trabalho, poderia exercer ou estabelecer relação de dominação sobre o outro parceiro, situado, na relação, na condição de não-proprietário, e que, em decorrência da desigualdade no processo de troca, seria compelido a entrar na relação na condição de dependente e subalterno.
No entanto, essa relação que se estabeleceu entre indivíduos formalmente iguais, mas que já denotava certa desigualdade de condições no mecanismo competitivo inerente às regras do jogo na sociedade capitalista, não se esgota enquanto uma relação desigual, mas fundamentalmente se constitui num ato de exploração. Diz Marx: “Desloquemos-nos da ilha luminosa de Robinson à sombria Idade Média européia. Em vez do homem independente, encontramos todos dependentes servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as condições sociais da produção material quanto as esferas da vida estruturadas sobre ela. Mas, justamente porque relações de dependência constituem a base social dada, os trabalhos e produtos portanto, não precisam adquirir forma fantástica, diferente de sua realidade. Eles entram na engrenagem social como serviços e pagamentos in natura. A forma natural do trabalho, sua particularidade e, não como na base da produção de mercadorias, a sua generalidade, é aqui sua forma diretamente social. A corvéia mede-se pelo tempo tanto quanto o trabalho que produz mercadorias, mas cada servo sabe que é certa quantidade de sua força-de-trabalho que ele despende no serviço do seu senhor. O dízimo, a ser pago ao cura, é mais caro que a bênção do cura”[5] .
O ato de exploração, como conteúdo básico da relação de desigualdade entre os parceiros, ambos possuidores de mercadorias, encontra-se recoberto, oculto, não transparente, apresentando-se na esfera da circulação como relação igual de troca de produtos, ou seja, salário - meios de subsistência - por força-de-trabalho (direito de uso da força de trabalho). Entre muros, no interior do processo de produção, diz Marx, “o antigo possuidor do dinheiro marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor da força-de-trabalho como seu trabalhador; um, cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o curtume”[6]. A apropriação do mais-trabalho, a extração da mais-valia, a exploração do trabalhador pelo capitalista esconde-se a sete chaves. Esse ato de exploração como condição necessária para existência do modo capitalista de produção compreende uma relação de natureza conflitiva. Embora essa relação conflitiva não seja percebida ou reconhecida de imediato pelos sujeitos sociais nela envolvidos, ela coloca potencialmente face a face interesses diferenciados, contraditórios, antagônicos e inconciliáveis, que inevitavelmente irão se tornar manifestos sob a forma de conflitos e lutas de classes; classes estas que se constituem e se articulam de modo diferente na base econômica da sociedade.
Como vimos, as relações de produção no modo capitalista de produção organizam e estabelecem a dominação de classe a partir da base econômica - “a hegemonia nasce nas fábricas” [7]· A lógica interna da produção e reprodução do capital cria as condições de subordinação do trabalhador. Diz Marx: “Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. A organização do processo capitalista plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilha adequada às necessidades da valorização do capital, e a muda coerção das condições econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador” [8].
Dispostas as condições intrínsecas inerentes ao processo de produção capitalista, as suas leis naturais que criam e recriam as relações de dominação, todavia não fica excluído o emprego da violência extra-econômica. Diz Marx: “A burguesia precisa e emprega a força do Estado para regular o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração da mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência”[9] .
O Estado enquanto componente político da dominação, detentor do poder de coação (polícia, funcionários, tribunais, direito, entre outros) passou a exercer papel fundamental no processo de acumulação capitalista, cumprindo assim uma das funções que lhe são reservadas no modo capitalista de produção.

O Estado: função de acumulação

A burguesia nascente durante séculos travou uma luta sem tréguas contra as limitações e entraves impostos pela estreiteza do mundo feudal. A economia natural, a produção de subsistência precisava ser subvertida pela economia de mercado. A tributação e a pilhagem exercidas pelos senhores feudais urgiam ser contidas. O culto do amor ao trabalho precisava invadir corações e mentes. Os laços de dependência que aprisionavam o homem ao feudo tiveram que ser rompidos. Os privilégios corporativos tiveram que ceder lugar ao livre comércio. O Estado absolutista, centralizando o poder de decisão nas mãos do monarca, surgiu e consolidou-se sob os auspícios da burguesia nascente. “Os laços feudais, estabelecidos no Estado Feudal segundo o modelo do sagrado, são substituídos por laços propriamente políticos. O poder central, cujo caráter público dissocia do domínio do privado, aparece liberto dos limites extra-políticos, religiosos e morais, e exerce-se de maneira absoluta sobre um conjunto nacional popular: é a derrocada dos obstáculos que os estados medievais constituíram para o poder central”[10] .
O Estado absolutista correspondeu historicamente, enquanto organização do poder político numa sociedade em declínio, a um momento de transição, de passagem de um modo de produção a outra forma de organização social da produção. O poder de Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade foi utilizada para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista.
As políticas de Estado que cumpriram função de acumulação no processo histórico de constituição do modo capitalista de produção foram estudadas e expostas por Marx, fundamentalmente, no capítulo 24 de O Capital. As formas de participação do Estado no processo de acumulação capitalista podem assim ser enunciadas:
a) envolvimento e vinculação decisiva do Estado na Empresa Colonial;
b) o sistema de dívida pública. Diz Marx: “A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária”. “[ ... ] A dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio, com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia” [11];
c) o moderno sistema tributário. Diz Marx: “O regime fiscal moderno, cujo eixo é constituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários (portanto encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão automática. A supertributação não é um incidente, porém mais um princípio”. “[...] O grande patriota Witt o celebrou por isso em suas máximas, como o melhor sistema para manter o trabalhador assalariado submisso, frugal, diligente e [...] sobrecarregado de trabalho” [12];
d) o sistema protecionista. Diz Marx: “O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de encurtar violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno” [13];
e) a crise e o conflito direto entre o Estado e a Igreja Católica, culminando com a expropriação dos bens da Igreja. Sendo a Igreja Católica, à época, uma das bases mais sólidas do antigo regime na Inglaterra, a expropriação dos seus bens, que Marx chamou de roubo dos bens da Igreja, não só enriqueceu alguns, mas fundamentalmente transformou camponeses em proletários;
f) o roubo dos domínios do Estado. Diz Marx: “Os capitalistas burgueses favoreceram a operação visando, entre outras coisas, transformar a base fundiária em puro artigo de comércio, expandir a área da grande exploração agrícola, multiplicar sua oferta de proletários livres como os pássaros” [14];
g) a ação do Estado através do Parlamento, uma das instituições estatais, por meio das leis para o cercamento das terras comunais, liberando com isso massas de camponeses para engrossar o exército proletário;
h) a utilização do aparelho repressivo do Estado, seu aparato militar na expulsão de camponeses durante o processo denominado clareamento das terras;
i) a integração compulsiva dos expropriados no mercado de trabalho, por meio da ação violenta do Estado através da sanguinária legislação contra a vagabundagem;
j) a intervenção do Estado no mercado de trabalho, regulando a jornada, rebaixando salários e até proibindo a emigração de força de trabalho qualificada. O Estado cumprindo função de acumulação coagiu através da legislação os trabalhadores a aceitar as regras impostas pelos donos do capital. Diz Marx: “Custou séculos para que o trabalhador livre, como resultado do modo de produção capitalista desenvolvido, consentisse voluntariamente, isto é, socialmente coagido, em vender todo o seu tempo ativo de sua vida, até sua própria capacidade de trabalho, pelo preço dos seus meios de subsistência habituais e seu direito à progenitura por um prato de lentilhas”[15]. O Estado vai agir no sentido de regular o mercado de trabalho, não somente impondo uma jornada de trabalho que favorecia ao capitalista, mas também salários compatíveis com o seu insaciável apetite por mais-valia.
O papel do Estado absolutista - sendo o rei, como diz Marx, ele próprio um resultado do desenvolvimento do capitalismo ou do Estado burguês moderno - cumprindo função de acumulação no modo capitalista de produção está nitidamente evidenciado em inúmeras reflexões de Marx no primeiro livro de O Capital. Estas reflexões traçam um quadro meridianamente claro da condição de classe do Estado, da utilização dos seus aparelhos para assegurar as condições de produção e reprodução das relações capitalistas de produção, isto é, essencialmente as relações de exploração do trabalhador assalariado pelo capitalista.

O Estado e as Classes Sociais

Se o Estado absolutista definiu no processo de desenvolvimento histórico a desvinculação das esferas do privado e do público, passando o monarca a representar o interesse geral que se sobrepunha aos interesses privados, ainda mais particularmente sobre o poder difuso imperante na sociedade feudal; por sua vez; o Estado burguês consolidou esta desvinculação, assumindo o papel de regulador impessoal, árbitro da conduta dos sujeitos sociais. Essa impessoalidade do Estado, a sua condição de fiel zelador do interesse público, definiu, no terreno do direito, que todos são iguais perante a Lei. A igualdade jurídica dos cidadãos relegou, na ordem burguesa, ao plano secundário as desigualdades econômicas e sociais que foram gestadas no seu interior como condição necessária para a reprodução das relações de produção capitalistas.
A separação entre o privado e o público implicou também na renúncia, por parte da classe dominante, do uso e utilização privada dos meios de coação. Os meios de coação social - aparatos burocráticos e policial-militar, tribunais, direito, etc. - são transferidos para a alçada do Estado, que passou a ter o monopólio da violência. Coube ao Estado a responsabilidade de garantir e zelar pela ordem pública, estando para isso devidamente municiado dos instrumentos necessários. A ordem burguesa definiu-se, em sua essência, pela manutenção das condições de exploração do trabalhador. O Estado burguês também estabeleceu limites precisos no que diz respeito ao chamado interesse nacional. O interesse nacional da burguesia ocultou os reais interesses da classe dominante, tornando difusa a intervenção do Estado que passou a agir em nome de todos; em nome do interesse coletivo e não na condição de capitalista coletivo por excelência.
O Estado capitalista como comitê de administração dos negócios da classe dominante não se definiu por uma vinculação direta, uniforme e exclusiva com relação à classe dominante. A análise da relação Estado/classe implica em mediações que fogem, enquanto estudo, dos limites e âmbito deste trabalho. No entanto, uma das razões para que esta relação não se dê de modo reflexo pode ser encontrada no interior da composição da classe dominante. De modo claro e evidente, nas reflexões de Marx a classe dominante não aparece como um bloco uniforme, mas encerra no seu interior relações contraditórias. Essas contradições decorrem do fato da classe dominante constituir-se de frações mais ou menos diferenciadas, com interesses da mesma forma diferenciados, que buscam de modo individualizado ou enquanto grupos apropriarem-se da mais-valia gerada. O Estado naturalmente reflete essas relações contraditórias; portanto, a luta pelo controle do poder do Estado mobiliza as diversas frações de classe que procuram alçarem-se à condição de fração hegemônica no centro do poder.
Por outro lado, o Estado capitalista para garantir os interesses de classe em geral, assegurando as próprias condições de reprodução do modo de produção capitalista e das classes que o constituem, exerce o controle contra certos e determinados interesses privados que possam vir a colocar em risco a sua existência enquanto sistema. Diz Marx: “O réglement organique dos principados danubianos foi uma expressão positiva da avidez por mais-trabalho, a qual cada palavra legaliza; as Leis Fabris inglesas são uma expressão negativa da mesma avidez. Essas Leis refreiam o impulso do capital por sucção desmesurada da força-de-trabalho, por meio da limitação coercitiva da jornada de trabalho pelo Estado que capitalistas e Landlords dominam. Abstraindo um movimento dos trabalhadores que cresce cada dia mais ameaçadoramente, a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que levou à aplicação do guano aos campos ingleses. A mesma rapacidade, a qual em um caso esgotou a terra, em outra afetou pela raiz a força vital da nação” [16].
O Estado de classe, de proprietários de terras e capitalistas, impôs às classes dominantes uma legislação que de certo modo contrariava os seus interesses privados. A intervenção do Estado nas relações de trabalho para estabelecer novas condições para o contrato entre força-de-trabalho e capitalistas poderia levar a ser percebida como uma tomada de posição que realçasse o caráter de neutralidade e impessoalidade do Estado com relação às classes sociais; no entanto, a reflexão de Marx deixou claro que mesmo levando em conta a luta dos trabalhadores, a intervenção do Estado objetivava salvaguardar o interesse geral da classe dominante, agindo efetiva e prontamente quando as condições para reprodução das relações capitalistas se sentiam ameaçadas. Nesse caso específico, a força-de-trabalho se encontrava ameaçada pela miséria e esgotamento decorrentes de uma jornada de trabalho extenuante; que, por sua vez, levou o Estado a intervir nessa situação, para assegurar a reprodução do proletariado enquanto força-de-trabalho, garantindo com isso a própria continuidade do sistema.

As contradições no seio da classe dominante e a luta dos trabalhadores

A aristocracia fundiária inglesa ocupava na estrutura do poder uma posição privilegiadíssima. O poder de Estado aparece, em várias reflexões de Marx, ao seu serviço e para os seus interesses de classe. Em determinado momento de crise de reprodução da economia capitalista inglesa grande parte da população operária foi atirada no desemprego e miséria. A emigração do excedente da força-de-trabalho apresentou-se como solução imediata para o problema. O parlamento inglês, em virtude do equilíbrio das pressões contra e favoráveis à emigração, não votou recursos que permitissem que esta acontecesse. No entanto, diz Marx: “[...] 3 anos depois estalou a peste do gado, o Parlamento rompeu descontroladamente a própria etiqueta parlamentar e votou, num piscar de olhos, milhões para indenização dos milionários senhores de terra” [17]. A participação da aristocracia fundiária na renda nacional era tão elevada que o Estado ocultava informações estatísticas quanto ao seu montante.
A aristocracia fundiária travou uma luta permanente para manter a sua condição de classe ou fração de classe hegemônica. Disputou o controle do poder de Estado com os capitalistas e, em particular, com a fração industrial da burguesia. Em sua luta pelo controle do poder de Estado, a aristocracia fundiária buscou o apoio tácito dos trabalhadores, denunciando as condições de trabalho imperantes no setor fabril. Diz Marx: “[...] a burguesia espumava de raiva contra a denúncia das condições fabris por parte dos aristocratas fundiários, em relação à afetada simpatia desses ociosos, degenerados, desalmados e frios, pelos sofrimentos do trabalhador fabril e, com seu zelo diplomático, pela legislação fabril. Um velho ditado inglês diz que quando dois bandidos se caem no pelo, algo de bom sempre acontece” [18].
A fração burguesa industrial por sua vez ao travar a luta contra os privilégios que a aristocracia desfrutava em decorrência da posição que ocupava no centro do poder, e buscando a conquista da condição de fração hegemônica apelou ao concurso dos trabalhadores, enquanto aliados de momento. O ajuste de contas com a aristocracia fundiária exigia certo sacrifício que ela, a burguesia industrial, estava disposta a assumir. Diz Marx: “[ ... ] por mais que o fabricante individual quisesse dar livre curso à sua antiga capacidade, os representantes e dirigentes políticos da classe dos fabricantes ordenavam uma atitude diferente em face dos trabalhadores. Eles tinham aberto campanha para a abolição das Leis do trigo e precisavam da ajuda dos trabalhadores para a vitória” [19].
Em que pese à ação decisiva do movimento operário pela conquista de uma legislação de proteção ao trabalhador contra os excessos da exploração capitalista, as disputas das classes ou frações da classe dominante pela conquista de posição hegemônica no aparelho de Estado criaram condições favoráveis à luta dos trabalhadores. No entanto, em determinados momentos, quando os interesses de classe eram coincidentes, as frações de classe ou classes em disputa tacitamente selavam um acordo e, mesmo não conseguindo conter o ímpeto reivindicatório do movimento operário, buscavam adiá-lo. Diz Marx: “A comissão de inquérito de 1862 propôs, igualmente, nova regulamentação da indústria de mineração, uma indústria que se diferencia de todas as outras porque nela os interesses dos proprietários fundiários e dos capitalistas industriais coincidem. A antítese entre esses dois interesses tinha favorecido a legislação fabril, a ausência dessa antítese basta para explicar o retardamento e as chicanas da legislação sobre mineração” [20].

A autonomia relativa do Estado: a legitimação

As reflexões de Marx sobre o Estado com respeito à intervenção das instituições estatais no econômico, procurando regular o mercado de trabalho, legislando quanto às condições de trabalho, e mesmo as várias indicações do comportamento de funcionários como os inspetores de fábrica, que pelos seus relatórios contrariavam certos interesses privados, deixaram implícita uma certa possível autonomia do Estado com relação às classes sociais. Estas reflexões permitiram vislumbrar o Estado não apenas enquanto aparato de coação, violência organizada da sociedade a serviço da classe dominante, mas também enquanto instituição que busca a legitimação através da obtenção do consenso e aceitação dos dominados. Para isso, a sua aparente neutralidade, a sua natureza pública implica não apenas na utilização dos aparatos coercitivos e repressivos em situações de crise, mas também no uso de mecanismos que permitam soluções consensuais.
Na Inglaterra, como registrou Marx, o acirramento das contradições de classe, em conseqüência da luta pela redução da jornada de trabalho, num determinado momento em que a guerra com a classe dos capitalistas ameaçou a paz burguesa, o Estado, alertado pelos inspetores de fábricas de que a situação estava atingindo níveis quase incontroláveis, fez sua intervenção reguladora; e assim, possibilitou, via Parlamento, a aprovação de leis que de certo modo atendiam as reivindicações imediatas dos trabalhadores. No entanto, diz Marx: “A pretensa lei das 10 horas seria, portanto, mero embuste, logro parlamentar [...]” [21], se os trabalhadores não retomassem a luta.
O Estado burguês criou mecanismos de anteparo às exigências das classes subalternas, diluindo-as e integrando-as dentro dos limites permitidos pela classe dominante. O Parlamento e os outros aparelhos burocráticos do Estado funcionam como sistema de filtragem para as reivindicações dos dominados. O conteúdo explosivo nas situações de conflito decorrente das lutas de classe é controlado através de sua regulamentação em leis. E portanto, ao transferir e circunscrever o conflito no terreno do jurídico, isto é, do direito, o seu esvaziamento é uma realidade decorrente. Diz Marx: “O que, portanto, chama a atenção nessa legislação inglesa de 1867 é, por um lado, a necessidade, imposta ao Parlamento das classes dominantes, de adotar em princípio regulamentação tão extraordinária e ampla contra os excessos da exploração capitalista; por outro lado, as meias medidas, a má vontade e malafides com que então adotou realmente essa regulamentação” [22].
O Estado burguês, ao mesmo tempo em que cumpre funções no processo de acumulação capitalista, garante as condições necessárias para a reprodução das relações de produção e utiliza o seu aparato repressivo na defesa dos interesses da classe dominante, criando também mecanismos que permitem ocultar a sua essência de Estado de classe para legitimar-se junto aos dominados. No primeiro livro de O Capital, Marx, em suas reflexões sobre o Estado, além de deixar clara a sua natureza essencial de ditadura de classe, ainda nos revelou a combinação de práticas coercitivas e violentas com outras práticas que cumprem funções de legitimação da dominação de classe, implicando na aceitação pelos dominados da realidade existente, isto é, pela obtenção do consenso dos dominados


[1] Cfr. Roman Rosdolski, Génesis y estructura de El Capital de Marx (estudios sobre los grundrisse). México, Siglo Veintiuno, 1983.
[2] Cfr. K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Alfa-Omega, S. Paulo, 1977.
[3] Cfr. L. Gruppi, Tudo Começou com Maquiavel. As Concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci, L&PM Ed., Porto Alegre, 1980.
[4] K. Marx, O Capital, livro I, tomos 1 e 2, coleção “Os Economistas”, Abril Cultural, S. Paulo, 1983-1984.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Cfr. A. Gramsci, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968.
[8] Cfr. Marx, op. cit.
[9] Idem.
[10] Cfr. N. Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, Ed. Martins Fontes, S. Paulo, 1977.
[11] Cfr. Marx, op. cit.
[12] Idem.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem.

Versão modificada de artigo publicado na Revista Novos Rumos. São Paulo (SP).

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