segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Cinema - MOLOCH DA MÍDIA: De Cidadão Kane a Rupert Murdoch - Fernando Monteiro



Não há problema: é só consultar Wikipédia, para ficar sabendo que Moloch – ou Moloque – “é, conforme os textos bíblicos, o nome do deus dos amonitas ao qual eram sacrificados recém-nascidos, jogando-os em uma fogueira. Também é o nome de um demônio da tradição cristã e cabalística. A aparência de Moloch era de corpo humano com a cabeça de boi ou leão” etc.
Se quisermos "atualizar" o enciclopedismo rasteiro deste século 21 (que é Wikipédia), basta mudar a aparência do velho Moloch: continua o “corpo humano” e a cabeça também se faz a de um homem. Ou seja, o velho Moloch poderia exibir o aspecto de um magnata da imprensa chamado Charles Foster Kane, personagem do revolucionário filme de Orson Welles, lançado em setembro de 1941, na América do então jovem diretor, gênio cooptado por Hollywood como raramente foram contratados gênios autênticos, no chamado star system dos grandes estúdios.
 E se setenta anos é muito tempo, então a cabeça de Moloch pode ser substituída pela feia cabeça do contemporaníssimo Rupert Murdoch, australiano que é o maior empresário do ramo da comunicação no planeta, atualmente às voltas com a justiça inglesa para explicar os grampos telefônicos e outros crimes que seu tipo de imprensa “marrom” – a mesma de Kane – estaria cometendo, há tempos, sem que ninguém se mexesse na Inglaterra, para investigar o conglomerado jornalistico (News Corps) de Murdoch à sério, até o escândalo bater à porta da intimidade do ex-Primeiro Ministro Gordon Brown.
Esse cheiro de rato morto no sovaco dos magnatas da imprensa não só de língua inglesa, tem – justificadamente – o batismo de um nome duplo, no cinema: Kane/Hearst. Explica-se: o filme realizado pelo rapaz de “brilhante futuro nas artes” (há sete décadas) foi, pioneiramente, para o olho do furacão do assunto da falta de escrúpulo na mídia, ao se basear, em parte, na trajetória real de William Randolph Hearst, lendário dono de cadeia americana de jornais, na primeira metade do século 20. É um homem como ele que vira o objeto do quebra-cabeça cinematográfico ao qual Welles se dedicou como se remontasse um vitral partido, revolucionando a narrativa, no cinema, ao usar linguagem de máxima potência para tratar de um “Moloch” típico.

A LENDA DE UM FILME

Welles foi um verdadeiro gênio – num século cheio de falsos gênios – e “Cidadão Kane” é a obra mais importante não só na sua filmografia como diretor (ele era também ator, mágico amador, jogador inveterado e moleque, digamos, nas horas vagas de atirar pianos nas piscinas dos hotéis, como fez no Copacabana Palace). Longa-metragem que está sempre na topo das listas dos melhores filme de todos os tempos, Citizen Kane – como muitas obras-primas – foi uma realização controversa desde seu começo na cabeça de Orson ajudado por John Houseman (segundo este primeiro colaborador importante de Welles, no teatro e no rádio). Houseman foi uma das amizades firmes do carismático moço vindo da pequena Kenosha, no Wisconsin onde George Orson Welles nasceu no dia 6 de maio de 1915. Duas décadas depois, ele chegava naquela Nova Iorque da luz no fundo do túnel da Depressão econômica, disposto a conquistar a grande cidade com alto talento e um carisma de derrubar avião.
 Para começo de conversa, Welles fez descer do céu não as aeronaves comuns, movidas a combustível vulgar e tudo o mais, porém nada menos que discos voadores pilotados por marcianos em aventura de invasão da Terra. Tratava-se da primeira grande façanha com a marca OW, na história das artes da comunicação. Nessa época, Welles produzia o “Mercury Theatre no ar”, um programa radiofônico no qual teatralizava, digamos assim, obras literárias do seu gosto, com inteira liberdade de escolha e estilo (sorte dele, que não conseguia funcionar senão assim, livre para voar)...
Às oito horas da noite de 30 de outubro de 1938, exatamente no dia das Bruxas, o “Mercury” levou ao ar uma adaptação da ficção-científica A guerra dos mundos, novela de autoria do seu quase homônimo H. G. Wells, e o fez em forma de reportagem de rua, como se os microfones estivessem nas mãos de repórteres presenciando um ataque de UFOS ao nosso planeta. O truque ficou tão real que instaurou imediato e autêntico pânico entre milhares de pessoas que pegaram o programa pela metade e pensaram que se tratava de uma invasão real. Muitos desses ouvintes fugiram das suas casas, outros sofreram forte comoção e todo mundo ficou sabendo da existência do rapaz que produzia para o rádio, fazia reportagens especiais e atuava no teatro como ator, diretor e, bem, como Orson-Welles-mesmo, pois ele era uma espécie de personagem de si próprio, tão convicto do seu gênio quanto o James Joyce de 18 anos que, barrado na portaria de um teatro aonde pretendia entrar seu pagar ingresso, simplesmente olhou de alto a abaixo para o funcionário à porta da casa de espetáculos e o informou: “Mas eu sou James Joyce!”, do alto de sua juventude mundialmente desconhecidos, naquela altura.
“Eu sou Welles!” – foi assim que “funcionou” aquela transmissão radiofônica, ouvida de costa à costa da então América do sonho ainda de pé, um lugar em que virtualmente poderia acontecer de tudo (hoje, está longe disso, ou pelo menos o sonho acabou e ela está caminhando para a decadência rápida – nas artes principalmente).
Fascinado pela idéia de ir para Hollywood, Orson conseguiu o interesse da RKO como sócia e distribuidora do que ele pretendesse levar para as telas. Foi assim que, com um orçamento razoável, o ex-garoto precoce afortunado partiu para escrever o roteiro de “Cidadão Kane” – com a ajuda não-creditada de Houseman e, depois, com a definitiva colaboração de Herman Mankiewicz (um dos melhores roteiristas à disposição, no perímetro de Los Angeles). Além de roteirista, Orson atuou frente às câmeras como protagonista principal e, acima de tudo, diretor de uma obra autoral até à medula ianque.
 
O grande estúdio que se associou ao garoto brilhante do “eu, eu e mais eu”, não se importava muito com o que ele estava fazendo lá no set. Os produtores só sabiam que era alguma coisa relacionada com a biografia de um homem poderoso, porém o deixaram trabalhar em paz (isto é, em guerra: guerra para criar uma verdadeira obra-prima).
            
POLÊMICO DESDE A ESTREIA

Citizen Kane estreou em setembro de 1941 numa América ainda livre da guerra e deslumbrada por faroestes, melodramas, comédias, musicais e histórias de gangsteres. A segunda experiência de Orson Welles no cinema – a primeira havia sido um curta-metragem, The Hearts of Age, de 1934 – apresentava aos apreciadores dos produtos da próspera indústria cinematográfica, uma espécie de mistura desses gêneros todos (excetuando musicais, claro), em sintaxe nunca antes intentada naquele país, segundo Lula destacaria. Charles Foster Kane funcionava como um herói-vilão montado no cavalo da imprensa num melodrama que começava com um enigma (a palavra “Rosebud”) para  explicar a trajetória de um influente dono de império jornalístico que pretendia moldar os acontecimentos de acordo com os seus interesses e gostos, manias, fraquezas e eventuais grandezas perdidas no meio do caminho.
 Mas Kane seria isso mesmo? Quem era ele?
Ninguém sabe – um tanto à maneira do romance O grande Gatsby (de F. Scott Fitzgerald). Ou melhor, todo mundo pensa saber – e não sabe, na verdade. Todos têm, entretanto, alguma coisa para dizer sobre Kane, porém essa “coisa” ou soa incompleto ou soa errada e, de qualquer maneira, parece apenas o fragmento de um fragmento da vida controversa e estranha de um homem que queria dominar o mundo embora não dominasse os próprios pesadelos, sonhando com “Rosebud” (o que era?), enquanto chorava dormindo e, de manhã, acordava disposto a esquecer palavras, pensamentos e obras que, dias antes, havia afirmado apoiar com entusiasmo.
Cada novo dia de Kane é um dia inventado na tumultuosa mente do criador de um conglomerado como o dos tempos de hoje, de Rupert Murdoch – só que Kane não tem a cara de Rupert (de um amanuense de óculos?). Era ele um belo homem, que falava com perfeita entonação shakespeareanea e olhava nos olhos das pessoas, talvez a fim de retirar delas tudo que tinham de bom...
 Verdade? Mentira?
Para não precisar responder à essa pergunta, o gênio de Orson Welles criou o unanimemente considerado “melhor filme da história do cinema”, contando a história que não termina e usando uma linguagem nova, auxiliado pelo extraordinário talento do diretor de fotografia Gregg Toland e pelo ritmo da montagem nas mãos de Robert Wise, futuro diretor hollywoodiano dos mais aclamados. Com ângulos de câmera inusitados (uso de plonglée e contra-plongée etc) e exploração do fundo de campo, entre outras novidades, Kane é uma obra que não envelheceu, depois de sete décadas e mais a forte influência sobre a “sétima arte”. Welles ajudou a articulá-la como mais do que essa síntese das seis outras, ao realizar um filme tão importante como “A Paixão de Joana D’Arc” (de Dreyer) e “O encouraçado Potemkim” (de Eisenstein) e outras que compõem as listas das dez maiores realizações cinematográficas produzidas até esta data. Só que Citizen Kane geralmente encabeça quase todas as listas, seja ou não seja a “biografia” de homens como W. R. Hearst.
Até morrer – vítima de um fulminante ataque cardíaco, em 10 de outubro de 1985 –, Orson jamais reconheceu que o magnata americano fosse a principal fonte inspiradora de “Cidadão Kane”. Ao se ver perseguido por Hearst, o cineasta usou de suas artes mais ou menos charlatanescamente hábeis etc, tentando se desviar da mira do Murdoch daqueles tempos, através de advogados e outros meios mais indiretos.
 Quando Welles passou aqui pelo Recife, em março de 1942 (logo após ter concluído Kane, na viagem ao Brasil que teria sido o “começo do fim da carreira em Hollywood”, nas palavras do próprio diretor), o único dos três rapazes que, naquela altura, participaram de uma “farra” na sua companhia, e que sabia perfeitamente quem era Orson, chamava-se Tomás Seixas (os outros dois foram o fotógrafo Benício Dias e o jornalista Caio de Souza Leão). O poeta Seixas foi meu amigo, e uma vez eu lhe perguntei se a já velha controvérsia em torno de Kane/Hearst havia sido abordada na rodada de uísque à beira do cais, naquele Recife nervosamente em blackout. Tomás pensou um pouco, antes de responder afirmativamente, e acrescentar:
“Ele falava de várias coisas ao mesmo tempo. Para mim, mais do que para os outros, talvez porque eu fosse o único fluente em inglês (Benício falava muito bem o francês). Um dínamo, o Welles. De repente, podia estar cantarolando a ‘Marselhesa’, por exemplo, e então parava para responder a uma pergunta feita quinze minutos atrás. No caso da minha, Orson voltou mais uma vez para mim aquela cara de belo menino gordo e respondeu: Charles Foster Kane c’est moi. Et Hearst et le diable et Dieu (Charles Foster Kane sou eu. E Hearst e o diabo e Deus).”
Precisaria dizer mais sobre moloques da mídia e “moleques” de gênio?...
Em tempo: a palavra Rosebud, o filme termina explicando como sendo apenas o nome de um trenó que Charles Foster Kane possuíra na perdida infância.



Fernando Monteiro, romancista, poeta, ensaísta, cineasta e crítico de arte; publicou, entre outros livros, O grau Graumann, A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro, A cabeça no fundo entulho, Aspades ETs etc. e T. E. Lawrence (Morte num ano de sombra).     

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