sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Memórias. Varal das Lembranças: Um certo, talvez, Panamarienko, inolvidável general Soviético - Pedro Vicente Costa Sobrinho



 Fundação Gorbachov (Moscou), suponho, que antes foi sede do Instituto de Ciências Sociais
1967. Em setembro, no começo do frio outono russo, eu cheguei a Moscou para cursar a escola de formação de quadros para o movimento comunista internacional (MCI). O Instituto de Ciências Sociais era diretamente ligado ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, e recebia alunos oriundos de todos os países do mundo onde existissem partidos políticos integrados ao MCI.   No tradicional bairro Sokolniki, em um prédio amplo e moderno, a escola estava muito bem instalada,  e contava com salas de aulas confortáveis, auditórios, biblioteca, laboratório de línguas, oficinas, sala de redação, estúdios de rádio e televisão, lojas, livraria, lanchonete, restaurante, lavanderia, instalações esportivas e clínica médica. Além disso, dispunha de mais dois prédios equipados com lanchonete e lavanderia, que serviam de alojamentos para seus alunos.  As matérias obrigatórias eram:  Iniciação a língua russa, História do Partido Comunista da URSS, Teoria e tática do MCI, Filosofia e Economia Política. O aluno ainda poderia de livre escolha  frequentar outros disciplinas que constassem da grade de ofertas da escola, desde que fosse possível formar uma turma de pelo menos dez pessoas. A grade era então muito ampla, dela constando cursos sobre modalidades esportivas, artes gráficas, rádio e televisão, línguas, e até de motorista etc., ainda assim era possível solicitar outras atividades  mesmo que estivessem  fora da grade de oferta. Isto foi precisamente o que ocorreu com o curso sobre Atividades Políticas na Clandestinidade, pedido, salvo engano, feito pelos camaradas ingleses e italianos.

A direção da escola anunciou o curso e abriu vagas limitadas,  alguns brasileiros  se inscreveram: eu, Galileu, Marcelo Cupertino, Nesi, Fausto Cupertino, Anderson Cleiton, Montenegro e ainda outros, que só me lembro pelos seus nomes de guerra. Na abertura do curso, de modo nada peculiar, quem apareceu para apresentar o professor foi  o reitor da escola, que raramente  comparecia ou presidia mesas e eventos, a não ser quando o convidado a proferir conferência fosse membro do CC do PCUS ou Secretários Gerais de Partidos Comunistas no poder ou de reconhecida importância  internacional. A presença do poderoso Gushenko, homem de prestígio e confiança do PCUS e do MCI,  deixou claro para todos nós, que estávamos diante uma personalidade notável da História da União Soviética, por isso toda essa deferência,  homenagem e tratamento especial que ora lhe foram prestados.

O reitor foi conciso e objetivo ao traçar o perfil de Panamarienko, mas o suficiente para realçar sua importância histórica e envergadura intelectual.  Diante de nós estava um homem que era uma lenda, pois  havia sido Chefe do Estado Maior da Resistência Soviética contra a ocupação nazista na Ucrânia, durante a segunda guerra; herói nacional e general do exército com várias condecorações. Depois da guerra, durante anos ele exerceu funções de destaque no Ministério de Relações Exteriores,  tendo sido responsável por importantes missões diplomáticas em países da Ásia e Europa, entre eles França, Itália, Inglaterra, Alemanha, China e Índia. Além disso, ele era fluente em várias línguas: alemão, francês, inglês, italiano, chinês e línguas eslavas; escritor e especialista em literaturas francesa e inglesa. Levava sua vida entre livros, pois era bibliófilo e colecionador, possuindo em sua casa uma das maiores bibliotecas particulares de toda Rússia.

Panamarienko era um tipo de compleição robusta, cabelos grisalhos aparados à escovinha, sem bigode,  rosto bonito apesar das rugas que revelavam sua avançada idade, aparência modesta, trato discreto, aprazível e cordial, com um discurso claro, incisivo e convincente. Suas aulas eram bastante didáticas e fartamente ilustradas com narrativas de fatos que ele presenciara, ou por histórias que a ele foram contadas por pessoas que lhe foram muito próximas.

Na primeira aula, Panamarienko discorreu sobre questões mais gerais relacionadas com a natureza das atividades clandestinas, e quanto aos atores envolvidos nessa forma de ação política Ao falar dos atores, ele disse-nos que no seu perfil não poderia faltar requisitos como conhecimento, espírito de renúncia, convicção quanto à causa que defendia e quanto aos riscos pessoais que corriam ao assumi-la. Indispensável ainda eram certa  coragem pessoal,  dedicação, descrição e  profissionalismo. Ele nos descreveu um conjunto de ações que ele considerava clandestinas dentro de um estado de exceção: sabotagem, terrorismo, organização de greves e manifestações populares,  confecção e distribuição de material de propaganda,  montagem de aparelhos para alojamento de pessoas etc. E complementou o assunto, delineando as regras essenciais de planejamento para que os objetivos da ação pudessem ser alcançados com sucesso, isto é, com reduzido riscos de fracasso e do sacrifício e perdas inúteis de vidas.

Das muitas histórias interessantes narradas por Panamarienko eu selecionei três delas, não por ser as mais originais, porém as que melhor me impressionaram e facilmente eu as guardei na memória. Contava ele que no verão de 1943, o exercito vermelho iniciara sua ofensiva para libertar a parte ocidental da Ucrânia da ocupação nazifascista, então era imprescindível intensificar as ações guerrilheiras e de sabotagem das forças de resistência que lutavam na área. O estado maior das guerrilhas decidiu executar um amplo e eficiente plano de sabotagem e, para isso, precisava recrutar voluntários que se dispusessem a participar dessa perigosa e arriscada missão. Os filiados ao Partido Comunista, núcleo mais consciente,  convicto, corajoso e audaz dos grupos de resistência, foram os primeiros a ser consultados. Cabe destacar que mais de dois terços dos filiados ao PCUS haviam se engajado no exército vermelho e nas forças guerrilheiras que combatiam os nazistas.   Inicialmente, inscreveram-se para missão quase uma centena de voluntários. Nada mal, segundo Panamarienko, pois precisavam apenas de dez homens para executar a perigosa ação de sabotagem. Depois de avaliar rigorosamente cada um dos inscritos para verificar se eram capazes para missão, eles foram reunidos e, então, o comando descreveu com detalhes a natureza da ação: sua importância para o êxito da ofensiva, dificuldades, complexidade e perigos inerentes a sua execução; e, sobretudo, quanto  aos riscos  que corriam esses homens, pois qualquer falha poderia acarretar na morte de todos ou de  pelo menos alguns deles. Após essa preleção inicial, os voluntários foram orientados a recolherem-se para pensar e decidir se estavam realmente dispostos a participar da ação. Dias depois, o comando reconvocou o pessoal, dessa feita somente apareceram metade dos inscritos. Uma nova preleção foi feita, na qual foram acrescidas mais informações e dados  sobre a ação de sabotagem, igualmente à primeira vez, foi dado um tempo para reflexão dos voluntários. Dias depois, nova chamada, apenas trinta homens compareceram. E assim por diante, até que o número de voluntários estabilizou-se em quinze, e por diversas vezes quando convocados eram esses mesmos homens que se apresentavam dispostos a executar a ação. Como o comando precisava apenas de dez homens, então ele adotou outros critérios de seleção para definir quem seriam os escolhidos. Segundo Panamarienko, pelo perfil dos cem homens que inicialmente se apresentaram todos estariam aptos para missão, pois eram capazes, corajosos e valentes, testados no dia a dia do campo de batalha, mas todos decerto portadores do instintivo sentimento de medo, por ser ele inerente à condição humana. Concluía, então, o grande general com se fora a moral de uma fábula: Não há homens sem medo, mas existem alguns que conseguem controlar seu medo.

No evangelho de Mateus, capítulo 26, versículos 31 a 35, se pode encontrar exemplo cabal de um homem que não soube controlar seu medo. Vejamos este diálogo entre Cristo e seus apóstolos.  Jesus disse aos discípulos: - Esta noite todos vocês vão fugir e me abandonar, pois as Escrituras Sagradas dizem: Matarei o pastor, e as ovelhas serão espalhadas. ...Então Pedro disse a Jesus: - Eu nunca abandonarei o senhor, mesmo que todos o abandonem. Mas Jesus lhe disse: Eu afirmo a você que isto é verdade: nesta mesma noite, antes que o galo cante, você dirá três vezes que não me conhece. E Pedro, diante do perigo, não conseguiu dominar o medo e negou repetidamente que conhecia o mestre.

As outras duas histórias serviam para ilustrar outra regra básica a ser obedecida na ação clandestina: Não devemos conversar assuntos sigilosos, importantes e até banais na frente de um estrangeiro, partindo do pressuposto de que ele não conhece a língua na qual estamos a falar. Contou-nos Panamarienko, que em 1943, quando o exército vermelho organizava a ofensiva para libertar a parte Ocidental da Ucrânia, ainda ocupada pelas tropas nazifascistas, o comando da resistência foi encarregado de planejar várias e diferentes  ações de sabotagem nos meios de transportes para evitar o abastecimento de armas, munições e soldados para os alemães na linha de combate. O grosso do abastecimento de material bélico e homens para frente de guerra era feito, sobretudo, por comboios de trens, e aos resistentes infiltrados na rede ferroviária cabia, portanto, a responsabilidade maior dessas ações. Numa dessas planejadas ações o maquinista e o foguista que conduziam a locomotiva, tiveram a tarefa de descarrilar o trem e seus vagões num trecho, de descida íngreme e acidentado de uma serra por  onde passava a estrada de ferro. Ao avistar a subida da serra, os resistentes iniciaram os preparativos para desfechar a ação. Logo então se aperceberam que do primeiro vagão saíra um oficial nazista portando sua metralhadora de mão, e sentara-se logo atrás deles. Os dois conversaram em russo e combinaram que um deles ficaria próximo do oficial e no primeiro descuido, golpearia sua cabeça com a pá de aço com a qual alimentava de carvão a fornalha. O auxiliar levantou-se e ao pegar a tal pá foi de imediato advertido pelo oficial que, sacando do coldre sua mauser,  apontou-lhes sob mira  a arma, e, então, disse-lhes em russo impecável: qualquer movimento em falso eu os mato. Contou-lhes o oficial no lento trajeto de subida da serra, antes que ação fosse desfechada,  que era filho de pais alemães nascidos na Ucrânia, e que aprendera o russo, o ucraniano e alemão como línguas maternas. Sua vinda até a cabine da locomotiva também não tinha sido casualidade, pois na gare, durante o embarque, ele ouvira em ucraniano uma conversa suspeita entre o chefe da estação e o condutor do trem. Adiante, tirou o uniforme, despediu-se deles e saltou do trem em movimento. O oficial era um resistente infiltrado no alto comando das tropas de ocupação nazista. Por pura obra do acaso a ação de sabotagem foi executada com êxito. A outra história, narrada no encontro seguinte, não teve todavia um final feliz.

Panamarienko contou- nos, que uma bela rapariga ucraniana infiltrada no alto comando das tropas de ocupação, que trabalhava como tradutora de prisioneiros presos e interrogados pelo exército alemão, namorava um oficial supostamente do corpo regular da tropa. Certa vez ela recebeu em sua casa um emissário da resistência para colher informações sobre o movimento de forças regulares alemães na área, pois os resistentes estavam organizando ação de sabotagem para conter o deslocamento de soldados, armas e munições em direção a frente de combate no oriente da Ucrânia. O tal oficial estava em seu quarto, e ela, mesmo advertida pelo visitante, alegou que o gajo não falava absolutamente nada de russo, e ele podia conversar sem nenhum receio a respeito da operação. A curta conversa foi, no entanto, logo  interrompida, pois o tal oficial rendeu os dois e os encaminhou  para Gestapo. Os dois foram fuzilados. A ação em causa não se realizou, e não houve mais baixas porque os dois foram submetidos a bestiais sessões de tortura e resistiram heroicamente,  nada confessando aos algozes. Depois da derrota dos nazistas na banda ocidental da Ucrânia, papéis recolhidos no alto comando das tropas de ocupação revelaram que o dito oficial era membro do serviço secreto e falava vários idiomas, inclusive russo e ucraniano, e fora destacado para investigar de perto a tal tradutora e resistente. Ele ainda observou que esse descuido em falar em sua língua indiscrições e coisas nada abonadoras com relação aos circunstantes de idioma diferente, é coisa usual e corriqueira; quando ele esteve no serviço diplomático muitas vezes ouvira de pessoas comentários jocosos com relação aos circunstantes, inclusive dirigidos a ele próprio.

Lembro-me ainda de dois fatos interessantes que colhi no meu rápido convívio com Panamarienko.  Ele contou que, certa vez, ao fazer  conferências sobre sua experiência de trabalho na clandestinidade, uma jovem fez-lhe essa pergunta: Como é possível transmitir mensagem pelo telefone de uma ação de sabotagem ou clandestina de qualquer natureza, com absoluta segurança de que a polícia não vai detectar? Ele calou-se e não respondeu. No encontro seguinte, ele verificou que a tal moça estava ansiosa pela resposta, ele, então, não se dispôs ainda a satisfazer sua curiosidade. No último encontro, ela insistiu e reiterou a pergunta. Ele respondeu-lhe com clareza meridiana: Para evitar que a polícia venha a tomar conhecimento, a regra é nunca usar o telefone pra esse tipo de mensagem.

Pego uma carona na narrativa de Panamarienko, para contar uma pequena história que comigo ocorreu na década de 1960. Eu havia recebido tarefa do Comitê Estadual do PCB em Pernambuco, para organizar a Conferência Municipal do partido em Jaboatão. Na última reunião que realizamos com a presença do assistente do CE, o saudoso e lendário líder comunista David Capistrano, que veio a ser morto sob brutais torturas na conhecida casa dos horrores em Petrópolis, tomou-se a decisão que o local da Conferência seria a sede da delegacia do Sindicato dos Ferroviários. Eu fiquei, então, de confirmar pro David, data, horário e confirmar o local da reunião. Lembro-me de que eu estava participando de um pleno de estudantes secundaristas ligados ao PCB, que se realizava na sede da Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, governo Miguel Arraes; era já noite, e eu resolvi usar o telefone para comunicar pro David o que ficara combinado na reunião, em Jaboatão. Do outro lado da linha, David indagou-me sobre detalhes da reunião: número de participantes, quem participaria, se os trabalhadores rurais estariam presentes, ainda sobre o local, data e hora etc. O combinado fora apenas dizer: tudo certo. Pus o telefone no gancho, confirmei o endereço de David com seu filho que estava presente no tal pleno, e de taxi me dirigi até sua casa. Ao avistar-me, Capistrano de rápido a mim se dirigiu, e pediu mil desculpas por ter quebrado uma regra básica de segurança. Mesmo em tempo de Arraes, não se poderia vacilar,  até aí eu nada sabia disso, portanto, minha reação certamente foi espontânea.

Outro fato está relacionado com a erudita abordagem que Panamarienko nos contemplou  sobre as sutilezas do trabalho diplomático. Ele comentava sobre o grande escritor e diplomata francês Marie-Henri Beyle, no mundo todo conhecido pelo nome de Stendhal, autor dos romances O vermelho e o Negro, A Cartuxa de Parma, Armance, entre outros. Ele deu informações detalhadas sobre o escritor, sua trajetória na diplomacia francesa no período de Napoleão, suas notas sigilosas, para as quais havia elaborado escrita estenográfica para seu uso particular etc. Lá pras tantas, Panamarienko falou de uma obra de Stendhal sob o título Le Rose et le Vert. Pairou no ar uma dúvida geral, será que o general não se enganou? Sem querer contestar, alguns refizeram O Vermelho e o Negro? Panamarienko respondeu-nos pacientemente que a obra que ora ele fizera referência tratava-se de Le Rose et le Vert, manuscritos encontrados no arquivo de Grenoble, que somente foram publicados ainda que precariamente em 1928, na França. Esse mesmo texto teve uma edição na Alemanha certamente em 1921/1924. O general era especialista em Stendhal, ele possuía em seu acervo particular manuscritos estenografados pelo grande escritor, adquiridos por ele, em parte, nas suas muitas viagens ao exterior em missões diplomáticas, ou recebido como presente pelos muito amigos que fez no Ministério das Relações Exteriores da URSS.

Num encontro de amigos na livraria Poti Livros eu passei por igual vexame ao mencionar tal obra, de cuja informação havia recebido no meu rápido porém instigante convívio com o notável general russo. Ainda bem que o amigo Nelson Patriota, ao consultar casualmente uma enciclopédia de literatura francesa, na Livraria Cultura, em Recife, encontrou brevíssima nota que se referia a tal obra; então, ele, me salvou do ridículo, principalmente diante do saudoso embaixador Galvão, pois em nenhuma publicação brasileira e portuguesa se encontrava registrado o tal livro. Recentemente, na Livraria Francesa, em São Paulo, eu adquiri exemplar do livro Le Rose et le Vert -  Mina de Vanghel, editado pela Flammarion, em 1998, acrescido de texto ainda inédito: Tamira Wanghen. A editora no prefácio deixa a entender que sua edição poderia ser considerada a primeira, pois as outras que foram feitas, quase um século antes, estavam incompletas.

Conhecer o grande general e intelectual russo e suas conferências foram decerto as melhores coisas que Moscou me ofereceu. Sempre eu vou guardar estas lembranças  de Panamarienko, agora materializadas em texto postado neste blog; obviamente escrito com a intenção de perenizar o que não esqueci.

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