1967. Em setembro, no começo do frio outono
russo, eu cheguei a Moscou para cursar a escola de formação de quadros para o
movimento comunista internacional (MCI). O Instituto de Ciências Sociais era
diretamente ligado ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, e
recebia alunos oriundos de todos os países do mundo onde existissem partidos
políticos integrados ao MCI. No
tradicional bairro Sokolniki, em um prédio amplo e moderno, a escola estava
muito bem instalada, e contava com salas
de aulas confortáveis, auditórios, biblioteca, laboratório de línguas,
oficinas, sala de redação, estúdios de rádio e televisão, lojas, livraria,
lanchonete, restaurante, lavanderia, instalações esportivas e clínica médica. Além disso,
dispunha de mais dois prédios equipados com lanchonete e lavanderia, que
serviam de alojamentos para seus alunos. As matérias obrigatórias eram: Iniciação a língua russa, História do Partido
Comunista da URSS, Teoria e tática do MCI, Filosofia e Economia Política. O
aluno ainda poderia de livre escolha
frequentar outros disciplinas que constassem da grade de ofertas da
escola, desde que fosse possível formar uma turma de pelo menos dez pessoas. A
grade era então muito ampla, dela constando cursos sobre modalidades esportivas,
artes gráficas, rádio e televisão, línguas, e até de motorista etc., ainda
assim era possível solicitar outras atividades
mesmo que estivessem fora da
grade de oferta. Isto foi precisamente o que ocorreu com o curso sobre Atividades
Políticas na Clandestinidade, pedido, salvo engano, feito pelos camaradas
ingleses e italianos.
A direção da escola
anunciou o curso e abriu vagas limitadas, alguns brasileiros se inscreveram: eu, Galileu, Marcelo
Cupertino, Nesi, Fausto Cupertino, Anderson Cleiton, Montenegro e ainda outros,
que só me lembro pelos seus nomes de guerra. Na abertura do curso, de modo nada
peculiar, quem apareceu para apresentar o professor foi o reitor da escola, que raramente comparecia ou presidia mesas e eventos, a não
ser quando o convidado a proferir conferência fosse membro do CC do PCUS ou
Secretários Gerais de Partidos Comunistas no poder ou de reconhecida
importância internacional. A presença do
poderoso Gushenko, homem de prestígio e confiança do PCUS e do MCI, deixou claro para todos nós, que estávamos
diante uma personalidade notável da História da União Soviética, por isso toda
essa deferência, homenagem e tratamento especial que ora lhe foram prestados.
O reitor foi conciso e objetivo ao traçar o
perfil de Panamarienko, mas o suficiente para realçar sua importância histórica
e envergadura intelectual. Diante de nós
estava um homem que era uma lenda, pois havia sido Chefe do Estado Maior da
Resistência Soviética contra a ocupação nazista na Ucrânia, durante a segunda
guerra; herói nacional e general do exército com várias condecorações. Depois
da guerra, durante anos ele exerceu funções de destaque no Ministério de
Relações Exteriores, tendo sido
responsável por importantes missões diplomáticas em países da Ásia e Europa,
entre eles França, Itália, Inglaterra, Alemanha, China e Índia. Além disso, ele
era fluente em várias línguas: alemão, francês, inglês, italiano, chinês e
línguas eslavas; escritor e especialista em literaturas francesa e inglesa.
Levava sua vida entre livros, pois era bibliófilo e colecionador, possuindo em
sua casa uma das maiores bibliotecas particulares de toda Rússia.
Panamarienko era um tipo
de compleição robusta, cabelos grisalhos aparados à escovinha, sem bigode, rosto bonito apesar das rugas que
revelavam sua avançada idade, aparência modesta, trato discreto, aprazível e
cordial, com um discurso claro, incisivo e convincente. Suas aulas eram
bastante didáticas e fartamente ilustradas com narrativas de fatos que ele
presenciara, ou por histórias que a ele foram contadas por pessoas que lhe
foram muito próximas.
Na primeira aula,
Panamarienko discorreu sobre questões mais gerais relacionadas com a natureza
das atividades clandestinas, e quanto aos atores envolvidos nessa forma de ação
política Ao falar dos atores, ele disse-nos que no seu perfil não poderia
faltar requisitos como conhecimento, espírito de renúncia, convicção quanto à
causa que defendia e quanto aos riscos pessoais que corriam ao assumi-la.
Indispensável ainda eram certa coragem
pessoal, dedicação, descrição e profissionalismo. Ele nos descreveu um
conjunto de ações que ele considerava clandestinas dentro de um estado de
exceção: sabotagem, terrorismo, organização de greves e manifestações populares, confecção e distribuição de material de
propaganda, montagem de aparelhos para
alojamento de pessoas etc. E complementou o assunto, delineando as regras
essenciais de planejamento para que os objetivos da ação pudessem ser
alcançados com sucesso, isto é, com reduzido riscos de fracasso e do sacrifício
e perdas inúteis de vidas.
Das muitas histórias
interessantes narradas por Panamarienko eu selecionei três delas, não por ser
as mais originais, porém as que melhor me impressionaram e facilmente eu as
guardei na memória. Contava ele que no verão de 1943, o exercito vermelho
iniciara sua ofensiva para libertar a parte ocidental da Ucrânia da ocupação nazifascista,
então era imprescindível intensificar as ações guerrilheiras e de sabotagem das
forças de resistência que lutavam na área. O estado maior das guerrilhas
decidiu executar um amplo e eficiente plano de sabotagem e, para isso,
precisava recrutar voluntários que se dispusessem a participar dessa perigosa e
arriscada missão. Os filiados ao Partido Comunista, núcleo mais consciente, convicto, corajoso e audaz dos grupos de
resistência, foram os primeiros a ser consultados. Cabe destacar que mais de
dois terços dos filiados ao PCUS haviam se engajado no exército vermelho e nas
forças guerrilheiras que combatiam os nazistas. Inicialmente,
inscreveram-se para missão quase uma centena de voluntários. Nada mal, segundo
Panamarienko, pois precisavam apenas de dez homens para executar a perigosa
ação de sabotagem. Depois de avaliar rigorosamente cada um dos inscritos para
verificar se eram capazes para missão, eles foram reunidos e, então, o comando
descreveu com detalhes a natureza da ação: sua importância para o êxito da
ofensiva, dificuldades, complexidade e perigos inerentes a sua execução; e,
sobretudo, quanto aos riscos que corriam esses homens, pois qualquer falha
poderia acarretar na morte de todos ou de
pelo menos alguns deles. Após essa preleção inicial, os voluntários
foram orientados a recolherem-se para pensar e decidir se estavam realmente
dispostos a participar da ação. Dias depois, o comando reconvocou o pessoal, dessa
feita somente apareceram metade dos inscritos. Uma nova preleção foi feita, na
qual foram acrescidas mais informações e dados
sobre a ação de sabotagem, igualmente à primeira vez, foi dado um tempo
para reflexão dos voluntários. Dias depois, nova chamada, apenas trinta homens
compareceram. E assim por diante, até que o número de voluntários
estabilizou-se em quinze, e por diversas vezes quando convocados eram esses
mesmos homens que se apresentavam dispostos a executar a ação. Como o comando
precisava apenas de dez homens, então ele adotou outros critérios de seleção para
definir quem seriam os escolhidos. Segundo Panamarienko, pelo perfil dos cem
homens que inicialmente se apresentaram todos estariam aptos para missão, pois
eram capazes, corajosos e valentes, testados no dia a dia do campo de batalha,
mas todos decerto portadores do instintivo sentimento de medo, por ser ele
inerente à condição humana. Concluía, então, o grande general com se fora a
moral de uma fábula: Não há homens sem
medo, mas existem alguns que conseguem controlar seu medo.
No evangelho de Mateus,
capítulo 26, versículos 31 a 35, se pode encontrar exemplo cabal de um homem
que não soube controlar seu medo. Vejamos este diálogo entre Cristo e seus
apóstolos. Jesus disse aos discípulos: - Esta noite todos vocês vão fugir e me abandonar,
pois as Escrituras Sagradas dizem: Matarei o pastor, e as ovelhas serão
espalhadas. ...Então Pedro disse a Jesus: - Eu nunca abandonarei o senhor, mesmo que todos o abandonem. Mas Jesus lhe disse: Eu afirmo a você que isto é verdade: nesta
mesma noite, antes que o galo cante, você dirá três vezes que não me conhece. E
Pedro, diante do perigo, não conseguiu dominar o medo e negou repetidamente que
conhecia o mestre.
As outras duas
histórias serviam para ilustrar outra regra básica a ser obedecida na ação
clandestina: Não devemos conversar
assuntos sigilosos, importantes e
até banais na frente de um estrangeiro, partindo do pressuposto de que ele não
conhece a língua na qual estamos a falar. Contou-nos Panamarienko, que em
1943, quando o exército vermelho organizava a ofensiva para libertar a parte
Ocidental da Ucrânia, ainda ocupada pelas tropas nazifascistas, o comando da
resistência foi encarregado de planejar várias e diferentes ações de sabotagem nos meios de transportes para
evitar o abastecimento de armas, munições e soldados para os alemães na linha
de combate. O grosso do abastecimento de material bélico e homens para frente
de guerra era feito, sobretudo, por comboios de trens, e aos resistentes infiltrados
na rede ferroviária cabia, portanto, a responsabilidade maior dessas ações.
Numa dessas planejadas ações o maquinista e o foguista que conduziam a locomotiva,
tiveram a tarefa de descarrilar o trem e seus vagões num trecho, de
descida íngreme e acidentado de uma serra por onde passava a estrada de ferro. Ao avistar a
subida da serra, os resistentes iniciaram os preparativos para desfechar a
ação. Logo então se aperceberam que do primeiro vagão saíra um oficial nazista
portando sua metralhadora de mão, e sentara-se logo atrás deles. Os dois
conversaram em russo e combinaram que um deles ficaria próximo do oficial e no
primeiro descuido, golpearia sua cabeça com a pá de aço com a qual alimentava de carvão a fornalha. O auxiliar
levantou-se e ao pegar a tal pá foi de imediato advertido pelo oficial que, sacando
do coldre sua mauser, apontou-lhes sob
mira a arma, e, então, disse-lhes em
russo impecável: qualquer movimento em falso eu os mato. Contou-lhes o oficial
no lento trajeto de subida da serra, antes que ação fosse desfechada, que era filho de pais alemães nascidos na
Ucrânia, e que aprendera o russo, o ucraniano e alemão como línguas maternas. Sua
vinda até a cabine da locomotiva também não tinha sido casualidade, pois na
gare, durante o embarque, ele ouvira em ucraniano uma conversa suspeita entre o
chefe da estação e o condutor do trem. Adiante, tirou o uniforme, despediu-se
deles e saltou do trem em movimento. O oficial era um resistente infiltrado no
alto comando das tropas de ocupação nazista. Por pura obra do acaso a ação de
sabotagem foi executada com êxito. A outra história, narrada no encontro
seguinte, não teve todavia um final feliz.
Panamarienko contou- nos, que uma bela
rapariga ucraniana infiltrada no alto comando das tropas de ocupação, que
trabalhava como tradutora de prisioneiros presos e interrogados pelo exército
alemão, namorava um oficial supostamente do corpo regular da tropa. Certa vez
ela recebeu em sua casa um emissário da resistência para colher informações
sobre o movimento de forças regulares alemães na área, pois os resistentes
estavam organizando ação de sabotagem para conter o deslocamento de soldados, armas
e munições em direção a frente de combate no oriente da Ucrânia. O tal oficial
estava em seu quarto, e ela, mesmo advertida pelo visitante, alegou que o gajo
não falava absolutamente nada de russo, e ele podia conversar sem nenhum receio
a respeito da operação. A curta conversa foi, no entanto, logo interrompida, pois o tal oficial rendeu os
dois e os encaminhou para Gestapo. Os
dois foram fuzilados. A ação em causa não se realizou, e não houve mais baixas
porque os dois foram submetidos a bestiais sessões de tortura e resistiram
heroicamente, nada confessando aos
algozes. Depois da derrota dos nazistas na banda ocidental da Ucrânia, papéis
recolhidos no alto comando das tropas de ocupação revelaram que o dito oficial
era membro do serviço secreto e falava vários idiomas, inclusive russo e
ucraniano, e fora destacado para investigar de perto a tal tradutora e
resistente. Ele ainda observou que esse descuido em falar em sua língua
indiscrições e coisas nada abonadoras com relação aos circunstantes de idioma
diferente, é coisa usual e corriqueira; quando ele esteve no serviço
diplomático muitas vezes ouvira de pessoas comentários jocosos com relação aos
circunstantes, inclusive dirigidos a ele próprio.
Lembro-me ainda de dois
fatos interessantes que colhi no meu rápido convívio com Panamarienko. Ele contou que, certa vez, ao fazer conferências sobre sua experiência de trabalho
na clandestinidade, uma jovem fez-lhe essa pergunta: Como é possível transmitir mensagem pelo telefone de uma ação de sabotagem ou clandestina de qualquer natureza,
com absoluta segurança de que a polícia não vai detectar? Ele calou-se e
não respondeu. No encontro seguinte, ele verificou que a tal moça estava
ansiosa pela resposta, ele, então, não se dispôs ainda a satisfazer sua
curiosidade. No último encontro, ela insistiu e reiterou a pergunta. Ele
respondeu-lhe com clareza meridiana: Para evitar que a polícia venha a tomar
conhecimento, a regra é nunca usar o telefone pra esse tipo de mensagem.
Pego uma carona na
narrativa de Panamarienko, para contar uma pequena história que comigo ocorreu
na década de 1960. Eu havia recebido tarefa do Comitê Estadual do PCB em
Pernambuco, para organizar a Conferência Municipal do partido em Jaboatão. Na
última reunião que realizamos com a presença do assistente do CE, o saudoso e
lendário líder comunista David Capistrano, que veio a ser morto sob brutais
torturas na conhecida casa dos horrores em Petrópolis, tomou-se a decisão que o
local da Conferência seria a sede da delegacia do Sindicato dos Ferroviários. Eu
fiquei, então, de confirmar pro David, data, horário e confirmar o local da
reunião. Lembro-me de que eu estava participando de um pleno de estudantes
secundaristas ligados ao PCB, que se realizava na sede da Secretaria Estadual
de Educação de Pernambuco, governo Miguel Arraes; era já noite, e eu resolvi
usar o telefone para comunicar pro David o que ficara combinado na reunião, em
Jaboatão. Do outro lado da linha, David indagou-me sobre detalhes da reunião: número
de participantes, quem participaria, se os trabalhadores rurais estariam
presentes, ainda sobre o local, data e hora etc. O combinado fora apenas dizer:
tudo certo. Pus o telefone no gancho, confirmei o endereço de David com seu
filho que estava presente no tal pleno, e de taxi me dirigi até sua casa. Ao
avistar-me, Capistrano de rápido a mim se dirigiu, e pediu mil desculpas por
ter quebrado uma regra básica de segurança. Mesmo em tempo de Arraes, não se
poderia vacilar, até aí eu nada sabia
disso, portanto, minha reação certamente foi espontânea.
Outro fato está
relacionado com a erudita abordagem que Panamarienko nos contemplou sobre as sutilezas do trabalho diplomático.
Ele comentava sobre o grande escritor e diplomata francês Marie-Henri Beyle, no
mundo todo conhecido pelo nome de Stendhal, autor dos romances O vermelho e o
Negro, A Cartuxa de Parma, Armance, entre outros. Ele deu informações detalhadas sobre o
escritor, sua trajetória na diplomacia francesa no período de Napoleão, suas
notas sigilosas, para as quais havia elaborado escrita estenográfica para seu
uso particular etc. Lá pras tantas, Panamarienko falou de uma obra de Stendhal
sob o título Le Rose et le Vert. Pairou no ar uma dúvida geral, será que o
general não se enganou? Sem querer contestar, alguns refizeram O Vermelho e o
Negro? Panamarienko respondeu-nos pacientemente que a obra que ora ele fizera
referência tratava-se de Le Rose et le Vert, manuscritos encontrados no arquivo
de Grenoble, que somente foram publicados ainda que precariamente em 1928, na
França. Esse mesmo texto teve uma edição na Alemanha certamente em 1921/1924. O
general era especialista em Stendhal, ele possuía em seu acervo particular
manuscritos estenografados pelo grande escritor, adquiridos por ele, em parte,
nas suas muitas viagens ao exterior em missões diplomáticas, ou recebido como
presente pelos muito amigos que fez no Ministério das Relações Exteriores da
URSS.
Num encontro de amigos
na livraria Poti Livros eu passei por igual vexame ao mencionar tal obra, de
cuja informação havia recebido no meu rápido porém instigante convívio com o
notável general russo. Ainda bem que o amigo Nelson Patriota, ao consultar
casualmente uma enciclopédia de literatura francesa, na Livraria Cultura, em
Recife, encontrou brevíssima nota que se referia a tal obra; então, ele, me
salvou do ridículo, principalmente diante do saudoso embaixador Galvão, pois em
nenhuma publicação brasileira e portuguesa se encontrava registrado o tal
livro. Recentemente, na Livraria Francesa, em São Paulo, eu adquiri exemplar do
livro Le Rose et le Vert - Mina de
Vanghel, editado pela Flammarion, em 1998, acrescido de texto ainda inédito:
Tamira Wanghen. A editora no prefácio deixa a entender que sua edição poderia
ser considerada a primeira, pois as outras que foram feitas, quase um século
antes, estavam incompletas.
Conhecer o grande general e
intelectual russo e suas conferências foram decerto as melhores coisas que Moscou me
ofereceu. Sempre eu vou guardar estas lembranças de Panamarienko, agora materializadas em
texto postado neste blog; obviamente escrito com a intenção de perenizar o que não esqueci.
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