Ribeirão, 1957. Eu
estudava na quarta séria do curso primário no Grupo Escolar Padre Américo
Novais. A escola ficava na Rua Bernardo Vieira, no Bairro Novo; bem próximo a ela
estavam a Serraria e movelaria União, que meu pai, então, gerenciava, o Cine Bairro Novo e a
Tipografia Brasil. Eu frequentei muito as oficinas da serraria por isso eu
fiquei com certa familiaridade com as máquinas: serra de fita, plaina
desempenadeira, serra circular, furadeira, tupia, coladeira, tornos de bancada,
e suas ferramentas manuais: arco de pua, serrotes, martelos, grosas, formões,
chaves de fenda entre outras. Meu pai
havia me ensinado quase todos os nomes dos apetrechos indispensáveis que
compunham a maquinaria e caixa de ferramentas indispensáveis a um profissional
marceneiro. Por mera curiosidade eu lhe perguntava vez por outra que tipo de
madeira ele estava usando em móveis que estava a confeccionar, e assim também me familiarizei com madeiras como
imbuia, pinho, cedro, sucupira, louro etc., inclusive o louro cagão pelo seu
fedor que exalava de merda. Nunca demonstrei maior interesse pela arte da
marcenaria ou carpintaria e seria inútil que meu pai tentasse me induzir a sua
aprendizagem, o que nunca veio a acontecer, pois ele não me queria operário e
sim que eu me dedicasse a estudar para que não viesse a ser mais um escravo da
bancada de madeira. A Tipografia Brasil
que ficava do outro lado da rua logo me atraiu.
No intervalo do recreio escolar eu me deslocava até o galpão da
tipografia e ficava a observar pelos janelões o trabalho dos tipógrafos com
suas máquinas impressoras, guilhotina, prensa, facão de corte, grampeador, furadeira e os cavaletes
e mesas de composição para tipos móveis; o setor de acabamento só tinha
mulheres, que intercalavam e confeccionavam blocos e talões. Dois dos meus
vizinhos e amigos eram operários gráficos, Zezinha e Miltom. Desde aí, eu
comecei a alimentar o desejo de aprender a profissão de tipógrafo. O meu pai a
isso também se opunha, pois o seu projeto com relação ao meu futuro era outro e
quanto a isso não faria nenhuma concessão. Ele alimentava a esperança de que eu
viesse a fazer um curso superior, o sonho que cultivava era ter um doutor
em nossa família.
Por mediação de Miltom
eu visitei as oficinas e pude melhor apreciar o processo de trabalho. O que
mais me atraia era o trabalho dos operários que ordenavam letrinhas para compor
o que chamavam de chapas para impressão.
Eu ficava observando como de rápido eles catavam das gavetas dos armário as letrinhas que ordenavam no componedor e depois levavam para
bolandeira para completar o texto que haviam iniciado. Era impressionante aquela
alquimia, pois dali saia o texto que aparecia impresso no papel. Vinha-me a
mente de logo os livros escolares, de literatura, ciência, revistas, jornais e
histórias de quadrinhos que lera na escola, na biblioteca de tia Neném ou
comprava nas bancas de revistas. Tudo era fruto daquela oficina de sonhos. As
artes gráficas desde então ficaram e não saíram de minha vida. Anos depois,
quando fazia o primeiro ano do curso comercial básico, eu vim a conhecer Ernani
de Araújo, gerente da Tipografia Brasil, meu professor de matemática, disciplina
na qual eu era o melhor aluno da turma. Nunca conversei com ele sobre meu sonho
de me tornar tipógrafo, até porque, nesse tempo, eu desviara o foco de interesse na direção da música. Isso
certamente por influência, competição e mesmo um pouco de inveja pelo que então estava a fazer meu querido
amigo e quase irmão Kosinski, apelido Quinho, pois ele passara a frequentar o
curso de música que era ministrado pelo maestro Miro de Oliveira, regente da Banda
de Música 11 de Setembro, que pertencia ao município. Quinho foi minha maior
referência de amizade e admiração durante a infância.
Jaboatão, 1962. Comecei me envolver com o jornal alternativo
Dia Virá, e desde então eu passei a
acompanhar Alberto Cunha Melo nas suas idas até a pequena oficina gráfica em
que o jornal era composto e impresso. A composição era feita manualmente em
tipos móveis, e a impressão do jornal era feita numa máquina impressora elétrica manual com
tintagem de platina. O nosso trabalho era revisar as provas dos textos
entregues para composição, e dias depois rever as provas de páginas inteiras
para verificar se as emendas haviam sido feitas, se os títulos postos nos
textos estavam corretos e as matérias estavam no lugar que fora definido no
esboço de diagrama entregue a gráfica. Por ser muito pequeno o espaço onde estava
instalada a tipografia, o gerente, seu Cláudio, nos entregava as provas dos
textos para revisar fora de lá. Geralmente a revisão era feita na casa de Alberto ou na maternidade
Maria Rita Barradas, nos dias em que Zé Luis se encontrava no plantão médico. O
contato com essa pequena tipografia voltou a despertar meu interesse pela arte gráfica, mas não tão
importante que me fizesse retomar a vontade inicial de aprender esse ofício.
Recife, 1963. Ao me
tornar profissional do Partido Comunista Brasileiro, quinzenalmente todas as
sextas-feiras eu me dirigia à sede do PCB, no edifício Vieira da Cunha, Rua
Floriano Peixoto, para conversar e relatar pra David Capistrano, Secretário do
Comitê Estadual e assistente do CM de Jaboatão, a respeito do trabalho que eu
havia feito para cumprir a tarefa que me havia sido dada pelo CE. A tarefa que
me destinou a direção estadual foi
reorganizar as Organizações de Base (OBs) do PCB, na cidade e principalmente no
campo, com vistas a realização da Conferência Municipal do PCB em Jaboatão. Não
era uma tarefa nada fácil, pois o companheiro Elias, responsável pela assistência as bases do
partido nas áreas rurais dos municípios de Jaboatão e Moreno, havia aderido as
Ligas Camponesas e se deslocado para o interior de Goiás para participar de
treinamento com vistas a organização da luta armada guerrilheira sob a
liderança de Francisco Julião. O pior é que Elias levara com ele todas as
informações relacionadas com o trabalho que há anos fazia para o PCB. O
trabalho que Elias desenvolvia no campo estava ligado diretamente ao CE, e,
portanto, os companheiros do partido em Jaboatão não tinham o mínimo controle
de suas atividades junto aos trabalhadores rurais. As ligações que o CE do PCB
conseguiu refazer com companheiros do campo com militância no sindicato serviu
de base para retomada das ações de reorganização das antigas bases rurais. Para
que esse trabalho lentamente fosse sendo reconstruído, eu contei com a
colaboração de Cirilo, um sitiante que
trabalhava em terras da usina Jaboatão. A sábia orientação que recebia de David
Capistrano nesses encontros semanais era fundamental, e eu procurava executar a
tarefa da melhor maneira possível.
Linotipo com operador |
A redação do jornal “A
Hora”, órgão de imprensa do PCB, funcionava no mesmo andar em que estava sediado o
Comitê Estadual. Vez por outra, David convidava-me a acompanhá-lo para que
continuássemos a conversa num velho Jipe durante o percurso da Rua Floriano
Peixoto à Praça Sérgio Loreto, onde ficava a as oficinas gráficas do jornal. Na
gráfica, geralmente David apanhava encomendas impressas para entregar à
fregueses instalados nas imediações, principalmente os que ficavam no Bairro de
Recife. Para o itinerário de entregas quase sempre eu o acompanhava, pois a
conversa muitas vezes era longa, e somente terminava quando a gente retornava
ao ponto de partida: a redação do jornal e sede do PCB. Nessas rápidas visitas, eu passei a conhecer os
operários e as máquinas que compunham e imprimiam o jornal, e fiquei sobretudo impressionado
com o funcionamento da linotipo, que de modo mágico engolia chumbo derretido numa caldeira e cuspia linhas
de texto fundidas em pequenas barrinhas do metal. Era uma máquina bonita e
milagrosa.
Ainda em 1963, eu conheci
em Jaboatão o tipografo Fernando, que trabalhava numa empresa gráfica de
Recife, salvo engano, como compositor manual, mais conhecido nas tipografias como
chapista. Fernando era tipógrafo de formação em escola: Liceu de Artes de
Recife, SENAI ou Escola Técnica Federal, por isso conhecia muito bem seu ofício;
além disso, era um bom leitor fazendo jus à tradição histórica dos
profissionais da área e, apesar de jovem, já havia trabalhado em muitas
empresas gráficas de Pernambuco. Através de meu amigo Fernando eu tomei
conhecimento de Josué de Castro, e ainda por sua insistência eu comecei a ler a
obra do grande estudioso do problema da fome no Brasil e no mundo. Inicialmente, emprestou-me seu exemplar de O livro negro da fome, comprometendo-se
a me ceder outro livro intitulado Geografia
da fome. Mesmo sendo um pobre, a minha pobreza contudo estava longe de ser
comparada com a miséria daquelas populações que Josué colocara em suas páginas.
O livro causou-me profunda impressão e revolta. Através de Fernando soube ainda
que Josué era deputado federal, e que havia proferido recentemente conferência
no Teatro Santa Isabel, dentro das atividades preparatórias para o Congresso
Internacional de Solidariedade a Cuba, pois a ilha revolucionária estava
naquele momento ameaçada de nova invasão por tropas norte-americanas. Josué,
segundo Fernando, havia cativado o público que havia lotado o Teatro Santa
Isabel, com um discurso de mais de três horas sob o tema: Cuba não está só. Fernando era um intelectual da classe operária,
um ativista político e sindical; por ele fui levado à sede do Sindicato dos
Trabalhadores nas Indústrias Gráficas de Pernambuco, que estava instalada à
época na Rua Direita, e apresentado ao seu histórico dirigente e líder Edvaldo
Ratis. Com Fernando aprendi muito sobre política e sindicato e, sobretudo,
sobre o funcionamento de uma oficina gráfica.
Como fecho dessas minhas
anotações sobre meus contatos iniciais com as artes gráficas, eu quero
registrar o papel que desempenhou o professor Pedrinho, orientador da
disciplina Caligrafia, assunto que estudei no segundo ano do curso Comercial
Básico da Escola Técnica de Comércio de Ribeirão. Durante todo um semestre,
Pedrinho, munido com três grossos cadernos de anotações, discorria a respeito
da história e evolução da escrita no ocidente.
Com ele aprendi sobre os principais suportes nos quais através do tempo
repousaram a arte da escrita: tabletes de argila, papiro, pergaminho, trapos e
modernamente o papel. Os sistemas de escrita dos povos antigos: hieroglífica,
pictográfica, cuneiforme etc., até a adoção do alfabeto. O papel dos copistas
na evolução da escrita e na divulgação das artes e ciências. A invenção dos
tipos móveis por Gutenberg e a grande revolução que causou nas comunicações.
Através de sua disciplina eu tomei conhecimento dos grandes desenhistas de
tipos e impressores: Luca Pacioli, Aldus
Manutius, Bodoni, Griffo, Robert Granjon, Nicholas Jenson, William Caslon,
Didot, entre outros.
Pedrinho era contador muito conceituado na cidade, dono
de escritório de contabilidade instalado na Praça Estácio Coimbra, Praça do Jacaré como a ela se referia o poeta Marcus Accioly, e possuidor de uma bela forma de escrita, um calígráfo. Os livros contábeis eram à época quase todos
escriturados à mão, e exigiam uma boa escritura: legível, bonita e harmoniosa, e para
os alunos que pretendiam tornarem-se profissionais de escritório ou contadores
valia a pena prestar bem atenção as suas interessantíssimas aulas. Pedrinho
sempre dava aulas todo paramentado, terno e gravata, aliás, isso parecia ser
norma da escola, pois todos os professores homens costumavam fazer o mesmo, as
mulheres por sua vez trajavam uma bata azul celeste. Pedrinho era muito exigente, vendia seu
peixe caro, suas avaliações orais e escritas eram rigorosas, por isso a turma
não o tinha em bom conceito. Anos depois, quando passei a ler sistematicamente
livros sobre artes gráficas e a escrita eu pude melhor avaliar o quanto me fora
útil os primeiros passos pelos caminhos da caligrafia.
Um comentário:
Eita grande amigo Pedro, como é bom relembrar o seu início em Jaboatão quando eu era balconista do Café Leão. Natanael Gomes
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