Luís da Câmara Cascudo |
Luís da Câmara Cascudo é reconhecido
por obras fundamentais como “A História da Alimentação no Brasil” e “Civilização e Cultura”, que exemplificam
sua minuciosa atuação como etnólogo. Ele deixou como legado uma rica prosa em
dezenas de livros, com ritmo ágil e uma intimidade divertida e doce ao falar do
cotidiano brasileiro. Mas o que poucos sabem é que o mestre Cascudo começou
como jornalista, aos 18 anos de idade, quando seu pai, o Coronel Francisco
Cascudo, fundou um jornal para que o filho escrevesse. Nunca mais abandonou tal
atividade, publicando artigos e relatos no “Diário de Pernambuco”, “Folha de S.
Paulo” e diversos outros periódicos pelo mundo afora. Para ele, o repórter
deveria ter toda liberdade ao fazer suas entrevistas, perguntando o que bem
entendesse e relatando o que ouviu de acordo com sua visão dos fatos. Quando
assumia o papel de entrevistado, por vezes chamava com humor os jornalistas de
“meliante” (ou seja, aquele que não trabalha, malandro, vadio).
Nos primeiros anos da década de 1920
do século passado, Câmara Cascudo entrevistou Raimundo Nonato Pereira, natural
de Acari, atleta, vitorioso em campeonatos de remo e natação. Durante a
Primeira Guerra Mundial, ele se encontrava na Inglaterra, estudando e
participando de campeonatos. Ao viajar no transatlântico “Amazon” - que contava
na ocasião com apenas 24 passageiros -, naufragou quando a embarcação foi
torpedeada na costa da Irlanda por um submarino alemão, em 15 de março de 1918,
afundando em 15 minutos. No final do século XIX e primeiras décadas do séc. XX,
a Grã-Bretanha era a maior potência mundial de navios de guerra, transformando,
inclusive, alguns barcos de R.M.S.P. (Royal Mail Stean Packet - ou Mala Real
Inglesa -, com serviço para a Costa Leste da América do Sul) para esse fim. O
“Amazon” foi um deles. O primeiro foi lançado ao mar em 3 de janeiro de 1882,
pegou fogo na Baía de Biscaia, causando 105 mortes. Em 1906, um novo “Amazon”
surgiu, transformado em 1911 em cruzeiro de luxo, fazendo o verão na Europa e a
rota de ouro e prata. Comportava 840 passageiros, sendo 300 de primeira classe,
70 de segunda e 500 de terceira. O submarino germânico, responsável pelo final
trágico do “Amazon”, terminou por ser bombardeado e afundado pelo
contratorpedeiro H. M. S. Moresby, que resgatou nove tripulantes alemães.
Toda essa perigosa aventura foi
narrada detalhadamente na matéria “Desventuras da Guerra”, de autoria de Luís
da Câmara Cascudo, que terminou por se perder. Quase um século depois,
resgatada por Luizinho (Luís G.M.
Bezerra), passou para as mãos de Haroldo Pinheiro Borges, sobrinho do acariense
entrevistado, que era cunhado de Chicó
Pinheiro, o “Senhor das Queimadas”, e irmão de Dona Zefinha. Haroldo transferiu
o material jornalístico precioso para a presidência da Academia
Norte-rio-grandense de Letras. Assim, publicamos a reportagem histórica na
íntegra:
DESVENTURAS
DA GUERRA
Luís da Câmara Cascudo
As desventuras da
Guerra constituem hoje o nosso principal assunto. O que publicamos é uma
interessante INTERVIEW com RAIMUNDO PEREIRA, filho do nosso amigo Cel. Joaquim
da Virgem Pereira, natural do Acari, estudante de Comércio em “DOLLAR ACADEMY”,
na Inglaterra, onde se demorou quatro anos e meio e que chegou a esta capital
sexta-feira última, via Recife, pelo trem horário da Great- Western.
Sabedores de que aquele nosso coestadano
aqui se achava apressamo-nos em visitá-lo ao domingo para que pudéssemos
publicar, ouvindo de sua boca a história da catástrofe a que, com felicidade
escapou juntamente com os seus companheiros de viagem e toda a tripulação do
paquete torpedeado. É que tivemos o intuito de dar aos nossos leitores uma
notícia circunstanciada e original do triste acontecimento já mais ou menos
conhecido através da leitura das folhas que se ocuparam do fato.
RAIMUNDO PEREIRA tem
dezenove anos de idade. É um belo tipo de homem forte, musculoso e portador de
uma educação que se vai esmerando mui pronunciadamente, a qual foi adquirida
quase que somente naquele elevado centro anglicano. Falou-nos com o seu sotaque
britânico, vibrado sem pedantismo.
Saímos de Liverpool,
direto para Pernambuco, quinta-feira, 15 de março, às 15 horas. O “AMAZON”
conduzia vinte e quatro passageiros para o Brasil, entre os quais, do Rio
Grande do Norte, eu e o Luiz Veiga Filho. Viajamos sem novidade, por uma tarde
ameníssima. A noite veio e passou-se sem que se registrasse coisa alguma de
anormal.
No dia seguinte, na
sexta-feira, íamos à altura da Irlanda, a duzentas milhas de sua costa, ao
norte. Eram 9 e 45 da manhã. Tínhamos acabado de almoçar e permanecíamos no
convés. Eu palestrava, tranquilamente, reinando entre nós todos essa alegria
que você sabe existir na convivência, a bordo. De repente, sentimos um tremendo
choque. Desenrolou-se, imediatamente, o pânico, natural nesses instantes
difíceis, mui especialmente em um naufrágio.
O jovem interlocutor
deixou escapar dos lábios um expressivo suspiro, como que se desafogando de uma
lembrança cruel, e continuou.
Oh! Meu caro, você não
avalia como foi opressiva aquela emergência se as pode descrever. O homem que o
experimenta chega a perder a luz da razão. Ouça-me, não me lembrei nem do bom
Deus.
E entre parênteses
acrescentou:
- É por isso que aquele
que o não conhece, também não possui essa luz miraculosa, é um louco, é... um
náufrago de outra espécie.
Em seguida ao choque
sobreveio uma medonha explosão. Tudo estava perdido. Começamos, nós
passageiros, a correr de um lado para outro do convés, gritando
desesperadamente, dizendo não sei o que...
- E tiveram logo a
ideia do que se tratava?
- Não. Eu lhe não
afirmei que ficamos loucos? Quanto a mim, milagrosamente, posso dizer assim,
aclamei-me um pouco e me lembrei de descer ao meu camarote, a fim de tirar de
lá meu salva-vidas. Qual não foi, avalie você, o meu susto, quanto uma vez
embaixo, tudo se tornou escuro, em virtude de se haver arrebentado, sem dúvida,
a usina elétrica do “AMAZON”.
- A aquela hora havia
luz?
- Sim, os camarotes dos
transatlânticos, os que não deitam para bombordo, são iluminados durante o dia,
por causa, não somente do frio, como também, porque, devido às conformidades do
paquete, tudo ali são trevas em plena luz solar. E mais: escute, canos se
arrebentando também, começaram a jorrar água quente por toda parte queimando-me
todo. Perdi então a esperança de encontrar o meu salva-vidas. Foi um suplicio
infernal. Aconteceu-me uma tremura e comecei a morrer. De nada mais me lembrei
outra vez. Assim mesmo, dei com uma escada que subi OU QUE ME FIZERAM SUBIR. Vi
o dia, tomei alma, esbarrei-me com os companheiros que continuavam na mesma balbúrdia,
agora à procura de escaler, fui para o meu. Neste haviam de embarcar vinte
pessoas, inclusive o respectivo comandante que segundo estava previamente
determinado quando partimos de Liverpool. Entre essas vinte pessoas
encontrava-se o Cônsul argentino em Londres, Sr. H. L. Mayer, que viajava com
destino ao seu país. Sentei-me por detrás de um marinheiro. Este, havendo
recebido uma contusão, não pode mais remar. Tomei-lhe o remo e o manejei até
que fiquei exausto.
- Radiografou o
“AMAZON” no momento do perigo?
- Sim. Estávamos
vogando a espera do socorro. De repente, avistamos, no horizonte dois pontos
negros.
Eram duas naus que a
toda pressa vinham à nossa procura. Eram sem dúvida, DESTROYERS ingleses.
- Uma vez no escaler
tiveram a ideia do ocorrido, isto é, avaliaram o que tinha acontecido?
- Sim, fora não restava
dúvida, um submarino que nos torpedeara pela popa>
- E o AMAZON?
- O AMAZON, o estávamos
vendo a uma certa distancia. A elegante nau se submergia, aos poucos. Parecia, haver
nos concedido tempo apenas para tomarmos o escaler, porque, apenas dele nos
apoderamos, dentro de poucos minutos foi ao fundo, deixando, antes de fazer na
amplidão do oceano se ouviu um formidável estrondo acompanhado de uma pesada
nuvem de fumo, de várias cores o que me representou a agonia de um gigante de
aço a borda do abismo de seu tumulo verde. Foi o belo horrível do drama.
- Estavam todos
tranquilos já?
- Que esperança! O
nosso temor foi, então, com a suspeita de que emergisse o submarino inimigo e
nos canhoneasse como é costume.
Isso, porém, não se
deu, penso, devido ao fato de haver aquele pressentido a aproximação dos
DESTROYERS que chegaram logo.
Um desses DESTROYERS
nos recolheu, enquanto o outro dava caça ao submarino. Este último DESTROYER
lançou ao mar quatro bombas “Depitle” que conseguiram o desmantelo das máquinas
de ar da perigosa arma naval.
Ao chegar o “monstro” à
tona tratou logo de desfraldar sua bandeirinha branca, pedindo paz. Ora o amigo
já viu tamanho civismo.
E então?
- o nosso DESTROYER fez
lhe fogo incontinente. A arma inimiga estava esfarelada, foi a pique tão rápido
como um raio, se assim me posso exprimir.
- Os seus tripulantes...
os alemães...
- Eram trinta e três ao
todo. Desses morreram dezessete, escapando o resto. O DESTROYER em que eu me
encontrava recolheu cinco, dentre os quais o comandante que embora não se
achasse ferido, faleceu de comoção, sendo o seu cadáver atirado ao oceano, após
a competente inspeção médica. O outro DESTROYER recolheu os onze náufragos
restantes.
- Como receberam a
bordo os náufragos do “AMAZON”?
- Com muito carinho.
Vendo-nos molhados por completo, e tiritando de frio, nos fizeram tomar banho
morno, deram-nos roupas, camas, refeição. Excelente tratamento tivemos.
Eram 6 horas da tarde.
Depois daquele triste
incidente a nós causado pela audácia da raça alemã, quando tudo voltou ao seu
estado normal, uma saudade da Pátria querida me despontou funda ao peito.
Lembrei do Brasil que longe estava e, pela Terra da Santa Cruz; o amor intenso
me reanimou as forças como a influência de um anjo benfazejo pairando diante de
meus olhos, como a me abençoar, suspenso sobre as espumas do fosforescente da
região liquida por onde a Inglaterra me conduzia a um porto seguro.
Seguiram...
Para a Irlanda.
Desembarcamos em Londonferry.
- Depois...
Pelo Carneamia fui para
New York onde desembarquei. Da Capital IANKEE vim pela Saga até ao Recife, onde
desembarquei com a ânsia de abraçar meu pai que ali me esperava.
Hoje, bem vê
conversamos juntos, longe, bem longe das coisas do Velho Mundo que ondeia na
ambição e no orgulho.
Nesse instante o nosso
jovem amigo foi chamado para o almoço, pegou-nos pelo braço e sorriu,
flegmaticamente convidou-nos:
- If you please...
- Ao que retorquimos
gostosamente: All right.
Em Natal trabalhou por
largo tempo como pai, no seu escritório comercial instalado no Bairro da
Ribeira, à rua Frei Miguelinho, ajudando-o nos seus negócios de produção e
exportação.
Adepto do remo,
RAIMUNDO foi atleta do Centro Náutico Potengi, e destaque em todas as provas em
que participou ao lado do capitão-tenente Anibal Leite Ribeiro, o maior
incentivador do remo no Rio Grande do Norte e fundador do glorioso Centro
Náutico Potengi (3/10/1915), de Solon Aranha, Antonio Duarte, Humberto Nesi,
Silvino Lamartine, Julio Meira e Sá, Edgar Homem de Siqueira, Clóvis Lamartine,
Angelo Pessoa, José Paes Barreto, José Elpídio dos Santos e Pedro Ferreira da
Silva, atletas do CNP que muito lutaram pelo remo no Estado.
Em 17 de outubro de
1920, o Rio Grande do Norte, representado pelo Centro Náutico Potengi, esteve
presente pela primeira vez ao Campeonato Brasileiro de Remo, realizado na
entrada do Botafogo, no Rio de Janeiro, com duas guarnições, sendo que naquele
dia, a guarnição da Iole a 4 remos, composta por Anibal Leite Ribeiro (Patrão),
José Paes Barreto (Voga), RAIMUNDO PEREIRA ou RAIMUNDO DAS VIRGENS como era
mais conhecido na intimidade (Sota Voga), José Elpidio dos Santos (Sota Proa) e
Pedro Ferreira da Silva (Proa), obteve o 3º lugar, ficando adiante de São Paulo
(4º), Bahia (5º) e Pará (6º). Distrito Federal e Rio Grande do Sul foram os
primeiros. A família ainda guarda algumas medalhas conquistadas em disputas
memoráveis.
RAIMUNDO PEREIRA DE
ARAÚJO, casou em Acari a 12/12/1922, com Julieta Bezerra da Nóbrega, nascida a
21/04/1898, neta do Cel. Silvino Bezerra de Araújo Galvão, inconteste Chefe
Político do Seridó e Vice-Governador do Estado, na República. Julieta com
problemas cardíacos, faleceu em Campinas(SP), em 01/07/1970, e do matrimônio
com RAIMUNDO teve os seguintes filhos: Maria de Lourdes, residente em Rio das
Ostras (RJ), casou com o Eng. Nelson Meira de Vasconcelos, funcionários da Base
Aérea de Parnamirim, já falecido; Elga e Jessy, solteiras e residentes em
Campinas (SP); Margarida, casada com o médico pediatra José Ubarana, também
residente em Campinas (SP) e Irecê, casada com o comerciante Moacir Dias de
Melo, residente em Campinas (SP). Iberê e Francisca foram as filhas que tiveram
morte prematura. Todos os filhos do casal RAIMUNDO e Julieta nasceram em
Florânia (RN).
Com o falecimento do
seu pai em 07/08/1932, RAIMUNDO foi residir em Florânia, para administrar mais
de perto a sua propriedade “SACO DE FEIJÃO”, que ainda em vida, o Cel. Joaquim da
Virgem lhe doara, como era do seu hábito presentear os seus filhos, “SACO DE
FEIJÃO” tem no agro-pecuarista Waldemar Dantas, seu proprietário.
Em Florânia, RAIMUNDO
residiu por mais de dez anos, onde granjeou a simpatia da sociedade pelo fino
trato, por sua operosidade e pela atenção maior pelos mais necessitados.
Durante o período do
Estado Novo, RAIMUNDO PEREIRA, um homem simples, trabalhador e de caráter
íntegro, foi nomeado pelo Interventor Rafael Fernandes Gurjão, para gerir os
destinos da Prefeitura de Florânia, de 19/12/1937 a 19/08/1942, substituindo o
Prefeito Clementino Araújo.
Naquele cargo, apesar
de alguns anos difíceis em que as grandes secas assolaram a região, RAIMUNDO
PEREIRA lutou desesperadamente para assistir aos flagelados, utilizando até
mesmo os recursos próprios, que já não eram muitos.
Na sua gestão promoveu
uma série de benefícios no seu Município, destacando-se: aquisição de
transportes para remoção de lixo domiciliar na povoação de São Vicente;
instalou...
Diógenes da Cunha Lima, poeta, escritor, Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.
Diógenes da Cunha Lima, poeta, escritor, Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.
2 comentários:
Excelente entrevista, bem definida e desenvolvida.
Muito boa a entrevista!
Sou neto de Raimundo e filho de uma filha dele que não foi citada:
Zuleide, casada com o piloto da aeronáutica, Blair Bittencourt.
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