Toda manifestação de cultura carece de organização. No campo
da literatura, por exemplo, as obras de referência, isto é, dicionários,
enciclopédias, antologias e, numa outra perspectiva, a história e a crítica
literárias têm seus fundamentos cognitivos no princípio organizacional. Além,
portanto, da informação colhida e dos valores estéticos e documentais
intrínsecos a tarefas desse porte, a norma geral, que advém da necessidade de
estabelecer uma ordem, impõe critérios de análise e de interpretação
indispensáveis ao fluxo natural da tradição literária.
Conhecer a tradição, sempre nos ensina T. S. Eliot, é
inadiável. Revê-la, repensá-la, ressignificá-la, a partir de uma visão crítica
e histórica também reexaminável, parece-me atividade substancial às novas
gerações, pois o fluxo da criação não para, e tanto as obras literárias como
seus autores pressupõem uma constante relação com as diversas temporalidades.
Presente, passado e futuro como que convivem na simultaneidade dos
empreendimentos poéticos, na expectativa pregnante do diálogo e na
funcionalidade dos contextos estéticos.
Agrada-me, assim, o esforço de pesquisa do jovem potiguar
Thiago Gonzaga, atento aos processos literários e aos percursos institucionais
que enformam o substrato da literatura no Rio Grande do Norte. Sem se apegar ao
espírito de negação tão comum no intercâmbio ou na interação entre novas e
velhas gerações, algo que, segundo Ortega Y Gasset, parece irresolúvel na
cristalização dos movimentos artísticos, Thiago procura a saída acadêmica, o
dispositivo exploratório da pesquisa, tentando organizar – esta é a palavra
chave – a dinâmica das vozes literárias que alicerçam os caminhos da tradição,
e não importa se a tradição do mesmo ou se a tradição da ruptura, como diria
Octavio Paz, na geografia simbólica e cultural do Rio Grande do Norte.
Com Chumpo Pinheiro e
Fátima Lopes, publicou, no ano passado, pelo Sebo Vermelho, Nei Leandro de Castro: 50 anos de atividades
literárias 1961-2011, espécie de fortuna crítica acerca do poeta e
escritor, num gesto que faz confluir o sentido científico, que naturalmente
preside obras como esta, à convocação admirativa e ao gesto de reconhecimento
de um autor forte em âmbito local.
Literatura etc. Conversas com Manoel Onofre Jr. (Natal, 2013) é seu
trabalho mais recente. Segue efetivamente a lógica científica da organização e
da contextualização, na medida em que, dando visibilidade ao escritor Manoel
Onofre Jr., em função sobretudo da sua experiência intelectual e do seu habitus pensante e produtivo, recorta-se
topografia mais ampla, a abrigar aspectos relevantes da vida literária na terra
de Câmara Cascudo.
Se o escritor em foco, tanto o escritor de ficção quanto,
principalmente, o pesquisador da história se fazem presentes no jogo das
perguntas e respostas que estruturam as várias entrevistas, também vem, à tona,
indiretamente, o fio condutor de um sistema cultural e literário que integra a
personalidade criadora de Manoel Onofre Jr., ao lado de uma plêiade a que
acorrem nomes como Zila Mamede, Luís Carlos Guimarães, Sanderson Negreiros,
Dorian Grey Caldas, Diógenes da Cunha Lima, Moacyr Cirne, Nei Leandro de
Castro, Vicente Serejo, Jarbas Martins, Myriam Coeli, Diva Cunha, Tarcísio
Gurgel, Paulo de Tarso Correia de Melo e tantos outros, no arco flexível e
difuso de uma mesma geração.
Thiago Gonzaga, reunindo essas entrevistas, sinaliza para o
fato de que um escritor não pode ser compreendido isoladamente. O seu papel, a
sua biografia, as suas obras, suas relações no meio literário, suas leituras,
afinidades, escolhas, inclinações, tudo atende, em certo sentido, às exigências
não raro imperceptíveis da tradição e do sistema literários.
O título (“Literatura etc.”) abre como que o leque das
irradiações temáticas e significativas. Do eixo central que é a palavra
literária do escritor, sobretudo de seu ofício, ora como ficcionista, ora como
memorialista, ora como cronista, ora como historiador, ora como antologista, os
diálogos, em suas múltiplas fases e com seus diferentes interlocutores, vão
descortinando uma paisagem cultural que contempla as descobertas da infância, o
veio telúrico que vem de Martins, a vivência ensolarada em Mossoró, o
jornalismo em Natal, a magistratura, enfim, as coordenadas literárias do
leitor, sobretudo da singularidade do leitor, e do escritor de obra firme e
consolidada.
Produzir conhecimento e sobremaneira
investigar criticamente a realidade mais próxima, eis uma das funções do saber
universitário. Sábios os cursos que criam as condições necessárias para a
formalização de objetos de estudo pouco explorados. A UFRN, com sua pós em “literatura e cultura potiguar”
não desconhece isso. Se o interesse é a expressão literária, é fundamental estudar
os de casa, e, quem sabe, situar os de casa, e a própria casa, no espectro mais
heterogêneo da produção brasileira e universal. Por isto, creio que Thiago
Gonzaga começa-a. Diferente de tantos de sua geração, começa a trilhar o rumo
certo.
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