Foram muitas as revistas com histórias ilustradas em quadrinhos, fotodesenhos, fotonovelas e fotofilmes que eu li durante minha infância e adolescência; e, por ser improvável qualquer tentativa de avaliar pela memória a qualidade e o volume de todo esse material, resta-me, contudo, enumerar algumas dessas revistas pelo peso e importância que eu acho que tiveram na minha iniciação à leitura e mesmo ainda com relação ao seu papel na minha formação enquanto leitor. Dentro do vasto mundo de revistas ilustradas que já circulavam no meu tempo de infância e adolescência eu destaco Grande Hotel, Capricho, Ilusão, Sétimo Céu e mais uma ou duas de fotofilmes; a essas, eu acrescento as histórias em quadrinhos que foram de minha predileção: Tarzan, Fantasma, Capitão Atlas, Super Homem, Capitão Marvel, Jerônimo: o herói do sertão, O Pato Donald, Os sobrinhos do capitão, Tio Patinhas, Pafúncio e Marocas, Popeye, Mandrake, Batman, Mickey Mouse, Pinduca, Luluzinha, Bolinha e todos os Gibis de faroeste que me caíram às mãos.
Lembro muito bem que comecei a folhear as primeiras revistas em quadrinhos com cinco anos incompletos no consultório médico do SESI, Serviço Social da Indústria; sua sede social e serviço médico ficavam na Rua Barão de Lucena, principal via pública à época da cidade de Jaboatão. Nesse mesmo prédio onde funcionou o SESI, anos depois foi instalado o Cine Guarany, do vereador e bicheiro Odilon Ribeiro da Luz. Faço um pequeno desvio de curso para relatar fato que considero digno de registro: nesse cinema só vi um filme: fita pornográfica de origem francesa que foi projetada em única sessão depois das vinte e duas horas, e nessa época certamente eu só tinha quinze anos. Voltando ao consultório do SESI, onde Dina, minha mãe adotiva, levava-me para consultas médicas para tratar de resfriados, gripes, coqueluche, catapora, caxumba, diarréias e muitas outras mazelas que contraí ao longo de minha primeira infância, inclusive uma asma alérgica que me sufocava e quase me mata por falta de ar. Durante o longo tempo de espera pra ser atendido eu traquinava e também quase sempre folheava devagar o Sesinho, revista então editada pela instituição. É improvável que eu entendesse as histórias, e disso eu nada mais me lembro, todavia, ao Sesinho eu atribuo o meu despertar para o hábito da leitura, pois certamente dele veio o estímulo inicial para que eu viesse a enfrentar o desafio de aprender o quanto antes a ler.
Além do Sesinho, os dois coadjuvantes essenciais que me impulsionaram ao desafio de trilhar o sinuoso curso em busca da leitura foram certamente a inveja e o espírito natural de competição com meus amigos mais velhos. Eles também eram crianças e iam para frente do cinema antes das matinês para o troca-troca de Gibis que já haviam lido; diante deles eu ficava quase sempre calado, pois ainda não sabia ler e, portanto, também não ousava comentar nada a respeito das histórias narradas nos quadrinhos. Algumas vezes eu fui flagrado em mentira pra fazer pose de entendido, o que era então de parte deles motivo de chacota. A leitura supostamente fácil dos quadrinhos e a curiosidade despertada por suas histórias levaram-me quase de modo compulsivo a lê-los; e, assim sendo, aos seis anos ainda não feitos eu me encontrei ainda com justificada dificuldade lendo as palavras que se encontravam contidas nos balões de certa história, da qual não me lembro o título nem a revista onde estava. Agora era tão somente desarnar com a coisa, e para isso contei com o auxílio da Tia Neném, que sempre reclamava de minha inquietude dizendo-me que eu parecia que tinha “cotoco”, e com bons mujicões fazia-me sentar no banco da mesa de jantar para realizar as tarefas de leitura. No ano seguinte eu fui matriculado bem pertinho de casa numa escola da Igreja Batista; já estava praticamente alfabetizado, e se não fosse o diabo da tabuada certamente teria sido o primeiro aluno da classe. A partir dessa primeira conquista no mundo das letras eu procurei de rápido dar outros passos e me colocar diante do desafio de ler e entender as legendas dos filmes que assistia nas matinês e soirées do Cine Teatro Samuel Campelo; as falas contidas nos balões e os textos sob a forma de letreiros que narravam situações do enredo nas fotonovelas publicadas na revista Grande Hotel.
Grande Hotel e outras revistas de fotonovelas e fotofilmes
Da revista Grande Hotel, que começou a ser publicada no Brasil na segunda metade dos anos de 1940 pela Editora Vecchi, a tia Neném tinha quase durante mais de dez anos todos os exemplares que vieram às bancas. A revista era mensal, salvo engano, e meu primo e padrinho João Costa, filho mais velho da tia Neném, comprava sempre o número de cada mês para presentear sua mãe; depois de sua morte, tia Neném continuou com o mesmo ritual de compra e assim fez uma boa coleção de Grande Hotel, cujos exemplares que possuía foram por ela toscamente encadernados e tiveram sobrevida até quando então lhe veio a morte nos anos de 1980. A revista tinha formato de tablóide e não sei precisar o número de páginas, porém me lembro que sua capa era ilustrada por um desenho geralmente de um casal enamorado, na contracapa vinha quase sempre foto de um ator ou atriz de cinema, pelo menos disso suponho nos exemplares que eu li; cada número da revista trazia duas histórias, com a mesma forma narrativa dos quadrinhos só que ilustradas nos seus primeiros números com fotodesenhos, depois me parecem que com fotos de atores; uma ou duas histórias com texto corrido sem ilustrações; resenha de um filme a ser lançado no circuito de cinemas e mais material publicitário. As histórias ilustradas que li eram apresentadas em capítulos seguindo o modelo do romance de folhetins e demorava muito para ser concluída; de algumas ainda lembro-me bem do essencial dos seus enredos, principalmente daquelas que a tia Neném mais gostava e que orientado por sua escolha eu fiz mais de uma leitura. Recuso-me aqui de fazer qualquer comentário sobre a tal natureza ideológica do enredo das fotonovelas e de emitir qualquer juízo crítico sobre sua forma e conteúdo, por ter sido assunto que eu vim a entender muitos anos depois; já em tempo de minha maturidade intelectual, portanto coisa de gente grande.
Certamente com muitas lacunas por ser naturalmente matéria de memória, eu ainda me lembro de algumas novelas lidas em Grande Hotel: Feitiço de amor, A doce missão e Anjos na tempestade, narradas com texto e fotodesenhos, e O primeiro amor não morre, já com fotos e atores. Mas, decerto eu só não me esqueci do enredo das duas primeiras novelas em que o tempo e cenário eram da segunda guerra mundial. Em A doce missão o assunto central do enredo era o velho, repetido e imprescindível caso de amor entre dois jovens que enfrentavam sérias dificuldades para realizar seus planos de casarem-se em virtude da guerra. O clímax do enredo é atingido quando o personagem central da trama foi escolhido para realizar difícil missão em solo inimigo, e que, apesar do êxito, ele fica cego. Ao ser resgatado pelos seus compatriotas ele fez-se acompanhar por uma cabritinha desgarrada que o salvou ao conduzi-lo até o local planejado para o resgate. Mas, mais além vai o papel desempenhado pela tal cabrita, pois ao entrar indevidamente no quarto em que a personagem central estava hospitalizada, ela, ao acariciar seu rosto com a língua, enganchou um dos seus chifres na válvula de controle do balão de oxigênio; então, o vazamento do gás, diretamente nos olhos do enfermo, provocou o imprevisível milagre da cura. O final feliz é um ‘menage a trois’: juntos a cabritinha e os dois amantes. O enredo de Anjos na Tempestade era muito mais complexo: com idas e vindas sinuosas, suspense, cenas de combate, momentos com situações perigosas, angustiantes e dramáticas. O tempo e o cenário eram também da segunda guerra mundial e a história se desenvolvia em dois lugares: Inglaterra e na França ocupada pelos alemães, tendo como personagens centrais o garoto Doadí e, salvo erro, sua tia Cíntia. No começo do enredo os dois personagens são encontrados na França quando da invasão e conseqüente ocupação do país pelas tropas nazistas; ao tentar fugir num barco que transportava refugiados para Inglaterra através do canal da Mancha, Cíntia perdeu-se então de Doadi, e a criança fica abandonada numa praia francesa; antes que venha ocorrer a separação e ainda no interior do barco Doadi viu o espião alemão Hans colocar no bolso do cassaco de sua tia um envelope contendo documento que fatalmente viria a comprometer Cíntia num caso de espionagem contra os aliados, cuja sentença final seria sem apelo a condenação à morte. Ao descer do barco em Londres quase enlouquecida pela perda do sobrinho, Cíntia foi revistada pela polícia inglesa e então o tal documento foi encontrado e ela de imediato conduzida para prisão. Não me lembro se ela era de nacionalidade francesa ou inglesa, mas seu noivo e também seu cunhado certamente eram ingleses. Todo esforço do seu noivo e do seu cunhado (pai de Doadi), oficiais de alta patente do exército inglês, para inocentar Cíntia seria inútil se não fosse encontrado o garoto Doadi, que ficara perdido a vagar sem rumo pelo território francês ocupado pelos alemães. Toda essa epopéia é conduzida para um final feliz. Doadi depois de muitas aventuras e desventuras foi finalmente encontrado pelos aliados e reconduzido são e salvo com sua cabritinha Bibiana de volta para Inglaterra. Logo ao chegar a Londres ele foi submetido a uma prova muito difícil para uma criança de sua idade, mas esse era certamente o último recurso a ser tentado para que sua tia Cíntia viesse a ser inocentada e salva da inevitável sentença de morte. Dessa enrascada Doadi também se saiu muito bem, pois identificou o tal documento, e com isso contribuiu para que todos fossem felizes.
Lembro-me ainda que li quase todas as resenhas de filmes publicadas na revista Grande Hotel. De alguns filmes os seus títulos eu consegui até hoje guardar na memória: Spartacus, com o ator Massimo Girotti, direção de Carlo Lizani; Carmem, com Glenn Ford e Rita Hayworth, direção de Charles Vidor; Tarde demais para esquecer ou Melodia Imortal, com Tyrone Power e Kim Novak, direção de George Sidney; e Cimarron, com Glenn Ford e Maria Schell, direção de Anthony Mann. Dois deles eu assisti no Cine Teatro Samuel Campelo; Spartacus nunca eu consegui ver; quanto a Cimarron, graças ao milagre do DVD, recentemente eu tive a ele acesso. Por sua vez, eu nunca me dei ao trabalho de ler as histórias com texto corrido e sem ilustração, pois era mais cômodo sentar-me à mesa, juntamente com meu avô, às vezes também com meu pai e o primo Cláudio, e varar noites de sábado ouvindo em voz alta a leitura que a tia Neném fazia dessas novelas pra nós. Enquanto criança e adolescente eu nunca me preocupei em saber a origem da Revista Grande Hotel, mas uma coisa certamente até hoje me causa perplexidade, e isso porque ainda não encontrei motivo que justificasse o amor de certos autores de fotonovelas pelas cabritinhas, ao ponto de fazê-las contracenar com seus personagens centrais, por coincidência logo nas duas histórias que eu mais apreciava. Já adulto e graduado eu tomei conhecimento de que as fotonovelas foram produzidas na Itália desde os anos de 1943, e que eram portadoras de um forte componente ideológico; fato que nada tem a ver com minhas lembranças e muito menos poderia vir a motivar qualquer revisão quanto ao papel que certamente atribuo a essas revistas na minha formação de leitor.
Páginas internas de Grande Hotel com imágens da novela Feitiço de Amor |
Das fotonovelas veiculadas nas revistas Capricho e Ilusão editadas pela Abril, quase nada me lembro. Mas, com muito esforço, ainda retenho de memória pedaços de uma fotonovela de título salvo engano “Nalú ou Naluh”, nome do seu personagem feminino principal, cuja trama tem como cenário certo país da África. Nalú, jovem missionária católica, fora servir como enfermeira voluntária num hospital e lá apaixonou-se perdidamente por um colega médico. O romance no entanto não dá certo, pois me parece que o moço era casado e retorna ao seu pais de origem ao saber que sua esposa estava grávida, lá permanecendo por algum tempo. Nalú, por sua vez, não suporta a dor da separação e praticamente conduz-se como uma suicida ao deixar de cuidar minimamente de sua saúde, e ao entregar-se de corpo e alma dia e noite ao extenuante trabalho de atendimento aos muitos pacientes do hospital. O retorno do médico à África foi tarde demais, pois a amada já havia falecido. Nessa história não houve final feliz, e eu não pude controlar o choro e quase me dissolvi em lágrimas. Nunca comprei as revistas Capricho e Ilusão; todas que eu vim a ler, já morando em Ribeirão, foram emprestadas por Luzinete, jovem operária que trabalhava na fábrica de fiação e tecelagem da cidade; dois ou três anos depois que eu a conheci vim a perder essa amiga e fiel leitora de fotonovelas, pois ela veio a falecer ainda muito moça vítima de uma paralisia intestinal. Hoje, no entanto, eu suponho que ela veio a morrer por falta de cuidados médicos, numa cidade em que só havia três médicos e nenhum hospital. Quanto à revista Sétimo Céu, da Editora Bloch, que anos depois eu vim a saber que era genuinamente brasileira, ao ler seus primeiros números eu logo me desinteressei, pois achei que os enredos e ilustrações das fotonovelas eram muito fracos. É de bom de proveito também realçar que todas as versões das histórias que foram aqui contadas são minhas e certamente podem não ter nada a ver com o texto original.
Revista Cine-Romance |
As revistas de fotofilmes com certeza não eram vendidas regularmente na revistaria de seu Amaro em Ribeirão, e com certeza os exemplares que eu possuía foram comprados em Bancas de Revistas localizadas em Recife; dessas revistas eu me recordo bem de algumas: “Fotoscope", “Cinemascope”, Cine-Aventuras, Super-Aventuras, Cine-Romance, Cine Revelação, Hoollywood, Foto-Aventuras, Aí Mocinho, Hoolywood Cine-Ilustrado etc. que veiculavam geralmente filmes de sucesso junto ao público, em quadrinhos ou quadrinizados sob a forma de fotofilmes. É improvável que eu viesse a me lembrar de todos filmes que vi nessas revistas, mas posso declinar certamente de alguns títulos que na época mais me causaram impressão: Sangue de bárbaros, com John Wayne e Susan Hayward; Átila, o rei dos Hunos, com Anthony Quine e Sophia Loren; Ulisses, com Kirk Douglas e Silvana Mangano; Juventude Transviada, com James Dean e Natalie Wood, e por último, alguns com Brigitte Bardot. Além das referidas revistas de fotofilmes eu creio que havia então outras que adaptavam roteiros de filmes aos desenhos quadrinizados, pois me lembro de haver lido numa delas "Helena de Troia", filme histórico com bom apelo de público, estrelado pela belíssima italiana Rossana Podestá; quanto aos diretores dos filmes, não me recordo se os seus nomes constavam nos créditos de tais revistas.
Lamento até hoje de haver perdido todas essas revistas e também alguns livros que foram as minhas primeiras leituras. Ao golpe militar de 1964 eu atribuo a responsabilidade por essa perda inestimável, pois fui forçado a saír de Pernambuco e migrar para Natal. Esse exílio involuntário demorou até a anistia de 1979, mas nesse tempo eu já estava no Acre, na banda mais ocidental do país há milhares de léguas de Jaboatão. Voltei no entanto com mais vagar à casa dos meus pais trinta anos depois e não encontrei nada que razoavelmente se pudesse aproveitar. Parte da história de minha infância havia ido pra lata de lixo durante a caduquice e após a morte de tia Neném.
Um comentário:
Olá Pedro,
Vivenciei tudo isso... Devorei todas essas leituras e a revista Sesinho foi parte importante da minha aprendizagem, com o Vovô Felício, João Bolinha, Monteiro Lobato e o Sítio do Pica pau, o gato Champanhota e tudo o mais de maravilhoso que ela continha. Acrescento ainda as estampas Eucalol...
Parabéns pela postagem.
Um abraço.
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