1982, precisamente no começo do ano, fui procurado por estudantes universitários que cursavam Pedagogia, e que também foram meus alunos em Cultura Brasileira, disciplina que eu havia ministrado para eles na universidade do Acre. Estavam buscando um orientador, pró-forma, para um projeto de pesquisa ou de simples registro e catalogação de manifestações da cultura popular ou mesmo ditas folclóricas no Acre. O convite mais que de repente foi aceito. No entanto, resolvi-me ir mais longe, não só propondo e ainda até induzindo, a partir da idéia inicial, que se procurasse encontrar algum registro de culinária típica acreana.
A busca por um certo tipo de culinária característica da região vinha sendo preocupação antiga – força de expressão – pois datava de apenas três anos, desde que cheguei ao Acre. Motivo da preocupação quanto ao assunto aflorou de uma realidade mais que concreta, pois então notara a quase absoluta ausência nas casas especializadas: bares e restaurantes locais e, com maior agravante, no dia-a-dia de nossas casas, de qualquer prato que se pudesse denominar de made in Acre. Caberia, portanto, a indagação se existiria de fato uma culinária que pudesse ser chamada de tipicamente acriana?
Cabe ainda realçar o fato de que à época estava eu na direção do SENAC, onde já há algum tempo vinha desenvolvendo trabalho na área de hospitalidade, mais precisamente em cursos de formação e qualificação de pessoal para os ramos de restaurante e hotelaria, e pude observar que nesses cursos os alunos não aprendiam nada de culinária acreana, e mesmo da Amazônia. A pesquisa dos alunos de pedagogia poderia então vir a suprir essa lacuna, pois se existisse a tal culinária, a partir dos resultados da pesquisa, poderia constar do programa de cursos de culinária as receitas para confecção de pratos achados e ditos tipicamente regionais.
Partíamos da hipótese de que os imigrantes nacionais e estrangeiros: nordestinos, árabes, judeus, portugueses, entre outros, que se deslocaram em direção à Amazônia Ocidental, trouxeram as suas práticas alimentares, e nesse encontro de culturas se mesclaram e também assimilaram a culinária das populações indígenas pré-existentes e dos povos da fronteira, resultando daí alguma coisa que se poderia denominar de nova ou típica cozinha acreana.
A culinária então daí resultante fora fundamental e talvez mesmo fator determinante para a resistência e para a preservação dos valores culturais, afirmando e consolidando a presença do nordestino na banda mais ocidental do Brasil; confirmando, portanto, o que vaticinou o antropólogo, sociólogo, e também gastrônomo, mestre Gilberto Freyre, no histórico e imortalizado manifesto tradicionalista, regionalista e, ao seu modo, modernista do Recife: “... e uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”.
Aos fortes e persuasivos motivos e interesses alie-se a minha natural e particular gula, pois há muito desejara degustar as iguarias até provavelmente exóticas do Acre.
Reunidas as condições mínimas necessárias para a pesquisa, saiu-se em busca dessa culinária, e o que é mais surpreendente foi encontrada. No entanto, deixe-se claro, e mesmo enfatize-se o fato de não se tratar de uma cozinha acreana pura, exclusiva, original, avessa ou isenta de influências. Isto seria ingenuidade, e revelaria um desconhecimento quase total da história do Acre, de suas raízes e formação. No entanto, para surpresa nossa, conseguimos como resultado a reunião de mais de duzentas receitas: doçaria, farinhas, molhos, bebidas e pratos acabados e completos, numa demonstração clara e cristalina de sua existência: matou-se a cobra e mostrou-se o pau, como diz o adágio popular.
Cabe então ler o resultado do trabalho, e pôr em prática as receitas achadas, pois algumas provei e até aprovei, apesar de ter sido um pequeno ensaio. As conseqüências ficam por conta de cada um que nelas se aventurar.
Nota: texto publicado no livro “Outras circunstâncias”. João Pessoa (PB): Editora Universitária da UFPB, 2002, p. 59 /62.
8 comentários:
Olá,
a Abbas Filmes, produtora do Rio de Janeiro, está realizando uma pesquisa para o projeto de um filme documentário sobre culinária de rua.
Intitulado “Na Boca do Povo” o filme abordará o universo cultural e histórico que envolve os alimentos produzidos e comercializados nos espaços públicos urbanos, sejam em feiras-livres, barracas, carrocinhas ou por vendedores ambulantes.
Estamos em busca de “personagens” que produzam e comercializem comidas típicas nas ruas das cidades.
Se você conhece alguém que faça essa atividade, seja criativo, comunicador e tenha prazer em fazer seu trabalho, envie-nos um e-mail com a história dessa pessoa e algumas fotos ou envie-nos contatos e indicações de quem possa ajudar nessa pesquisa.
Sua indicação pode participar de nosso filme.
Aguardo contato e despeço com cordiais abraços.
Luiza Lessa
Estágio em Produção e Pesquisa
Abbas Filmes – (21) 2232 6716
nabocadopovo1@gmail.com
Caro Pedro,
Li seu artigo Uma Culinária Revisitada no site da Biblioteca da Floresta. Achei muito interessante. Tenho especial interesse na culinária e gastronomia do norte do país e por esse motivo estive agora em Belém. Gostaria de saber se o trabalho a que você se refere no texto foi publicado e se há como acessá-lo (na internet) ou adquirí-lo (por meio de alguma editora). Aguardo seu retorno.
Obrigada.
Reiko
Meu amigo, seu blog está de altíssima qualidade. Adorei este artigo sobre culinária, uma praia que habito há anos. Tenho um pretenso blog, que fala de cotidiano, moda, culinária e atualidade: mosaicoderosealmeida.blogspot.com
Meu amigo, seu blog está de altíssima qualidade. Adorei este artigo sobre culinária, uma praia que habito há anos. Tenho um pretenso blog, que fala de cotidiano, moda, culinária e atualidade: mosaicoderosealmeida.blogspot.com
Rose, minha amiga, você sempre foi ligada na arte da boa cosinha. Esse artigo foi decorrente da pesquisa que orientei com alunos da bolsa arte. A coisa foi impressa em mimeógrafo com poucas cópias. Convido-a a ler outros artigos postados no meu blog, sobretudo os que versam sobre cinema e culinária.
Luiza Lessa,
Lamentavelmente por não ter o hábito de rever minhas postagens, somente hoje eu lí o teu comentário. Existe um meio de me redimir? Estou com teu e-mail, e você tem o meu no perfil, comunique-se outra vez comigo. Desculpe e obrigado.
Reiko,
Estou muito atrasado na resposta, é que eu não tenho hábito de rever minhas postagens. Mas te informo que o material da pesquisa que ensejou o artigo foi impresso em mimeógrafo com reduzido número de cópias. Estou agora concluindo a revisão crítica de todo material, pois a editora Paim se propôs a editar a coisa em livro. Desculpe e obrigado.
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