Peter Greenaway faz parte da nova safra de cineastas ingleses que, nos últimos anos, vem sendo responsável pelo ressurgimento do cinema no Reino Unido. Sua filmografia, ainda pouco extensa, revela um estilo narrativo marcado pelo não convencional; um artesão competente na composição de cenas; boa direção de atores, com um discurso anárquico, estonteante e demolidor. Além disso, longe dele qualquer concessão de ordem estética que torne mais fácil a leitura de sua obra.
No filme “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante”, Greenaway realiza uma das mais felizes combinações do cinema e a gastronomia. Cabe realçar também o fato deste filme ter sido escrito e dirigido por ele, tratando-se portanto de objeto artístico resultante da simbiose autor/realizador no cinema, na melhor tradição chapliniana, teoricamente revigorada pelos cineastas e críticos da “nouvelle vague”, nos anos 50 e 60.
Na seqüência inicial, cortinas abrem-se e num cenário ao ar livre desenrola-se uma cena de incomum e requintada violência. O Sr. Albert Spica (o ladrão), interpretado por Richard Boringer, espanca um seu desafeto e empurra-lhe goela adentro pratos sofisticados, sob o coro de ameaças e impropérios. Os pratos são “Cuisses de Grenouilles à la Parisienne” (coxas de rãs à parisiense) e “Poulet à la Reine Marie”(frango a rainha Maria) etc.
Cozinha do Le Hollandais |
A seguir a câmera dirige-se para o interior da cozinha do restaurante “Le Hollandais”, de propriedade de Albert Spica (o ladrão), que ao lado de sua mulher, Georgina (Helen Mirren), lentamente atravessam a cozinha acompanhados por um séquito de marginais. As imagens da cozinha mostradas pela câmera são deslumbrantes. Os alimentos (carnes, aves, peixes, verduras, etc.) são revelados com todo vigor e exuberância de cores e formas, tendo como fundo musical sons e ruídos dos cortes e panelas fumegantes. A preparação dos molhos mereceu enquadramento especial. Nesse ambiente simples e esfumaçado, artistas e artesãos se esmeram na magia da transformação dos materiais elaborados pela natureza em obras de arte, cujo destino poderá ser a satisfação do prazer gustativo ou apenas servir para saciar a fome.
A passagem da cozinha à sala é apoteótica. A câmera desloca-se e um fundo musical anuncia a mudança de uma forma de ordenamento à outra. Na sala o ar solene, a decoração artificial, o alinhamento simétrico dos móveis e a cobertura macia das mesas, a disposição rígida de pratos e talheres, o brilho e a transparência dos cristais. Ainda no semblante dos convivas, a ansiedade da fome ou até o sossego pela graça alcançada.
A harmonia dos ambientes (sala e cozinha) no “Le Hollandais” é mérito de Richard (Michael Gambon), chef de cuisine e artista maior da arte culinária, cuja competência, sobriedade e força de caráter o fazem controlar, em certas circunstâncias, o gênio belicoso do seu patrão bandido.
O Ladrão (Sr. Spica) e o Cozinheiro (Richard) |
O enredo tem como fio condutor a inusitada paixão de Georgina por um cliente do restaurante, o livreiro e gourmet Michael (Alan Howard). Os dois, com a cumplicidade apaixonada do cozinheiro, transformam a cozinha de “Le Hollandais” em local para os seus encontros amorosos. Tudo se faz às barbas do brutamontes Spica, que pouco a pouco passa a desconfiar das constantes e inexplicáveis fugas de sua mulher à toalete.
O amante, o cozinheiro, a esposa e o ladrão (ao lado) |
As cenas de amor entre e sobre os alimentos frescos ou defumados são sensuais, picantes e temerárias. O clima de suspense, ao estilo hitchcockiano, pelo temor e risco do flagrante, cerca todos os encontros dos amantes, sem, no entanto, inibir o calor da paixão. A fuga dos amantes entre alimentos apodrecidos alucina e nauseia.
A vingança urdida pelo traído (Sr. Spica) é brutal e insólita. Após localizar o refúgio dos amantes, um velho depósito de livros, assassina o amante por asfixia e ingestão de folhas de papel sacadas das páginas de livros. A vingança de Georgina, por sua vez, não é menos estranha. Convence o cozinheiro a usar em toda plenitude o requinte de sua arte, assando o amante por inteiro e, num ritual de antropofagia e morte, serve seu corpo ao marido.
O ladrão trichando o assado do corpo do amante |
O filme de Greenaway é contundente ao demonstrar a impossibilidade do homem não cultivado alçar-se à condição de apreciador. As bravatas à mesa pronunciadas pelo Sr. Spica, o ladrão, indicam o seu poder de compra do objeto de arte, nada mais que isso. Apenas o homem de espírito sabe comer, disse Brillat-Savarin. Os diálogos entre Richard (o cozinheiro) e o patrão são esclarecedores. As críticas ao mau gosto e à pomposidade do Sr. Spica são expressas de modo direto ou veladas. O cozinheiro inibe a gula do patrão sobre um prato novo, sob o pretexto de que o Sr. Spica em matéria de cozinha é um tradicionalista.
A gastronomia no filme é sobejamente realçada. Com sua natureza trágica e irrecorrível, o dilema da morte é contemplado no ato de comer quando Richard afirma: “... comer coisas pretas é como se comesse a morte. Trufas são pretas”.
Trufas Negras |
O enredo é desenvolvido em nove dias. Inicia-se na quinta-feira, com o primeiro encontro dos amantes na toalete. O desfecho é na sexta, com o ritual de antropofagia e morte. As partes da trama são separadas pelo cardápio do “Le Hollandais”. Nele aparecem as mais diversas iguarias. Entre elas: Canard à l’orange (Pato com laranja); Le coq au vin (Galo ao vinho); Salade de langoustine (salada de lagostim); Terrine de caneton (patê de pato); Sauce hollandaise (Molho holandês); Abacate ao vinagrete e camarões; Peru frio com limão e manjericão; Terrine e filé de vitela, etc. Cabe esclarecer que Mme. Mireille de Richter, no seu livro “A simplicidade e o requinte da culinária francesa”, nem sempre denomina terrine de patê. Robert Freson registra no seu livro e álbum fotográfico “O sabor da França”, terrine com uma certa especificidade. O “Larousse gastronomique” observa, por sua vez, a distinção entre patê e terrine, no entanto, registra que o termo patê freqüentemente denomina de modo errado as duas iguarias.
Cuisses de Grenouilles ( Coxas de Rãs) |
O filme de Peter Greenaway pelo seu encanto, plasticidade e originalidade de sua narrativa, sem dúvida, constitui-se em obra de referência na história do cinema. Especialmente quando se tratar da relação cinema e gastronomia. Um filme digno de figurar no melhor dos cardápios.
Canard à L'orange (Pato com Laranja) |
Dos inúmeros pratos nominados no filme selecionamos o clássico da cozinha francesa “Le coq au vin”, também traduzido por “frango ao molho de vinho”. Das mais diversas maneiras e modos de preparar escolhemos a receita indicada por Mme. De Richter, por sua simplicidade e alegada longevidade (século XVI). Mãos à obra, pois fiz e degustei.
Le Coq au Vin |
LE COQ AU VIN (Frango ao Molho de Vinho)
Ingredientes: 1 frango (mais ou menos 1 e meio quilograma); 100g de toucinho defumado magro; 100g de manteiga, 3 colheres de sopa de óleo de milho; 12 cebolinhas (encontradas em conserva em qualquer supermercado); 2 dentes de alho; amarrado de cheiros (Bouquet garni): 1 folha de louro, 1 raminho de tomilho ou manjerona mais salsa: as ervas podem ser utilizadas secas, para isso faça um embrulhinho com gaze; 100g de champignons; ½ copo de conhaque; 1 garrafa de vinho tinto; 1 colher de farinha de trigo; sal e pimenta a gosto.
Modo de preparar: Cortar o frango cru em pedaços pelas juntas. Dividir o peito em dois. Numa caçarola, refogar o toucinho cortado em dados com um pouco de manteiga e óleo. Juntar as cebolinhas inteiras, note bem, cebolinhas. Deixar dourar e colocar junto a elas os pedaços de frango. Refogar até dourar todos os ingredientes. Juntar sal e pimenta. Cuidado na dosagem. O alho deve ser picado, isto é, não esmagado, mas picadinho. Pôr também o amarrado de cheiros e os champignons lavados e cortados se forem grandes. Tampar a caçarola, deixar em fogo forte para que tudo doure por igual. Retirar a tampa.
Derramar o conhaque (cuidado... não é alcatrão, dreher ou castelo, se nacional um Domec ou Macieira; melhor um brandy francês ou espanhol de boa reputação) e flambar. Isto é, esquentar o conhaque na panela e fazê-lo em chamas. Juntar o vinho tinto e seco de boa qualidade. Lembrete: a qualidade do vinho é de suma importância para o êxito do prato. Deixar cozer até ficar pronto. Esta parte é questão de sensibilidade, a receita não ensina a cozinhar. Desengordurar, se necessário. Engrossar o molho com uma colher de farinha misturada à manteiga (o chamado beurre manié), ou seja: numa tigela misturar bem a manteiga com a farinha, devendo ficar como uma pomada. Introduzir aos poucos essa mistura ao molho. Deixar cozer mais uns minutos e servir bem quente. Mme. Richter aconselha como acompanhamento batatas à doré, no entanto, ao meu gosto, um arroz branco soltinho vai a contento.
Um bom vinho tinto deve obrigatoriamente acompanhar o prato. Se possível, o mesmo do cozimento diz a madame. Sou contrário: vinho como ingrediente pode até ser inferior, de acompanhamento o melhor para ser tomado. Seja feliz, se acertar. (Receita extraída do livro de Mirelle de Richter, “A simplicidade e o requinte da culinária francesa”, Porto Alegre, Editora Sulina, 1988).
Um comentário:
Bom retorno ao Acre, caro Pedro Vicente! Gostei do formato do blog e da mistura de cinema com culinária, mesmo essa sofisticada e carregada de ingredientes alguns impossíveis de encontrar nas prateleiras acreanas - tanto quanto os filmes nas locadoras. Esperemos que esta sua contribuição sirva para reeditar os antigos cineclubes e as salutares trocas de experiências e sensações entre os assistentes.
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