O prazer da comida não pode ser simplesmente reduzido às necessidades de se alimentar para assegurar ao corpo os ingredientes nutritivos essenciais a sua cotidiana manutenção. O comer implica sobretudo numa dimensão estética, ou, talvez, por excelência, numa criação artística que reúne e ordena todos os sentidos: visão, audição, tato, olfato e gosto; reveladora de uma catarse única jamais alcançada por qualquer das formas de expressão da arte, porque síntese.
O comer não pode ser entendido, ao meu modo, sem o beber. São corpo e alma, indissociáveis, sem que nesse conjunto a alma exerça qualquer superioridade, mesmo a mais sutil. Atribua-se ao binômio comer/beber o divino postulado da santíssima trindade.
A minha preocupação com a arte do bem comer é relativamente recente. Fruto dos últimos trinta anos de convívio com a boa mesa, portanto tardia. Apesar de apreciar as iguarias da culinária nordestina, o prazer revelava-se primitivo e o estômago falava mais alto, estimulado muitas vezes por uma gula pantagruélica
A arte de comer é decerto modo uma longa e lenta aprendizagem; não se diferenciando do necessário aprendizado culto, indispensável ao apreciador de outras formas de expressão artística. Nesse aspecto realce-se o que está contido num aforismo sábio: “o homem é o único animal que bebe sem ter sede”; e amplie-se, também come sem ter fome. Brillat-Savarin, por sua vez, no seu livro A fisiologia do Gosto, assim se expressou: “Diga-me o que comes, e eu te direi quem és”. De minha parte, nos últimos trinta anos passei, lentamente, da condição de comedor incauto para a classe do apreciador mediano; sempre alimentando o desejo de alcançar a sensibilidade do gastrônomo. Para isso, tornou-se obrigatória uma longa viagem pelas culinárias mais importantes do mundo, especialmente a francesa, a italiana e a chinesa; coadjuvada com a leitura sistemática de obras de especialistas no ramo; ainda, ir para cozinha e cometer alguns pratos; freqüentar bons bares e restaurantes, e trocar experiências com cozinheiros e apreciadores: amadores e profissionais.
Ao dirigir o SENAC, no estado do Acre, tive a oportunidade de promover cursos de culinária para melhorar a qualidade dos profissionais de cozinha dos seus restaurantes. Trouxe inicialmente um ex-chefe da cozinha do Itamaraty, que ministrou curso de culinária brasileira e internacional. Depois pude observar que nos cardápios dos seus poucos e modestos bares e restaurantes, com exceção da cozinha árabe, largamente encontrada inclusive nas ruas; nada havia da chamada cozinha típica da Amazônia. O tacacá, por sua vez, estava nas ruas e o pato e a rabada no tucupi no interior das casas, e assim, de modo disperso, outras iguarias. De Belém, com o apoio do SENAC do Pará, eu trouxe um chefe de cozinha especializado em comida típica da Amazônia, para ministrar curso em Rio Branco.
Além disso, estimulei alunos meus na UFAC, a pesquisarem sobre a culinária que se praticava no interior das casas de Rio Branco; e daí resultou um volume contendo dezenas de receitas, já publicado em mimeógrafo pelo SESC, com introdução e prefácio de minha autoria. Também assumi o compromisso de estudar e testar as receitas para evitar as possíveis incoerências. Para esse estudo, que aparentemente parecia simples, fui motivado a mergulhar numa ampla e alentada bibliografia sobre a culinária e a alimentação no Brasil. Uma busca compulsiva de tudo que se produziu sobre o assunto. Do mais simples caderno de receitas aos alentados estudos etnográficos, históricos, sociológicos, nutricionais e gastronômicos. Atualmente, mesmo sem considerar as perdas, tenho em minha biblioteca particular centenas de livros sobre gastronomia, culinária e alimentação; e tudo isso se deveu a essa primeira aventura acreana.
O meu encontro com Luis da Câmara Cascudo vem de muito antes. Década de sessenta do século passado, quando voltei para o Rio Grande do Norte vindo de Pernambuco por obra e graça do golpe militar de 1964. Fui um assíduo freqüentador de suas palestras e conferências. Levado pelo jornalista e correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, Arlindo Freire, fiz a primeira visita a sua casa e tive o prazer de conversar com ele. Pedimos sua colaboração para um projeto de revista que não se concretizou, porém de sua parte mereceu apoio de imediato, inclusive o compromisso de artigo para o primeiro número. Naquela oportunidade, Arlindo o entrevistou, como pauta do Estadão.
O contato com sua vasta obra foi naturalmente acontecendo, até por curiosidade de saber coisas que haviam povoado a minha infância. Fui editor, na década de setenta do século passado, quando diretor da Gráfica Manimbu, de dois dos seus livros: Vaquejada Nordestina e História da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte. Voltei a ter a honra de ser seu editor durante os dois períodos em que dirigi a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Editei seus livros ditos confessionais, quatro volumes, e mais dois outros títulos.
O estudo que fiz de sua obra sobre alimentação e culinária veio a acontecer a partir de 1980. Leitura necessária e obrigatória, pois não é possível escrever sobre alimentação no Brasil sem se referir a Cascudo. Até se pode encontrar esse tipo de omissão, porém somente perdoável antes da publicação do monumental História da Alimentação no Brasil (1967/1968); todavia, Abguar Bastos, no seu livro A Pantofagia, não sei por qual motivo não o cita (Brasiliana, 381, 1987).
Além da sua obra História da Alimentação no Brasil, outras que tratam também do assunto podem ser listadas: Prelúdio da Cachaça, Sociologia do Açúcar, Antologia da Alimentação no Brasil, Made in África, Comendo Formigas, Viajando o Sertão, Dicionário do Folclore Brasileiro e um sem número de artigos.
Cascudo em sua vasta obra revelou um profundo conhecimento da teoria da arte do bem comer (gastronomia). Não posso afirmar se tinha arguta sensibilidade como realizador e apreciador. As referências ao vinho em sua obra memorialística ou confessional são poucas, e não vão além dos portugueses e uma ligeira indicação ao excelente vinho húngaro Tokay. Da comida, mereceu-lhe especial atenção os pratos regionais salgados e doces, e destes, especialmente os doces portugueses.
O interesse de Cascudo pela comida já fora expresso em suas Actas Diurnas. Saudara Gilberto Freyre pelo seu livro Açúcar; publicara até então um pequeno estudo sobre doces de tabuleiros. Revelou nesses artigos já uma boa proximidade com obras clássicas da gastronomia, especialmente com Brillat-Savarin (A Fisiologia do Gosto).
O projeto de Cascudo em sistematizar uma história da alimentação no Brasil, inclusive acalentando uma parceria com JOSUÉ DE Castro, só foi possível em 1962. Antes da publicação das 900 páginas desse imenso repertório, História da Alimentação no Brasil, saem os ensaios Dante Aligghieri e a Tradição Popular no Brasil ( no qual se examina a evolução teológica sobre a gula), 1963; A cozinha Africana no Brasil, 1964; Made in África, l965; e finalmente, a pesquisa tão ansiosamente buscada toma forma de livro em 1967, Brasiliana, I tomo, 1968, 323-A II tomo. Depois virão Prelúdio da Cachaça (1968) e Sociologia do Açúcar (1971).
Em 1977, aparece Antologia da Alimentação no Brasil, organizada por Cascudo e com vários ensaios de sua lavra (Livros Técnicos e Científicos S.A.). Na abertura da Antologia..., Cascudo resume de modo magistral o conteúdo da sua história da alimentação: “Expus o fundamento, as raízes permanentes do cardápio tradicional na participação indígena, africana e portuguesa, quando o Brasil organizava sua existência coletiva. No segundo tomo, expus o panorama das preferências, o comum na comida nacional, com inimitáveis pesquisas dessas constantes no tempo. As complementações bibliográficas fizeram-se nas viagens para verificação da contemporaneidade alimentar em sua autenticidade positiva”. Ao encerrar o texto, diz: “Esta antologia completa e fecha tudo quanto estudei de alimentação no Brasil”.
Os textos dispersos de Cascudo que tratam da alimentação, não da nutrição como gostava de frisar, estão carecendo de um organizador para completar o perfil desse pesquisador sem igual no país. No entanto, sua outra face, o seu perfil do ponto de vista gastronômico, da ciência e da arte do bem comer, só poderá ser revelado pelo mergulho profundo na obra do mestre e nas informações daqueles que conviveram mais intimamente com ele. O aforismo de Brillat-Savarin, reitero, deve ser o norteador da pesquisa: “Diga-me o que comes, e eu te direi quem és”.
Nota: texto publicado no livro “Outras circunstâncias”. João Pessoa (PB): Ed. Universitária da UFPB, 2002, p. 63 a 68.
Um comentário:
Pedro esqueci de te avisar que estou com os originais do teu livro de Culinaria Acreana ou e Acriana (esquisito), para analise de uma possivel parceria para publicacao logo que possivel gostaria de conversar a respeito.Parabens pelo blog esta muito bom e pena que ainda nao consegui ler tudo e muita informacao que me interessa, principalmente sobre os livros,vejo que seu amor a eles e maior do que o meu,pois,na maioria das vezes eu so pego para vendelos e voce os pega para ler.Um grande abraco. Paim.
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