XINGU-Belo Monte (poranaoliveira.blogspot.com) |
Havia acabado de chover naquela tarde
em Altamira. Chuvinha besta de agosto pra setembro. Nesta época floresce o pau
d’árco, que no Sul chamam de Ipê. Explode em copas de cores muito vivas
quebrando a imensidão verde da mata. Roxo e amarelo. Mais amarelos do que
roxos. É também quando as tartarugas e tracajás sobem às praias para desovar.
Exatamente depois de uma chuvinha como essa, os machos, capitaris sobem à praia
para, diz-que, com a ponta do rabo, curto, grosso e pontiagudo, traçar um risco
delimitando o sítio seguro até onde as fêmeas podem fazer as covas e depositar
os ovos. Ali seria o ponto em que as águas do inverno não atingiriam. Pelo
menos até a eclosão dos ovos.
Alguns esparsos barcos, pequenos,
rabudos, cheios de passageiros, alguns com guarda-chuvas, principalmente mulher
barriguda ou com criança verde no colo, cruzam o rio e a tarde, em quase toda a
extensão da Rua da Frente.
Vêm do Baixo, da Ilha da Fazenda,
embora o movimento maior seja com a Terra dos Assurinins, na margem direita do
Xingu, esses não passam por ali. Contornam a parte de cima da Ilha do Arapujá.
São voadeiras velozes, e até balsas atravessando carros e gente. Caminhões e
carretas de madeireiros. Automóveis. Progresso.
Nunca fiz essa travessia por ali, nem
andei de balsa ou voadeira veloz, moderna com capota e poltrona. Não, por
qualquer sentimento de aversão ou preconceito, mas talvez por falta de
oportunidade. Aquela parte não está nas minhas lembranças, na minha história.
Debrucei-me na mureta ainda molhada
do cais à espera do resto da turma. O primeiro a chegar foi o Dimas do Seu
Carlos Soares. Logo depois, juntos, vieram o Élio do Miguez, o Sabá do Janga, o
Eduardo Besouro e o Zé do Mané Paulo. Sobrenome por lá era desse jeito. Identificava
o cabra e a cepa.
Não foi o encontro efusivo da turma
de moleques de sempre. Dizíamos que nunca iríamos envelhecer. Até ensaiamos
descer lépidos a escada escorregadia, íngreme e estreita colada ao paredão que
ia dar na praia ainda larga da seca de verão. Não deu. Era preciso ter cuidado.
Os moleques estavam grisalhos. Avós.
- E aí, Deca? – Instigou o Eduardo,
quebrando o silêncio.
Deca era eu, seguindo a regra, Deca
do Anfrísio. Fiz cara de paisagem, como se tivesse concatenando as idéias. O
próprio Eduardo veio em meu socorro.
- Vou encaminhar a discussão e vocês
corrijam ou acrescentem o que for relevante.
- “Encaminhar a discussão” é coisa de
comuna ou petista, ainda tentou brincar o Sabá do Janga. Ninguém riu. O Eduardo
fez que não ouviu e continuou.
- Sempre sonhamos com o progresso de
Altamira. Achamos que a nossa era a geração da transformação. Vocês vibraram,
eu, não, quando a ditadura chegou com a Transamazônica. Projeto pronto e
acabado. Desenvolvimento. Não fomos ouvidos nem cheirados, mas tudo bem,
iríamos sair do isolamento, do marasmo, da pobreza.
Passaram de cambulhada por cima de
nós, do povo de Altamira. As máquinas foram recebidas com aplausos e fanfarra.
Junto com elas veio a escória republicana da dissolução dos costumes. Gente,
muita gente. “Gente sem terra para uma terra sem gente”. “Ocupar para não
entregar”. E outras baboseiras em que muitos de nós embarcaram desde a primeira
hora. Os novos donos, a ensinar o que sabíamos, tinham nomes, caras e funções
definidas. Autoridades. A nova confraria. Empreiteiras, madeireiros, grileiros,
pistoleiros, corruptos e corruptores. Gente experiente em comprar gente. Gente
disposta a se vender. Como se disse, autoridades.
O resultado foi a desconstrução. O
latifúndio, os grileiros, os madeireiros, os corruptos, os corruptores, o
desmatamento. Tudo isso escoltado e coonestado por prefeitos, deputados,
senadores, governadores, juízes, cartorários et caterva. E a Sudam. Ah! A
Sudam. Essa merece ser contada em um capítulo a parte. E se contará. Um monumento
à rapinagem e à impunidade. E a dissolução dos costumes ganhou. A mata perdeu.
A Amazônia perdeu. Perdemos nós.
Por fim, mas não menos importante,
esse processo sombrio, trouxe uma semente de amanhã. Os colonos. Desassistidos
e desvalidos. Os que resistiram à volúpia da grilagem latifundiária e
conseguiram ficar e amanhar a terra. Foi muito difícil, mas o trabalho honesto
está vencendo e, não pela pata do boi, do correntão ou da moto-serra. A região
se prepara para ser o maior produtor de cacau orgânico do Brasil. A engrenagem
desta economia primária criou uma nova geração de agricultores, estudantes,
professores, doutores, empresários. Do bem, do bom, do belo. A decisão de pais
renitentes que conseguiram ficar no trabalho duro, as caminhadas de léguas em
busca das primeiras letras, deu frutos.
Mas ainda não o poder.
Este pertence às estruturas
carcomidas de um sistema que acreditávamos agonizante. Por si e por seus
beleguins. A hora era de reconstruir: mais dia, menos dia, essa nova geração
haveria de assumir as rédeas do próprio destino. Vitória, Brasil Novo, Uruará,
Souzel, Altamira, São Félix, enfim, o Vale do Xingu.
De repente, não mais que de repente,
BELO MONTE. A grande hidrelétrica a estrangular o Rio e sujigar as gentes.
Houve um tempo, logo que anunciaram o
projeto, em que chegamos a nos ufanar. Orgulho besta de colonizado. Quando a
ficha caiu, Inez era morta.
Mais uma vez o Xingu e mais uma
geração serão sacrificados em holocausto ao desenvolvimento, diz-que, do
Brasil. Eu disse diz-que. E nem se deram ao trabalho de nos convencer. Ficou o
entendimento de que o interesse maior era das empreiteiras e de suas tenebrosas
circunstâncias. Da outra vez era a ditadura. Agora, em pleno Estado Democrático
de Direto. Vai começar tudo outra vez.
E chegará o dia em que, o capitari
buscará, com seu rabo grosso e pontiagudo aquela praia, a mesma praia que, por
10, 30, 100 anos indicou o caminho para que as suas crias fossem depositadas e
gestadas e não mais a encontrará, inundada que está pela grande barragem.
Agora, cadê praia? cadê ovos? cadê
vida?
Não houve discussão. Ninguém
contestou, ou sequer acrescentou palavra, apenas, o Élio, quando se levantou,
balbuciou para si mesmo: – É isso aí.
Os seis, agora bem mais velhos, subiram devagar a
escada do cais. Silentes, com um gosto amargo na boca e um sorriso amarelo,
despediram-se apenas com um aceno.
O texto que ora posto no blog me foi enviado pela minha amiga Enid Frederico, professora da UNICAMP.
O texto que ora posto no blog me foi enviado pela minha amiga Enid Frederico, professora da UNICAMP.
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