sábado, 14 de abril de 2012

Memórias – Varal das Lembranças: A fugaz Sociedade Cultural Carlos Drummond de Andrade e o filme O Padre e a Moça - Pedro Vicente Costa Sobrinho

O Padre (Paulo José) e a Moça (Helena Inês)

Idos de 1966. O Partido Comunista Brasileiro estava em lento processo de reorganização em Natal. O Comitê Central do PCB havia, então, aceito o pedido do CE do RN para que viesse pra cá um profissional devidamente qualificado para ajudar na tarefa de reorganização do partido no estado:  interior, operários e sobretudo entre os funcionários públicos. O núcleo de jovens, contudo, já vinha desenvolvendo algumas atividades, mas sua participação era ainda muito frágil no cenário estudantil, com atuação pontual na Casa do Estudante, Colégio Atheneu e Universidade. No movimento cultural, a presença do PCB era quase nula.

 O cenário da vida cultural da cidade era bisonho. As instituições de estado responsáveis pela execução de política e eventos culturais, com raras exceções, quase nada faziam. A rede municipal de bibliotecas mourejava. A única Galeria de Arte da cidade virara centro de exposição de armas da Marinha, Exército, Aeronáutica e do e do 1º de Abril (dia do golpe militar), e ainda para mostras de artesanato utilitário e prendas domésticas de clubes de serviço, LBA etc. As organizações não governamentais tradicionalmente ligadas à cultura estavam, por sua vez, controladas por intelectuais de cariz conservador. Os jovens intelectuais, ainda sem peso na vida cultural da cidade, transitavam em espaços alternativos bastante restritos: Galeria Vila Flor, animada por Augusto Severo Neto; Universidade das Cocadas, no Grande Ponto, Cine Clube Tirol e Casa do Estudante.

O Cine Clube Tirol foi a organização alternativa certamente de maior inserção na vida cultural da cidade. Desenvolvia regularmente atividades na área de cinema, e todos os fins de semana promovia uma sessão com filmes denominados  de arte numa sala de projeção cedida, mediante aluguel,  de uma rede local exibidora de filmes. De suas reuniões, geralmente aos domingos, realizadas no salão Paroquial da igreja Santa Terezinha, participavam, além dos seus associados, pessoas que estavam interessados em cinema. Havia sempre exposição e debate sobre o filme que fora exibido na sessão de arte, e, vez por outra, também se discutia sobre os filmes que estavam em cartaz nos cinemas locais. O Cine Clube  mantinha  um espaço num jornal da cidade, no qual veiculava resenhas, comentários críticos e ainda uma tabela com a cotação de filmes que estavam sendo exibidos na cidade; Os textos publicados no jornal eram geralmente da lavra dos seus associados. Cabe ainda  realçar a sua pequena biblioteca, que dispunha de um pequeno acervo de livros e revistas sobre cinema para uso dos seus sócios. Por isso, até então, ele era também, sem dúvida, o único espaço dentro do movimento cultural alternativo de Natal, onde se podia ter uma discussão mais aberta e democrática, pois seus associados se não eram de esquerda, pelo menos tinham, sem exceção, uma posição contraria ao regime militar.

É através do Cine Clube Tirol, portanto, que afloraram as primeiras manifestações de resistência cultural ao regime militar; suas sessões de cinema de arte passaram, então, a ser usadas como canal de expressão dessa resistência, pois os filmes ora escolhidos para exibição nas sessões de arte, além do rigor quanto aos critérios estéticos, veiculavam também um forte componente político. Do corpo de sócios do Cine Clube Tirol participavam vários ativistas que passaram a integrar o núcleo estudantil do PCB.

Nos meados de 1966, um grupo de jovens intelectuais ligados ao núcleo estudantil do PCB achou que era necessário abrir novas frentes de luta no movimento cultural, haja vista que o trabalho do Cine Clube Tirol era focado na área de cinema, portanto  o seu alcance certamente esgotava-se com a sessão semanal do filme de arte. Além disso, avaliou-se que movimento cineclubista no país, aquela altura, quase fora aniquilado, e isso se constituía num sério agravante, vez que não havia possibilidade nenhuma de  interlocução nacional; e qualquer cineclube isolado tornava-se  presa fácil para os órgãos de repressão locais.Como alternativa, pensou-se, então, na criação de uma nova entidade com raio de ação mais amplo para promover atividades nas diversas áreas da cultura.

Os principais mentores da ideia: Juliano Siqueira, eu e Emmanuel Bezerra, de rápido, elaboramos os estatutos e definimos o nome: Sociedade Cultural Carlos Drummond de Andrade. O grupo se reunia quase sempre na Casa do Estudante,  no quarto ocupado por Emmanuel, ou em sala franqueada pela sua diretoria. A publicação do estrato dos estatutos no Diário oficial do Estado fora conseguida gratuitamente junto ao solidário e saudoso João Ururahy, diretor a época do Departamento Estadual de Imprensa, que antes de chancelar a publicação, chamou-me no Gabinete e disse-me, a rir, que desconfiava que aquilo tudo fosse coisa de comunista, pois envolvia de cara eu, Emmanuel e Juliano, mas, iria uma vez mais correr o risco.  É bom lembrar que João já havia autorizado no Departamento, em 1965, a confecção de um jornalzinho, cujo nome eu esqueci, editado sob a responsabilidade de Emmanuel e Juliano, e tivera ele, então, que mandar sequestrar toda a edição, sob o pretexto de que nela havia artigos considerados subversivos.  Não me lembro do destino do jornalzinho, mas creio que João Ururahy, depois do arrufo inicial, tenha com certeza liberado a edição.

A primeira iniciativa da Sociedade Cultural foi convidar o seu patrono Carlos Drummond de Andrade para estar presente na sessão oficial de instalação pública. A coisa, no entanto, não veio a acontecer porque o grande poeta, de jeito nenhum, aventurava-se a empreender qualquer viagem, e aquela altura nada sabíamos disso. Logo depois pra fazer caixa e ao mesmo tempo criar um fato cultural e político, resolveu-se programar o filme “O Padre e a Moça”, com argumento/roteiro e direção de Joaquim Pedro de Andrade, e que tinha como inspiração e base um poema de Carlos Drummond de Andrade. O filme, em que pese ter obtido o prêmio de qualidade do Instituto Nacional de Cinema (INC) e ainda ter sido indicado para o Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlin, estava tendo uma trajetória meio turbulenta, pois entrara em rota de colisão com setores conservadores da Igreja Católica. Em Minas Gerais, um conhecido arcebispo conservador havia se dirigido aos fiéis pedindo que sabotassem o filme, e ainda apelou para o governo do estado para que sua exibição fosse proibida.  O fato teve repercussão nacional, e onde a Igreja reacionária era dominante  o filme tinha sérias dificuldades para que viesse a ser exibido. O certificado de censura do filme fora expedido naturalmente pelo órgão afeto no Governo Federal, mas as barreiras a sua exibição foram criadas por setores religiosos, e também  pela rede de exibidores nacionais e locais. Os exibidores não queriam correr o risco do prejuízo por falta de expectadores, pois os filmes brasileiros chamados de arte eram sempre uma operação arriscada; e mais, havia ainda outro agravante, pois o setor exibidor  temia de certo modo a força de pressão dos católicos. Tudo então conjurava contra o filme dirigido por Joaquim Pedro, que tinha no elenco Paulo José, Helena Inês, Fauzi Arap, Mário Lago e Rosa Sandrini; fotografia de Mário Carneiro; montagem de Eduardo Escorel; música de Carlos Lira, com condução musical do maestro Guerra Peixe.

Em Natal a coisa não poderia ocorrer de modo diferente. O acerto junto ao distribuidor em Recife foi feito por Juliano e Emmanuel, e até aí tudo ocorreu naturalmente sem transtornos, sobretudo por que o filme já estava por lá há algum tempo encalhado. O gerente da distribuidora apenas fez uma exigência, a de que o documento de cessão e o borderô da renda fossem expedidos em nome e pelo  Cine Clube Tirol, pois este já tinha o devido cadastro junto a empresa. Antes de ir a Recife, Juliano e Emmanuel tinham combinado as datas de exibição com a Cireda, em horários inteiramente da conveniência da rede de cinema local. Na volta deles a coisa engrossou; o gerente da rede cancelou o acordo, e alegou que havia recebido ordem da diretoria da empresa para não exibir tal filme. Quase de imediato, através de buxixos, viemos  saber  que o empresário Luiz de Barros é quem dera a ordem, logo após haver recebido telefonema do deputado federal Jessé Pinto Freire para tratar do assunto. E que por atrás disso tudo estava a ação silenciosa da  Igreja, por mediação, junto aos donos da Cireda,  do bispo Dom Nivaldo Monte. O que fazer?

A direção da Sociedade Cultural Carlos Drummond de Andrade fez, de imediato, novos contatos, agora com o gerente do Cinema Rio Grande, e dele obteve o mesmo não. Disse-nos, o gerente, que o dono da empresa, Moacir Maia, não queria correr o risco do desgaste junto à igreja, daí, então, ele falou de  possível alternativa: o cinema Poti, que fazia parte da rede, mas efetivamente estava sob o controle do jornalista Luis Maria Alves, então diretor do jornal Diário de Natal, e com seu Alves, segundo ele, a conversa até poderia ser diferente e, portanto, vir a tomar outro rumo. E assim foi feito. Juliano e Emanoel conversaram com Luís Maria Alves, e, com riqueza de detalhes, contaram tudo que havia ocorrido,  e de que o filme tinha certificado de censura e estava liberado, nacionalmente, para maiores de dezoito anos. Seu Alves foi curto e grosso na sua resposta: voltem a conversar com o gerente para programar a data de exibição do filme, pois aqui mando eu e o bispo não tem nada que se meter em assunto que não  está na sua alçada.  O Padre e a Moça ficou em cartaz  durante três noites no Cine Poti e foi assistido por uma platéia de mais de duas mil pessoas. O gerente do Rio Grande, espertamente aproveitou a deixa, reteve o filme e repôs em cartaz no Cine Rio Grande, mas, agora, sem que a Sociedade Cultural Carlos Drummond de Andrade tivesse qualquer inserção.

A exibição do filme em Natal, a meu ver, tornou-se um fato político, servindo ora como termômetro revelador de que já havia um  certo grau,  ainda que  sutil e  latente , de discordância  entre a classe média local e o projeto político do regime militar. As eleições de 1966 em Natal, disputada entre os dois partidos recém-criados com a reforma eleitoral imposta pela Ditadura, vieram demonstrar com maior transparência o aflorar dessa discordância que fermentara na classe média, e que essa insatisfação já era também possível de ser notada  entre as camadas populares, haja vista que o então concorrente do MDB ao senado federal, Odilon Ribeiro Coutinho, obteve maior número de votos em Natal que  o candidato Duarte Filho, fruto do consenso dos donos do poder, e que, por isso,  recebeu o apoio  das duas ARENAS: a verde de Aluizio Alves e a vermelha de Dinarte Mariz.  

Os dois anos seguintes: 1967 e 1968, em Natal, foram marcados pelo aumento da insastifação de setores da classe média ao regime militar,  que se expressou  no crescimento sensível do movimento de estudantes, universitários e secundaristas, contra a Ditadura Militar. A Sociedade Cultural Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, tinha perdido sua efetiva razão para existir, porque o PCB, que a criou como um dos seus biombos, naquela ocasião já estava rachado, em níveis local e nacional, dando vazão ao surgimento de correntes que vieram a formar novos partidos de esquerda, e, naturalmente, a entidade veio a desaparecer sem deixar obras e sequer rastros que indicassem sua presença no cenário cultural do Rio grande do Norte.

 Ao revisitar o pasto das minhas lembranças para narrar esses fatos, eu quero fazer uma ressalva: o grupo ao atribuir o nome de Drummond a entidade, o fez como homenagem ao grande poeta, pois todos os seus integrantes tinham por ele forte admiração. Portanto, não se sabia então que ele guardava profundas mágoas dos comunistas pelo o que houve em março de 1949 durante as eleições da Associação Brasileira de Escritores e, principalmente, em decorrência dos distúrbios provocados por escritores filiados ao PCB, no auditório da Casa do Estudante, Rio de Janeiro, quando da cerimônia de posse da diretoria da ABDE, da qual ele fazia parte. Durante o conflito, o poeta foi então agredido fisicamente pelo escritor Dalcídio Jurandir.  Segundo Dênis de Moraes, o que aconteceu foi largamente à época noticiado na grande imprensa do Rio e São Paulo. Contudo, conforme Dênis, de parte de Drummond, só em 1985, em seu livro “O observador no escritório”, veio a se tornar público o que ele havia anotado em seu diário, à época: “Nenhum de nós queria impedir o direito dos comunistas se manterem organizados em partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário. A ideia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles, que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da organização.” Outra coisa, ao redigir esse texto eu fiz a releitura de “O Padre, a Moça”,  e, então, o fecho com os versos que abrem o primeiro ato do poema de Drummond: “ O padre furtou a moça, fugiu./ Pedras caem no padre, deslizam./ A moça grudou no padre, vira sombra,/ aragem matinal soprando no padre./ Ninguém prende aqueles dois,/ aquele um/ negro amor de rendas brancas.”



Nota: As informações sobre a disputa na ABDE foram colhidas nos livros O imaginário Vigiado -  A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil: 1947-53 (1994); e O velho Graça – Uma biografia de Graciliano Ramos (1992), de Dênis de Moraes, ambos editados pela José Olympio Editores.

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