Museu do Amanhã - Rio de Janeiro |
Foi num dos volumes da
Coleção Folha/Grandes arquitetos que vi pela primeira vez o nome do espanhol
Santiago Calatrava.
A proposta editorial da
publicação da Folha pretendeu reunir “os grandes nomes da arquitetura que
mudaram a paisagem urbana do mundo”, e os demais enfocados nas edições
seqüenciadas me eram familiares, com a única exceção de Calatrava. Confesso tal
desconhecimento sem maiores pudores, uma vez que não sou arquiteto, mas tão
somente um admirador das obras desses profissionais que não só "reordenam
o espaço", mas eventualmente podem fazer se refletirem nele os caminhos
mais amplos da civilização (ao tornarem as suas concepções uma espécie de
espelho da cultura em permanente transformação).
Exatamente o tipo de
artista – conforme cabe designar – que foi outro espanhol de alta têmpera
criativa (Antoni Placid Gaudí i Cornet), um americano de gênio indiscutível (Frank
Lloyd Wright), um francês seminal (Charles-Edouard Jeanneret-Gris – Le
Corbusier) e um brasileiro como Oscar Niemeyer, aos quais eu via ser ombreado o
trabalho do para mim "novo" nome entre os grandes da arquitetura:
Santiago Pevsner Calatrava Vall.
Sou um tanto obsessivo
com tais lacunas, e programei conhecer a obra de Calatrava – seu “nome de
guerra” das formas, digamos assim – se possível in loco pelo menos na Valência
onde o espanhol veio ao mundo, em 28 de julho de 1951. E essa tão velha e ao mesmo
tempo nova Valência (que, segundo reconhece o próprio arquiteto, ofereceu-lhe
uma dos melhores oportunidades para um jovem exercer o seu talento), merece que
se diga alguma coisa a seu respeito, como cidade cujas inquietações vão da
vigorosa literatura de um Vicente Blasco Ibañez à "visagem verneana do
futuro, em termos de arquitetura" hoje instalada numa das extremidades do
leito seco rio Túria, com a assinatura que apaixona os valencianos – Santiago
Calatrava – do mesmo modo como a de Gaudí veio do novecento espanhol para ainda
se constituir em orgulhoso work in progress rumo ao céu da Catalunha, no caso
da catedral (ou melhor, atual basílica) da Sagrada Família, ainda em construção
em Barcelona.
MEDITERRÂNEA E CHEIA DE
SURPRESAS
Valência é a terceira
cidade da Espanha, e a capital de uma Comunidade com mais de 800 mil habitantes
no município (conforme aqui chamamos) e quase dois milhões na área
metropolitana, que inclui inúmeros sítios históricos. É a “cidade do
Cid”, a terra da
legenda inicial da Reconquista – e lá está, na sede da Prefeitura, o estandarte
imposto aos derrotados mouros e a longa espada (“da justiça”) do rei Jaime I.
Profundamente
espanhola, suas tradicionais Fallas (festas de abertura da primavera) remontam
a um passado romano pagão na proximidade dos ritos sagrados ligados aos
“mistérios” agrícolas, sem falar da marca dos visigodos que levantaram fortes
bastiões de entrada – dos quais restam pelo menos dois importantes portais
urbanos ainda em uso (as Torres Serranas).
Na história mais
recente – e que ainda duele en el alma dos mais velhos –, foi a brava Valência
algo como uma espécie de fiel da balança estratégica na Guerra Civil (1936-39)
fratricida que dividiu a Espanha do século passado como poucos conflitos num país
foram capazes de separar irmãos de raça em duas metades aparentemente
inconciliáveis até a longa ditadura do “Generalíssimo” Francisco Franco emular
o rato que, na força das imagens populares, termina por parir uma montanha. Ou
seja, o sistema monárquico restaurado pelo vencedor fascista da guerra entre
republicanos e inimigos da democracia, em acordo político-social que promoveu o
casamento do socialismo de um Felipe Gonsález com um rei surpreendente entre as
duas, três ou quatro Espanhas que se podem contar desde os Alpes até as portas
da África marroquina contemplando a comunidade malagueña de paredes brancas na
Algeciras de Paco de Lucia...
Nessa Valência
diferente tanto de Málaga e Sevilha quanto de Barcelona e Madri – pois as
regiões são um “estado de espírito” na Espanha de Unamuno e Picasso, Dominguín
e Ignacio Zuloaga –, foi que nasceu o arquiteto capaz de atender à demanda de
“uma obra de absoluta modernidade”, quando da votação sobre o destino a ser
dado ao leito do antigo rio que cortava a cidade e que teve de ser mudado de
curso, após uma inundação das maiores já sofridas pelos valencianos. Em face da
decisão, a administração regional foi em busca de ocupar essa extremidade do
Túria com um projeto à altura das águas históricas, desviadas para longe do
centro a partir do começo da década de 1960. E, nesse velho centro, no coração
de uma urbe de estandartes e espadas, surgiria um quase alucinação
arquitetônica – extremamente funcional, entretanto – a qual foi entregue (como
não poderia deixar de ser) a um valenciano típico na maneira de ver o mundo.
Vale lembrar que, no momento dessa decisão, começava a prosperar uma Espanha
bem menos problemática do que a que hoje atravessa talvez a mais séria das
crises econômicas que já se abateram sobre a Europa.
SURGE A “CIDADE DE
CALATRAVA”
Santiago Calatrava
formou-se em Arquitetura na sua cidade natal, em 1974, ao mesmo tempo em que
frequentava também os cursos de Urbanismo e Belas Artes, destacando-se como um
dos raros alunos habilitados a dar as aulas que cumpria ouvir (alguns dos seus
professores recordam o desconforto de “ensinar” a um estudante que aparentava
já “saber tudo”).
Concluídos os cursos, o
jovem arquiteto mudou-se da Espanha para a Suíça, a fim de estudar engenharia
civil em Zurique, licenciando-se em 1979 e concluindo o doutorado em 1981. “Suas
provas oficinais se destacavam pelo partido original de projetos até difíceis
de definir, devido à complexidade das formas desenvolvidas com base num já
sólido conhecimento tecnológico” – recorda o seu professor (e, mais tarde,
colaborador) Felix Candela.
Provavelmente, essa
formação integral (estudos de arquitetura, artes e ofícios, e – depois –
engenharia), viria a capacitá-lo para uma gama de diversas empreitadas, desde
interiores até grandes infraestruturas como a Ponte de Alamillo, em Sevilha, um
dos seus primeiros projetos estruturais, concluído em 1992. E quando surgiu o
projeto de uma “Cidade das Artes e da Ciências” a se levantar onde antes
corriam as águas do rio turbulento, Calatrava seria um dos jovens arquitetos
menos propensos a fazer ancorar no leito do Túria um projeto de entretenimento
de concepção blasé, com a finalidade de idiotizar crianças e possivelmente
alimentar complexos de Peter Pan em adultos infantilizados. Pelo contrário:
propôs que seguissem o antigo caminho tranqüilo do rio, isto é, na direção
contrária de um passado de turbulências naturais, políticas etc. Concretizada
em formas surpreendentes – como surpreendente é a velha “cidade do Cid” –, a
criação desse legítimo inovador no campo arquitetônico foi recebida como uma
nova corrente de formas associadas inclusive à idéia da Água como bem não
renovável, num planeta que precisa decidir sobre questões vitais para a comum
sobrevivência na Terra.
Para mim, foi
insuficiente deparar-me, na Coleção Folha/Grandes arquitetos, com as imagens
impactantes da calatraviana “Ciudad de las Artes y las Ciencias”, roçando os
limites da incredulidade, sim: seriam maquetes, ou aquilo de fato existia, numa
Valência que me faltava ver, entre os destinos de quase cinco anos de viagens
obsessivamente espanholas?...
Foi assim que me
dispus, no final de 2011, a ir conferir pessoalmente a “Ciudad” de formas do
século 21 aterrissadas com leveza, força e funcionalidade na mesma Espanha
arrojada de Gaudí tanto quanto do obscurantismo da “Opus Dei”, infelizmente. E
lá estava a obra de ousadia indiscutível, fazendo “virar” a página das
inovações arquitetônicas catalãs – já incorporadas à história das artes – e
também atingindo, no cerne daquelas formas, uma espécie de medula nova,
artisticamente falando, pelo desdobramento da ligação com a natureza (talvez
mais à maneira do pensamento de um Teilhard de Chardin do que mesmo pela
ligação com as obras do modernismo barcelonês do incontornável Gaudí) à frente
da imaginação ibérico-delirante que Santiago Calatrava vem espalhando pelos
continentes europeu e americano.
Hoje, já são mais de 200 trabalhos – entre
estações, aeroportos e projetos de ordenação urbanística na Suiça, em Portugal,
Itália, Suécia, Grécia, EEUU, Argentina etc – que levam a assinatura desse
homem ainda jovem, com atenção extrema ao pormenor material e dotado de visão
estrutural poderosa.
Há, nas suas concepções
maiores, a predominância de valores cinéticos-dinâmicos que conseguem “dar a
volta” a um certo imobilismo quase inevitável em projetos que implicam grandes
massas arquitetônicas. Ele é um “estruturista” vocacional, e gosta de conciliar
solidez tecnológica com elementos figurativos que fogem de todo formalismo,
talvez pela via das conotações organicistas sempre presentes no seu traço de
artista.
Pode parecer estranho trazer a palavra
surrealismo para este terreno, porém essa seria uma das chaves de análise do
“estilo calatraviano”, que também vai buscar
inspiração nas lições da natureza, patentes no seus equilíbrios de articulações-rótulas,
tendões-cabos e outras harmonias antropomórficas aludidas em construções que
não nos desconcertam (como a pirâmide transparente plantada na frente do
Louvre).
Essa harmonia é, em
parte, agenciada pelo movimento que anima suas formas no mais das vezes
assimétricas – embora sempre a partir de configurações dinâmicas que atingem,
com naturalidade, aquele ponto perfeitamente escultural, tão desejável em
arquitetura. Ou seja, aquilo que muitas vezes se torna o esforço de uma vida
inteira, no caso de profissionais menos dotados para o desenho, em Santiago
Calatrava parece ser um instinto seguro para compreender o tipo de torre capaz
de surpreender – agradavelmente – a Barcelona que viu se erguer a forma quase
hipnótica da Torre de Montjuïc como uma nova “marca” da capital da Catalunha,
visível de quase todos os seus muitos mirantes.
O arquiteto valenciano
era, pois, o homem também naturalmente destinado a criar a obra-prima de
arquitetura que hoje dá movimento à antiga paisagem do rio da sua infância –
nunca o das “mesmas águas”, segundo o conceito heracliteano (que tem tudo a ver
com a dinâmica permanente das formas que Calatrava introduziu nesse ambiente
para sempre modificado).
CIDADE PARA O FUTURO
A Cidade das Artes e
das Ciências é um grande complexo lúdico-cultural que já se converteu em
referência internacional, tanto pela ousada arquitetura de Calatrava –
coadjuvado pelo arquiteto Félix Candela – quanto pela proposta do que ali se
chama “ócio cultural e inteligente”, no lugar do verbo divertir (ou seja,
espaços que pretendem ser meramente diversionais, na apresentação de conteúdos
especiais de enseñanza).
Tal sensação se instala
a partir da ponte de acesso ao extraordinário conjunto levantado em torno do
protagonismo do elemento água na vida deste planeta. Popularmente chamada
“ponte de Calatrava”, ela tem um perfil extremamente harmonioso como passarela
e via de acesso ao conjunto arquitetônico (e à estação de metrô que leva
diretamente para a nova “cidade”). Foi construída com aço de alta resistência,
descansando sobre uma viga ligeiramente arqueada, cujo arco inclinado de 14
metros de altura se alonga por 26 metros de largura (e 131 de extensão total),
isso tudo inclinado setenta graus sobre o plano horizontal. Seu efeito prepara,
perfeitamente, para o Umbral que Calatrava chama de “elemento vertebrador de la
Ciudad”, uma espécie de zona verde que dá vistas para todo o complexo – sendo,
desde já, um dos parques ajardinados mais belos do mundo.
Dali, o visitante pode
se dirigir para o Palácio das Artes Rainha Sofia, um novo teatro de ópera com
quatro amplas salas acolhidas sob uma espécie de elmo gigantesco, suspenso
sobre a estrutura interna de vidro. Desse edifício arrojado, o passo seguinte é
encontrar um dos volumes mais bem concebidos do projeto total: o Hemisférico,
espaço para cinema em grande formato, 3D e projeções digitais, que representa o
olho humano – ou, mais precisamente, o “olho da sabedoria” – através da forma
que se completa pela sua própria imagem num espelho d’água de proporções
gigantescas.
Mais adiante, o Museu
de Ciências Príncipe Felipe lembra o gigantesco casco de algum animal
antediluviano, ocupando uma área de 40.000 m2 na qual Calatrava concebeu
módulos interiores “essencialmente interativos”, de modo a estimular os
visitantes a interagirem com as exposições, oficinas e outras atividades que se
desenvolvem nos museus hoje dinâmicos.
O maior de todos os
subconjuntos teria que ser, necessariamente, o Espaço Oceanográfico,
constituído por 10 edifícios espalhados ao longo de 100 mil metros quadrados de
superfície. Com o objetivo de educar para a conservação do mundo marinho, o
visitante vai encontrar nessa área não menos que 11 pavilhões (de dois níveis)
situados em torno de um grande lago central e mais sete aquários. Tudo isso
ligado por passarelas, passeios e rampas no nível interior. Dentre as formas do
espaço, destacam-se das torres “calatravianas” típicas, que lembram conchas
abertas como carapaças, com a finalidade algumas das mais raras dentre as 500
espécies marinhas presentes nesse que é, desde já, o maior centro marinho da
Europa. Animais como morsas, delfins, leões marinhos, pinguins, tartarugas,
tubarões e belugas estão “em habitat” – e cada espécie relacionada com os
ecossistemas (tropical, ártico, antártico) atualmente em estudo no parque que
recebe água do mar diretamente da bela praia valenciana de Malvarrosa.
NO BRASIL
Aqui no Brasil,
Santiago Calatrava terá a sua primeira obra erguida no Píer Mauá, na área do
Porto Maravilha. Com previsão de inauguração para o segundo semestre deste ano,
trata-se do Museu do Amanhã, que faz parte dos projetos museológicos da
Fundação Roberto Marinho, e se constitui num complexo de 12,5 mil metros
quadrados, orçado em R$ 130 milhões e para o qual o arquiteto espanhol da
“Ciudad” do amanhã foi uma escolha natural, segundo os diretores da Fundação
carioca.
Entrevistado quando da
apresentação dos esboços, no ano passado, Calatrava disse que o visitante do
museu “não vai apenas apreciar um espaço museológico. Ele também vai ter a
experiência da luz, da vida, da natureza, e poderá contemplar, entre outras
paisagens, o Dedo de Deus”.
Esse dedo passa pelas
formas naturais aprendidas da Natureza, segundo o espanhol eleito, em 2005,
pela revista americana Time, como “uma das cem pessoas mais influentes do
planeta”. Tanto que o MA adotará o uso da energia solar e está sendo construído
com materiais recicláveis, de acordo com as especificações do arquiteto que diz
ter se inspirado inicialmente na bromélia, para os estudos prévios de concepção
da forma desse museu de denominação um tanto vaga, convenhamos.
“Se o lugar não é
bonito (a praça na zona do porto da “cidade maravilhosa”) – acrescenta
Calatrava, com mais franqueza – é preciso fazer coisas belas; por que não
'bromeliáceas' ou formas angulosas que vão se arredondando, em metamorfoses?
São coisas que eu associo a este país, embora as formas sempre se abstraiam,
porque a arquitetura termina por propor algo quase sempre autônomo, no
resultado final”.
Foi desse mesmo modo,
afinal, que ele concebeu uma cidade nova dentro do espaço aberto num velho rio
valenciano – e, assim, um “Museu do Amanhã” brasileiro não deve ter constituído
nenhum especial desafio para o arquiteto espanhol com a cabeça no século 21.
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