Os companheiros Trotskistas
Lembro-me certa vez de que eu e Lenito França nos encontramos em Recife na redação do jornal “A Hora”, no edifício Vieira de Carvalho. Fomos a livraria do PCB, que estava instalada um ou dois andares abaixo do mesmo prédio, para ver as novidades. A livraria sempre dispunha de livros do catálogo da Editorial Vitória, editora do PCB, e da Civilização Brasileira; compramos alguns livros e depois juntos nos dirigimos a Estação Central para pegar o trem que nos conduziria de volta à Jaboatão. Durante o trajeto, ao passar pela Casa de Detenção, Lenito sugeriu que fizéssemos uma visita aos companheiros trotskistas (Partido Operário Revolucionário Trotskista) que ali ora se encontravam aprisionados por ordem, estranhamente, do governador Miguel Arraes, inclusive ameaçados de enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Atrasamos um pouco a viagem de volta e fomos até eles.
Dos que ali se encontravam detidos, três deles já conhecia de nome: Carlos Montarroyos, Ayberê e Julio Santana, este liderança sindical. Também tivera notícias sobre o assassinato de Jeremias (Paulo Roberto Pinto), em Itambé. Não me lembro se Joel Câmara também estava juntamente com eles detido. Ao todo, salvo erro, os presos políticos eram cerca de sete: Júlio Santana, Zeferino (Joca), Antonio Joaquim (Chapéu de Couro), Carlos Montarroyos, Cláudio Cavalcanti, Ayberê e Abdias. Afora o assunto relacionado com a emboscada armada pelos latifundiários de Itambé que resultou na trágica morte de Jeremias e no fuzilamento de três camponeses, a conversa, grosso modo, foi agradável e descontraída, versando sobre questões da conjuntura política nacional e internacional, sendo Cuba, o revisionismo soviético e o imperialismo americano os temas dominantes. Além disso, comentou-se sobre o estranho comportamento do governo Arraes que, sem mandado judicial, os havia detido, caracterizando o ato autoritário como simplesmente político; com certeza, a decisão era um ato inútil de afago aos latifundiários e usineiros. No caso de Júlio Santana, Joca e Chapéu de Couro a acusação é de que haviam invadido a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barreiros, Rio Formoso e Serinhaém, que estava sob intervenção da Delegacia Regional do Trabalho. E ainda, falou-se sobre o alardeado “Acordo do Campo”, assinado pelo Governo Arraes e os patrões da lavoura canavieira, pelo qual os plantadores de cana e usineiros assumiam o compromisso com o reajuste salarial de 80% para os trabalhadores, pagamento do13° salário no mês de dezembro, com base no salário de 31 de outubro/1963, e assinatura da carteira profissional no prazo de 60 dias. O fecho da conversa foi sobre a manifestação que seria convocada para protestar contra a prisão deles, através de ato público a ser realizado na Praça Dantas Barreto, as 10:00 h do dia primeiro de dezembro. Sempre é bom realçar que de um lado estavam os revisionistas, Lenito e eu, e do outro lado os revolucionários, eles. Já fazia um bom tempo de conversa, quando até nós chegou a notícia de que o presidente dos EUA, John Kennedy, fora assassinado em Dallas, estado do Texas. Um dos companheiros ouvira a notícia através do Repórter Esso, em edição extraordinária. Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente. De modo premonitório um dos presentes disse: “uma onda de golpes de estado vai ocorrer na América Latina, o Brasil, com certeza, é a bola da vez”. Saímos da Casa de Detenção preocupados, mas Lenito era muito otimista e, por sua vez, achava que faltava a direita uma liderança no meio militar para desfechar a ação golpista. A ilusão quanto ao esquema de sustentação militar de Jango e também a crença exagerada na força do movimento sindical encabeçado pelo CGT nos davam uma visão distorcida da conjuntura política vigente, levando-nos a acreditar que os gorilas civis e militares, desse modo, cá no Brasil não teriam vez. Esse tempo era 22 de novembro, cinco meses depois o golpe civil- militar foi desfechado.
No dia primeiro de dezembro fui a Praça Dantas Barreto participar do comício pela libertação dos presos políticos. Muita gente compareceu ao ato público convocado pelo CONSINTRA, Federação dos Sindicatos Rurais, Ligas Camponesas, e mais os Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Palmares e Jaboatão. O apoio do PCB ao ato público estava mais que explícito, pois dele participou organizações de notório controle do partido. Lembro-me ainda dos nomes de alguns oradores: Francisco Julião pelas Ligas, e Amaro Luis de Carvalho (Capivara), liderança do PCdoB. Além disso, salvo engano, um dos oradores foi o líder bancário Antonio Fausto do Nascimento, Secretário Assistente do Governador Arraes, por indicação do PCB. Após o encerramento do comício, parte dos presentes em protesto se dirigiu em passeata até a Casa de Detenção. Os presos foram autorizados a se encontrar e falar com os manifestantes, e logo depois do improvisado ato, os portões do presídio foram fechados. Lembro-me ainda que antes de se dirigir ao presídio os manifestantes passaram empunhando bandeiras e pronunciando palavras de ordem diante do Palácio das Princesas; e que, naquele momento, Arraes recebeu o grupo organizador do comício, e assumiu o compromisso de libertar o quanto antes os prisioneiros. Esse fato realmente veio a acontecer em Janeiro de 1964, quando todos ficaram livres da prisão e de serem enquadrados na famigerada LSN. Até hoje eu me pergunto por que Julio Santana ficou ainda detido. Meus amigos Juliano Siqueira e Luciano Almeida foram presos na Casa de Detenção de Recife pela Ditadura Militar na década de setenta e encontraram lá o velho Júlio; segundo eles, Júlio Santana veio a sair de lá em 1972, e, logo depois, souberam a notícia do seu falecimento.
Profissional do PCB de curta duração
No segundo semestre de 1963, fui convidado para um encontro com David Capistrano na redação do jornal “A Hora”. Durante a conversa David relatou-me que o PCB estava precisando de um profissional remunerado que se dedicasse exclusivamente ao trabalho do partido no município de Jaboatão, com a tarefa de reorganizar e mesmo organizar as organizações de base operárias e de jovens e também no meio rural, com o objetivo de dar uma estrutura orgânica e funcional ao partido; e, portanto, disse-me ele que a atual direção municipal não tinha nenhuma sustentação real, em virtude de não existir partido organizado na cidade. Falou-me também que o partido já teve um profissional que fazia trabalho político no meio rural dos municípios de Jaboatão e Moreno, mas que este companheiro havia se bandeado pras Ligas, e se encontrava ora em Goiás organizando núcleo armado no campo sob a liderança de Francisco Julião e Clodomir Moraes. Vim algum tempo depois a conhecer esse companheiro por nome Elias, que me disse haver entrado numa fria ao aderir ao tal núcleo armado, o foquista Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Quanto ao núcleo dos ferroviários, David informou que não fazia parte do meu trabalho, pois logo que Manaçu voltasse de Moscou, onde fora pra escola de formação de quadros, ele se encarregaria da tarefa de reorganização. Além disso, eu deveria ajudar na organização da Conferência Municipal, que escolheria a nova direção do PCB no município e o delegado para participar da Conferência Estadual, pois o PCB no ano de 1964 estaria realizando o seu VI Congresso Nacional. David informou que CE destinou a mim o valor de um salário mínimo, e que cobriria algumas despesas extras decorrentes do trabalho. Assim eu me tornei um profissional do partido, ao modo leninista.
Do núcleo dirigente municipal recebi algumas ligações no meio operário e no campo. No campo, lembro-me muito bem de Cirilo, sitiante, que ora, do seu antes pedaço de terra onde dispunha de mangueiras e bananeiras e cultivava roçado de macaxeira e mandioca, só lhe restava um pequeno quintal com uma jaqueira; o canavial cercara sua tapera e quase entrava porta adentro. Cirilo se dedicava agora exclusivamente ao plantio e ao corte de cana. Cirilo era um tipo alto, esguio, pele amorenada crestada pelo sol, cabelos lisos, olhos negros, algumas rugas na face e um grosso bigode sobre a boca. Apesar dos seus cinqüenta anos aparentava ainda ser um homem bastante forte, curtido pelo trabalho duro nos canaviais. Cirilo era, sobretudo, uma figura humana extraordinária, pois seus companheiros de labuta e vizinhos sitiantes, a ele se referiam com respeitoso carinho e admiração; sua ligação com o PCB era antiga, cerca de mais ou menos trinta anos, pois me falara do seu envolvimento na rebelião de 1935 e de suas muitas prisões em decorrência de sua militância política. Cirilo foi então o meu principal ponto de apoio para que fizesse contato com os trabalhadores rurais que tinham alguma ligação com o PCB. Realizamos longas caminhadas nas estradas entre os canaviais das usinas Jaboatão e Muribeca. Geralmente por motivo de segurança os contatos eram realizados pela manhã bem cedinho, e durante a noite, após as oito horas. Todo o trabalho inicial foi feito a pé, e o ponto de partida sempre foi a casa de Cirilo, onde me abriguei por alguns dias e noites. Voltei depois aos canaviais pra realizar as assembléias de organizações de base para escolha do delegado à Conferência Municipal.
Na cidade a coisa foi muito complicada. Os contatos eram feitos, marcava-se reuniões que não se realizavam, pois os companheiros não compareciam. Depois de muitas tentativas frustradas, consegui-se estruturar precariamente dois núcleos em locais de trabalho: na fábrica Portela e com os alfaiates. Nos bairros, José Napoleão (Dedé) encarregou-se dos núcleos de Cavaleiro e Prazeres. O núcleo estudantil bem ou mal já vinha funcionando, e tinha atuação regular no Diretório do Colégio Estadual de Jaboatão. E assim nos preparamos rumo à Conferência Municipal, e, de certo modo, eu havia cumprido o compromisso assumido com a direção estadual do PCB.
Após a realização das assembléias de organizações de base (OB), o CM definiu a data da Conferência Municipal, que foi marcada, salvo engano, para o mês de Janeiro de 1963. David Capistrano era o assistente do CE do PCB junto ao CM de Jaboatão, numa dessas reuniões fora definida a data da Conferência Municipal, mas a confirmação da data seria comunicada ao CE, alguns dias depois, pois havia algumas questões ainda pendentes a serem resolvidas, inclusive quanto ao deslocamento dos companheiros do campo e mesmo no que diz respeito ao local onde seria feita a reunião. Por decisão do CM, eu fiquei com a responsabilidade de comunicar com David para confirmar a data e o local, a princípio já definido para começo de Janeiro de 1964.
Lembro-me bem do que ocorreu. Eu estava participando de ativo da juventude do PCB para avaliar a atuação do partido no movimento estudantil, e a estratégia a ser definida para o próximo ano de 1964. O local foi o auditório da Secretaria Estadual de Educação, que ficava num prédio situado em rua próxima à Avenida Guararapes. Usei o telefone e liguei pra casa de David; ele atendeu e, então, como ficara combinado, eu comuniquei exclusivamente a data, o horário e o local sem me referir onde, mas o que já fora acertado. A voz do outro lado da linha indagou a respeito da quantidade de participantes e fez menção a respeito do local. Eu fiquei frio e apreensivo e desliguei de rápido o telefone, e fui me informar onde morava David, pois eu queria ir até ele, por medida de segurança, para esclarecer o tal contato. Peguei um taxi e me desloquei até sua casa; ele me recebeu de pijama, e foi logo me pedindo desculpas por ter violado as regras de segurança ao me pedir informações que fugiam ao que fora antes acertado na reunião. Dissipada a dúvida eu voltei tranqüilo para o Ativo Estadual de Jovens, onde me encontrava.
A Conferência Municipal de Jaboatão foi realizada com certo êxito. Compareceram os representantes dos núcleos reorganizados da cidade e do meio rural: organizações de base de bairros, meio rural, operárias e de estudantes. Da pauta da reunião constavam: informes, discussão, eleições para o Comitê Municipal e escolha do delegado para Conferência Estadual do PCB. David Capistrano fez o informe nacional e estadual das atividades do partido e rápida análise da conjuntura política estadual e nacional; Dedé, por sua vez, na condição de atual secretário político, fez um balanço das eleições recentes para prefeito e do trabalho do partido no município. Após os informes foi aberta a discussão sobre os temas. Nessa reunião eu fui eleito para o Comitê Municipal e para integrar sua Comissão Executiva; também fui escolhido para representar os comunistas do município na Conferência Estadual do PCB, prevista para maio de 1964.
Por que não fui funcionário público estadual no governo Arraes
No segundo semestre de 1963, a Secretaria Assistente do Governo Arraes tomou a iniciativa de criar delegacias regionais, com a finalidade de descentralizar suas atividades no estado. Uma dessas delegacias teria abrangência nos municípios de Jaboatão, Moreno, Vitória de Santo Antão, Gravatá e Bezerros, com sede na cidade de Moreno. Lamento por haver esquecido o nome do bravo companheiro indicado pelo PCB para assumir a gerência da Delegacia, mas sempre me vem da lembrança o nome Severino Claudino; lembro-me ainda que ele havia sido vereador em Limoeiro, terra do coronel Chico Heráclito. Eu também fui indicado pra ser contratado como secretário da tal delegacia. Durante alguns meses exerci o cargo voluntariamente, pois a nomeação não saía, emperrada pela burocracia do estado. Não cheguei a receber qualquer remuneração pelo trabalho realizado. Os deslocamentos entre as cidades abrangidas pela Delegacia eram feitos num velho Jipe dirigido por Claudino, e as despesas com alimentação eram custeadas com suas magras diárias. Quando tudo parecia acertado, veio o golpe militar e eu tive que cair fora do estado. Na condição de secretário da Delegacia Sindical, sem nomeação oficial, cumpri algumas missões, entre elas destaco a mobilização de trabalhadores rurais da área para participar do comício realizado em Recife em comemoração ao primeiro ano do governo Arraes. Lembro-me também dos contatos com os galileus Zezé, Virgínio e outros companheiros do Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão. Lá também pude melhor conhecer Luiz Serafim, combativo ativista das Ligas Camponesas. O golpe militar de 1964, com a conseqüente cassação do mandato de Arraes, abortou minha carreira no serviço público do estado de Pernambuco.
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