Bertolt Brecht |
Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a
ignorância tem de lutar, pelo menos, contra cinco dificuldades. É-lhe
necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se
empenham em sufocá-la; a inteligência de reconhecê-la, quando por toda a parte
a ocultam; a arte de torná-la manejável como uma arma; o discernimento
suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz;
finalmente, precisa ter habilidade para difundir entre eles. Estas dificuldades
são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou
foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de
liberdades burguesas não estão livres da sua ação.
1- A CORAGEM DE DIZER A VERDADE
É evidente que o escritor deve dizer a verdade, não
a calar nem a abafar, e nada escrever contra ela. É sua obrigação evitar
rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos, naturalmente, assim
como resistir à tentação do lucro que advém de enganar os fracos. Desagradar aos
que tudo possuem equivale a renunciar seja o que for. Renunciar ao salário do
seu trabalho equivale por vezes a não poder trabalhar, e recusar ser célebre
entre os poderosos é muitas vezes recusar qualquer espécie de celebridade. Para
isso precisa-se de coragem. As épocas de extrema opressão costumam ser também
aquelas em que os grandes e nobres temas estão na ordem do dia. Em tais épocas,
quando o espírito de sacrifício é exaltado ruidosamente, precisa o escritor de
muita coragem para tratar de temas tão mesquinhos e tão baixos como a
alimentação dos trabalhadores e o seu alojamento.
Quando os camponeses são cobertos de honrarias e
apontados como exemplo, é corajoso o escritor que fala da maquinaria agrícola e
dos pastos baratos que aliviariam o tão exaltado trabalho dos campos. Quando
todos os alto-falantes espalham aos quatro ventos que o ignorante vale mais do
que o instruído, é preciso coragem para perguntar: vale mais por quê? Quando se
fala de raças nobres e de raças inferiores, é corajoso o que pergunta se a
fome, a ignorância e a guerra não produzem odiosas deformidades. É igualmente
necessária coragem para se dizer a verdade a nosso próprio respeito, sobre os
vencidos que somos. Muitos perseguidos perdem a faculdade de reconhecer as suas
culpas. A perseguição parece-lhes uma monstruosa injustiça. Os perseguidores
são maus, dado que perseguem, e eles, os perseguidos, são perseguidos por causa
da sua virtude. Mas essa virtude foi esmagada, vencida, reduzida à impotência.
Bem fraca virtude ela era! Má, inconsistente e pouco segura virtude, pois não é
admissível aceitar a fraqueza da virtude como se aceita a umidade da chuva. É
necessária coragem para dizer que os bons não foram vencidos por causa da sua
virtude, mas antes por causa da sua fraqueza. A verdade deve ser mostrada na
sua luta com a mentira e nunca apresentada como algo de sublime, de ambíguo e
de geral; este estilo de falar dela convém justamente à mentira. Quando se
afirma que alguém disse a verdade é porque houve outros, vários, muitos ou um
só, que disseram outra coisa, mentiras ou generalidades, mas aquele disse a
verdade, falou em algo de prático, concreto, impossível de negar, disse a única
coisa que era preciso dizer.
Não se carece de muita coragem para deplorar em
termos gerais a corrupção do mundo e para falar num tom ameaçador, nos lugares
onde a coisa ainda é permitida, da desforra do Espírito. Muitos simulam a
bravura como se os canhões estivessem apontados sobre eles; a verdade é que
apenas servem de mira a binóculos de teatro. Os seus gritos atiram algumas
vagas e generalizadas reivindicações, à face dum mundo onde as pessoas
inofensivas são estimadas. Reclamam em termos gerais uma justiça para a qual
nada contribuem, apelam pela liberdade de receber a sua parte dum espólio que sempre
têm partilhado com eles. Para esses, a verdade tem de soar bem. Se nela só há
aridez, números e fatos, se para a encontrar forem precisos estudos e muito
esforço, então essa verdade não é para eles, não possui a seus olhos nada de
exaltante. Da verdade, só lhes interessa o comportamento exterior que permite
clamar por ela. A sua grande desgraça é não possuírem a mínima noção dela.
2- A INTELIGÊNCIA DE RECONHECER A
VERDADE
Como é difícil dizer a verdade, já que por toda a
parte a sufocam, dizê-la ou não parece à maioria uma simples questão de
honestidade. Muitas pessoas pensam que quem diz a verdade só precisa de
coragem. Esquecem a segunda dificuldade, a que consiste em descobri-la. Não se
pode dizer que seja fácil encontrar a verdade.
Em primeiro lugar, já não é fácil descobrir qual
verdade merece ser dita. Hoje, por exemplo, as grandes nações civilizadas vão
soçobrando uma após outra na pior das barbáries diante dos olhos pasmados do
universo.
Acresce ainda o fato de todos sabermos que a guerra
interna, dispondo dos meios mais horríveis, pode transformar-se dum momento
para o outro numa guerra exterior que só deixará um montão de escombros no
sitio onde outrora havia o nosso continente. Esta é uma verdade que não admite
dúvidas, mas é claro que existem outras verdades. Por exemplo: não é falso que
as cadeiras sirvam para a gente se sentar e que a chuva caia de cima para
baixo. Muitos poetas escrevem verdades deste gênero. Assemelham-se a pintores
que esboçassem naturezas mortas a bordo dum navio em risco de naufragar. A
primeira dificuldade de que falamos não existe para eles e, contudo, têm a
consciência tranquila. "Esgalham" o quadro num desprezo soberano
pelos poderosos, mas também sem se deixarem impressionar pelos gritos das
vítimas. O absurdo do seu comportamento engendra neles um "profundo"
pessimismo que se vende bem; os outros é que têm motivos para se sentirem
pessimistas ao verem o modo como esses mestres se vendem. Já nem sequer é fácil
reconhecer que as suas verdades dizem respeito ao destino das cadeiras e ao
sentido da chuva: essas verdades soam normalmente de outra maneira, como se
estivessem relacionadas com coisas essenciais, pois o trabalho do artista
consiste justamente em dar um ar de importância aos temas de que trata.
Só olhando os quadros de muito perto é que podemos
discernir a simplicidade do que dizem: "Uma cadeira é uma cadeira" e
"Ninguém pode impedir a chuva de cair de cima para baixo". As pessoas
não encontram ali a verdade que merece a pena ser dita.
Alguns se consagram verdadeiramente às tarefas mais
urgentes, sem medo aos poderosos ou à pobreza, e, no entanto, não conseguem
encontrar a verdade. Faltam-lhe conhecimentos. As velhas superstições não os
largam, assim como os preconceitos ilustres que o passado frequentemente revestiu
de uma forma bela. Acham o mundo complicado em demasia, não conhecem os dados
nem distinguem as relações. A honestidade não basta; são precisos conhecimentos
que se podem adquirir e métodos que se podem aprender. Todos os que escrevem
sobre as complicações desta época e sobre as transformações que nela ocorrem
necessitam de conhecer a dialética materialista, a economia e a história. Estes
conhecimentos podem adquirir-se nos livros e através da aprendizagem prática,
por mínima que seja a vontade necessária. Muitas verdades podem ser encontradas
com a ajuda de meios bastante mais simples, através de fragmentos de verdades
ou dos dados que conduzem à sua descoberta. Quando se quer procurar, é
conveniente ter-se um método, mas também se pode encontrar sem método e até sem
procura. Contudo, através dos diversos modos como o acaso se exprime, não se
pode esperar a representação da verdade que permite aos homens saber como devem
agir. As pessoas que só se empenham em anotar os fatos insignificantes são
incapazes de tornar manejáveis as coisas deste mundo. O objetivo da verdade é
uno e indivisível. As pessoas que apenas são capazes de dizer generalidades
sobre a verdade não estão à altura dessa obrigação.
Se alguém está pronto a dizer a verdade e é capaz
de a reconhecer, ainda tem de vencer três dificuldades.
3-A ARTE DE TORNAR A VERDADE
MANEJÁVEL COMO UMA ARMA
O que torna imperiosa a necessidade de dizer a
verdade são as consequências que isso implica no que diz respeito à conduta
prática. Como exemplo de verdade inconsequente ou de que se poderão tirar
consequências falsas, tomemos o conceito largamente difundido, segundo o qual
em certos países reina um estado de coisas nefasto, resultante da barbárie.
Para esta concepção, o fascismo é uma vaga de barbárie que alagou certos países
com a violência de um fenômeno natural.
Os que assim pensam, entendem o fascismo como um
novo movimento, uma terceira força justaposta ao capitalismo e ao socialismo (e
que os domina). Para quem partilha esta opinião, não só o movimento socialista,
mas também o capitalismo teriam podido, se não fosse o fascismo, continuar a
existir, etc. Naturalmente que se trata de uma afirmação fascista, de uma
capitulação perante o fascismo. O fascismo é uma fase histórica na qual o
capitalismo entrou; por consequência, algo de novo e ao mesmo tempo de velho.
Nos países fascistas, a existência do capitalismo assume a forma do fascismo, e
não é possível combater o fascismo senão enquanto capitalismo, senão enquanto
forma mais nua, mais cínica, mais opressora e mais mentirosa do capitalismo.
Como se poderá dizer a verdade sobre o fascismo que
se recusa, se quem diz essa verdade se abstém de falar contra o capitalismo que
engendra o fascismo? Qual será o alcance prático dessa verdade?
Aqueles que estão contra o fascismo sem estar
contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie,
assemelham-se a pessoas que querem receber a sua fatia de assado de vitela, mas
não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver sangue.
Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes de servir a
carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie, mas
são contra a barbárie.
As recriminações contra as medidas bárbaras podem
ter uma eficácia episódica, enquanto os auditores acreditarem que semelhantes
medidas não são possíveis na sociedade onde vivem. Certos países gozam do raro
privilégio de manter relações de propriedade capitalistas por processos
aparentemente menos violentos. A democracia ainda lhes presta os serviços que
noutras partes do mundo só podem ser prestados mediante o recurso à violência,
quer dizer, aí a democracia chega para garantir a propriedade privada dos meios
de produção. O monopólio das fábricas, das minas, dos latifúndios gera em toda
a parte condições bárbaras; digamos que em alguns lugares a democracia torna
essas condições menos visíveis. A barbárie torna-se visível logo que o
monopólio já só pode encontrar proteção na violência nua.
Certas nações que conseguem preservar os monopólios
bárbaros sem renunciar às garantias formais do direito, nem a comodidades como
a arte, a filosofia, a literatura, acolhem carinhosamente os hóspedes cujos
discursos procuram desculpar o seu país natal de ter renunciado a semelhantes
confortos: tudo isso lhes será útil nas guerras vindouras. É licito dizer-se
que reconheceram a verdade, aqueles que reclamam a torto e a direito uma luta
sem quartel contra a Alemanha, apresentada como verdadeira pátria do mal da
nossa época, sucursal do inferno, caverna do Anticristo? Desses, não será
exagerado pensar que não passam de impotentes e nefastos imbecis, já que a
conclusão do seu blá-blá-blá aponta para a destruição desse país inteiro e de
todos os seus habitantes (o gás asfixiante, quando mata, não escolhe os
culpados).
O homem frívolo, que não conhece a verdade,
exprime-se através de generalidades, em termos nobres e imprecisos. Encanta-o
perorar sobre "os" alemães ou lançar-se em grandes tiradas sobre
"o" Mal, mas a verdade é que nós, aqueles a quem o homem frívolo
fala, ficamos embaraçados, sem saber que fazer de semelhantes ditames. Afinal
de contas, o nosso homem decidiu deixar de ser alemão? E lá por ele ser bom, o
inferno vai desaparecer? São desta espécie as grandes frases sobre a barbárie.
Para os seus autores, a barbárie vem da barbárie e desaparece graças à educação
moral que vem da educação. Que miséria a destas generalidades, que não visam
qualquer aplicação prática e, no fundo, não se dirigem a ninguém.
Não nos admiremos que se digam de esquerda,
"mas" democratas, os que só conseguem elevar-se a tão fracas e
improfícuas verdades. A "esquerda democrática" é outra destas
generalidades-álibis onde correm a acoitarem-se as pessoas inconsequentes, isto
é, os incapazes de viver até as últimas consequências as verdades que quer a
esquerda, quer a democracia contêm. Reclamar-se alguém da "esquerda
democrática" significa, em termos práticos, que pertence ao grupo dos
ineptos para revolucionar ou conservar as coisas, ao clã dos generalistas da
verdade.
Não é a mim, fugido da Alemanha com a roupa que
tinha no corpo, que me vão apresentar o fascismo como uma espécie de força
motriz natural impossível de dominar. A obscuridade dessas descrições esconde
as verdadeiras forças que produzem as catástrofes. Um pouco de luz, e logo se
vê que são homens a causa das catástrofes. Pois é, amigos: vivemos num tempo em
que o homem é o destino do homem.
O fascismo não é uma calamidade natural, que se
possa compreender a partir da "natureza" humana. Mas mesmo
confrontados com catástrofes naturais, há um modo de descrevê-las digno do
homem, um modo que apela para as suas qualidades combativas.
O cronista de grandes catástrofes como o fascismo e
a guerra (que não são catástrofes naturais) deve elaborar uma verdade praticável,
mostrar as calamidades que os que possuem os meios de produção infligem às
massas imensas dos que trabalham e não os possuem.
Se se pretende dizer eficazmente a verdade sobre um
mau estado de coisas, é preciso dizê-la de maneira que permita reconhecer as
suas causas evitáveis. Uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado
de coisas pode ser combatido.
4- DISCERNIMENTO SUFICIENTE PARA
ESCOLHER OS QUE TORNARÃO A VERDADE EFICAZ
Tirando ao escritor a preocupação pelo destino dos
seus textos, as tradições seculares do comércio da coisa escrita no mercado das
opiniões deram-lhe a impressão de que a sua missão terminava logo que o
intermediário, cliente ou editor, se encarregava de transmitir aos outros a
obra acabada. O escritor pensava: falo e ouve-me quem me quiser ouvir. Na
verdade, ele falava e quem podia pagar ouvia-o. Nem todos ouviam as suas
palavras, e os que as ouviam não estavam dispostos a ouvir tudo o que se lhes
dizia. Tem-se falado muito desta questão, mas mesmo assim ainda não chega o que
se tem dito: limitar-me-ei aqui a acentuar que "escrever a alguém"
tornou-se pura e simplesmente "escrever". Ora não se pode escrever a
verdade e basta: é absolutamente necessário escrevê-la a "alguém" que
possa tirar partido dela. O conhecimento da verdade é um processo comum aos que
leem e aos que escrevem. Para dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir
boas coisas. A verdade deve ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para
nós que escrevemos, é essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.
Devemos dizer a verdade sobre um mau estado de
coisas àqueles que o consideram o pior estado de coisas, e é desses que devemos
aprender a verdade. Devemos não só dirigir-nos às pessoas que têm uma certa
opinião, mas também aos que ainda a não têm e deviam tê-la, ditada pela sua
própria situação. Os nossos auditores transformam-se continuamente! Até se pode
falar com os próprios carrascos quando o prêmio dos enforcamentos deixa de ser
pago pontualmente ou o perigo de estar com os assassinos se torna muito grande.
Os camponeses da Baviera não costumam querer nada com revoluções, mas quando as
guerras duram demais e os seus filhos, no regresso, não arranjam trabalho nas
quintas, tem sido possível ganhá-los para a revolução.
Para quem escreve, é importante saber encontrar o
tom da verdade. Um acento suave, lamentoso, de quem é incapaz de fazer mal a
uma mosca, não serve. Quem, estando na miséria, ouve tais lamúrias, sente-se
ainda mais miserável. Em nada o anima a cantilena dos que, não sendo seus inimigos,
não são certamente seus companheiros de luta. A verdade é guerreira, não
combate só a mentira, mas certos homens bem determinados que a propagam.
5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE
5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE
Muitos, orgulhosos de ter a coragem de dizer a
verdade, contentes por a terem encontrado, porventura fatigados com o esforço
necessário para lhe dar uma forma manejável, aguardam impacientemente que
aqueles cujos interesses defendem a tomem em suas mãos e consideram
desnecessário o uso de manhas e estratagemas para difundi-la. Frequentemente, é
assim que perdem todo o fruto do seu trabalho. Em todos os tempos, foi
necessário recorrer a "truques" para espalhar a verdade, quando os
poderosos se empenhavam em abafa-la e ocultá-la. Confúcio falsificou um velho
calendário histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o
texto dizia: "o senhor de Kun condenou à morte o filósofo Wan por ter dito
frito e cozido", Confúcio substituía "condenou à morte" por
"assassinou". Quando o texto dizia que o Imperador Fulano tinha
sucumbido a um atentado, escrevia "foi executado". Com este processo,
Confúcio abriu caminho a uma nova concepção da história.
Na nossa época, aquele que em vez de
"povo", diz "população", e em lugar de terra", fala de
"latifúndio", evita já muitas mentiras, limpando as palavras da sua
magia de pacotilha. A palavra "povo" exprime uma certa unidade e
sugere interesses comuns; a "população" de um território tem
interesses diferentes e opostos. Da mesma forma, aquele que fala em
"terra" e evoca a visão pastoral e o perfume dos campos favorece as
mentiras dos poderosos, porque não fala do preço do trabalho e das sementes,
nem no lucro que vai parar aos bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos
camponeses que se matam a tornar fértil o "paraíso". "Latifúndio"
é a expressão justa: torna a aldrabice menos fácil. Nos lugares onde reina a
opressão, deve-se escolher, em vez de "disciplina", a palavra
"obediência", já que mesmo sem amos e chefes a disciplina é possível,
e caracteriza-se portanto por algo de mais nobre que a obediência. Do mesmo
modo, "dignidade humana" vale mais do que "honra": com a
primeira expressão o indivíduo não desaparece tão facilmente do campo visual;
por outro lado, conhece-se de ginjeira o gênero de canalha que costuma
apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade os
gordos desonrados distribuem "honrarias" pelos famélicos que os
engordam.
Ao substituir avaliações inexatas de acontecimentos
nacionais por notações exatas, o método de Confúcio ainda hoje é aplicável. Lênin,
por exemplo, ameaçado pela polícia do czar, quis descrever a exploração e a
opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu "Rússia"
por "Japão" e "Sakalina" por "Coréia". Os métodos
da burguesia japonesa faziam lembrar a todos os leitores os métodos da
burguesia russa em Sakalina, mas a brochura não foi proibida, porque o Japão
era inimigo da Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a
propósito da Alemanha, podem sê-lo a propósito da Áustria. Há muitas maneiras
de enganar um Estado vigilante.
Voltaire combateu a fé da Igreja nos milagres,
escrevendo um poema libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são descritos
os milagres que sem dúvida foram necessários para Joana d'Arc permanecer virgem
no exército, na Corte e no meio dos frades.
Pela elegância do seu estilo e a descrição de
aventuras galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou
estas a sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida
dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de atingir por
vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que Voltaire contava
entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a difusão dos livros proibidos,
e desse modo sacrificavam a polícia que protegia os seus prazeres. E o grande
Lucrécio sublinha expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista
confiava muito na beleza dos seus versos.
Não há dúvida de que um alto nível literário pode
servir de salvo-conduto à expressão de uma idéia. Contudo, muitas vezes
desperta suspeitas. Então, pode ser indicado baixá-lo intencionalmente. É o que
acontece, por exemplo, quando sob a forma desprezada do romance policial, se
introduz à socapa, em lugares discretos, a descrição dos males da sociedade. O
grande Shakespeare baixou o seu nível por considerações bem mais fracas, quando
tratou com uma voluntária ausência de vigor o discurso com que a mãe de
Coriolano tentou travar o filho, que marchava sobre Roma: Shakespeare pretendia
que Coriolano desistisse do seu projeto, não por causa de razões sólidas ou de
uma emoção profunda, mas por uma certa fraqueza de caráter que o entregava aos
seus velhos hábitos. Encontramos igualmente em Shakespeare um modelo de manhas
na difusão da verdade: o discurso de Marco Antônio perante o corpo de César,
quando repete com insistência que Brutus, assassino de César, é um homem
honrado, descrevendo ao mesmo tempo o seu ato, e a descrição do ato provoca
mais impressão que a do autor.
Jonathan Swift propôs numa das suas obras o seguinte
meio de garantir o bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos dos pobres
e vendê-los como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos, provava que
se podem fazer grandes economias quando não se recua diante de nada. Swift
armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de pensar abominável
e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O leitor podia-se mostrar mais
inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift, sobretudo aquele que ainda
não tinha pensado nas consequências decorrentes de certas concepções.
São consideradas baixas as atividades úteis aos que
são mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela satisfação de
necessidades; o desdém pelas honrarias com que procuram engodar os que defendem
o país onde morrem de fome; a falta de confiança no chefe quando o chefe nos
leva a todos à catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho quando ele não
alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um comportamento
de idiotas; a indiferença para com a família, quando de nada serve a gente
interessar-se por ela. Os esfomeados são acusados de gulodice; os que não têm
nada a defender, de covardia; os que duvidam dos seus opressores, de duvidar da
sua própria força; os que querem receber a justa paga pelo seu trabalho, de
preguiça, etc.
Numa época como a nossa, os governos que conduzem
as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense no
governo, e por isso estão sempre a falar em fatalidade. Quem procura as causas
do mal, vai parar à prisão antes que a sua busca atinja o governo. Mas é sempre
possível opormo-nos à conversa fiada sobre a fatalidade: pode-se mostrar, em
todas as circunstâncias, que a fatalidade do homem é obra de outros homens. Até
na descrição de uma paisagem se pode chegar a um resultado conforme à verdade,
quando se incorporam à natureza as coisas criadas pelo homem.
RECAPITULAÇÃO
A grande verdade da nossa época (só seu
conhecimento em nada nos faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma
outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na barbárie porque
nele se mantêm pela violência determinadas relações de propriedade dos meios de
produção. De que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o
estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a razão de termos
caído nesse estado não se descortina com clareza? É nossa obrigação dizer que a
tortura é para manter as relações de propriedade. Claro que ao dizermos isso
perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura porque julgam ser possível
manter sem ela as relações de propriedade (o que é falso).
Devemos dizer a verdade sobre as condições bárbaras
que reinam no nosso país a fim de tornar possível a ação que as fará
desaparecer, isto é, que transformará as relações de propriedade.
Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as relações
de propriedade e estão mais interessados na sua transformação, ou seja: aos
operários e aos que podemos levar a aliarem-se com eles, por não serem
proprietários dos meios de produção, embora associados aos lucros e benefícios
da exploração de quem produz. E, é claro, devemos proceder com astúcia.
Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo,
estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre condições
bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos a utilizar
esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a verdade sob
uma forma susceptível de se transformar numa arma em suas mãos, e
simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja
descoberta e impedida pelo inimigo.
São estas as virtudes exigidas ao escritor
empenhado em dizer a verdadeBertolt Brecht, dramaturgo, ensaista e poeta alemão. Texto traduzido por Ernesto Sampaio, publicado no jornal Diário de Lisboa em 25/04/1982.
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