Foto de Jaeci Emerenciano Galvão |
Ano de 1964. Nos primeiros dias de minha admissão no Departamento Estadual de Imprensa, logo eu conheci Arlindo Melo Freire. Eu fora contratado como vigia e Arlindo, então, exercia o cargo de supervisor do Diário Oficial. De rápido ficamos amigos, graças a uma certa semelhança quanto a escolha de livros e leituras, e, sobretudo, pelas afinidades políticas, pois éramos de esquerda, ele católico da AP (Ação Popular), eu comunista. Além da boa conversa sobre literatura e política durante o trabalho, quando eu estava como vigia noturno no prédio do velho jornal A República,vez por outra, nos dias livres, nós saímos pela noite a perambular nas ruas e becos da Ribeira. O roteiro era o mesmo quase sempre: passagem e parada, na ida ou volta, pelo Nordeste Bar ou Peixada Potengi para uma cervejinha, comida leve, e uma consensual e rápida pousada num dos bordéis da velha, boêmia e já decadente Ribeira. Por não contar com muitas opções de puteiros no bairro, um desses, naturalmente, seria o escolhido: Arpége, Vander Bar, Buate Paris, Rosa de Ouro, Cabaré do Chiquinho ou Ideal. A conversa que fora iniciada no turno de trabalho geralmente se alongava no recinto noctívago, e num desses rotineiros e até instigantes papos eu fui informado por Arlindo da existência do Foto Cine Clube de Natal e de seu concurso anual de fotografia. Arlindo veio a concorrer num desses certames anuais e havia obtido um honroso, salvo engano, segundo ou terceiro lugar, com uma fotografia cujo tema era a seca no sertão do Rio Grande do Norte: chão de barro branco, com rachaduras profundas a delimitar quase que regulares figuras geométricas. Ele disse-me ainda que Talvanes Guedes, que vim a conhecer anos depois na Bahia, também concorreu e foi o vencedor do principal prêmio naquele ano. Interessei-me pelo assunto e fiquei desde já ansioso por conhecer o tal Foto Cine Clube.
Certa noite, eu encontrei Arlindo no Grande Ponto e, então, juntos caminhamos pela Avenida Rio Branco em direção a cigarreira do Ivan para a usual compra de jornais do Sul. Curioso, há cerca de quarenta anos atrás, em Natal, era possível o acesso a imprensa do Sul do País: “Jornal do Brasil”, Correio da Manhã, Última Hora, Globo, Pasquim, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Zero Hora e outros jornais de circulação nacional. E mais ainda, as edições do dia, apesar da precariedade e dos poucos voos com escala em Natal, que eram feitos certamente pela Varig/Cruzeiro e VASP. Num desses encontros, após naturalmente do breve comentário que fazíamos sobre as manchetes e chamadas da primeira página dos jornais, eu perguntei pro Arlindo onde ficava a sede do Foto Cine e se ele ora estaria disposto a me levar até lá? Arlindo de pronto me respondeu, “agora, pois ela está ali perto, se tivermos sorte a sede a essa hora deve estar aberta, e é bem provável que a gente encontre com alguém da diretoria.” E daí então, dirigimo-nos para o prédio que ficava quase por trás da cigarreira do Ivan; paramos defronte a uma loja que ficava no térreo, olhamos para o andar de cima e verificamos que as luzes estavam acesas; ao lado da loja havia uma entrada que dava acesso a uma escada, subimos alguns degraus até o primeiro piso, adentramos o corredor e através de porta situada logo à direita tivemos acesso a uma sala relativamente espaçosa, mobiliada com mesas, estantes de ferro com livros e algumas cadeiras. O ambiente único servia de auditório, local de trabalho e biblioteca. No mesmo corredor, um pouco mais ao fundo, o Foto Cine dispunha de mais uma sala, onde estava instalado o pequeno laboratório: câmara escura, recinto para revelação e equipamentos estritamente indispensáveis para suas atividades. Naquela noite, por sorte, encontramos com Mário Justino, grande fotógrafo, de quem vim a me tornar amigo. Mário, inclusive, foi quem que me orientou na compra de minha primeira câmera fotográfica, e também me indicou as leituras iniciais que fiz sobre fotografia. Desde então, acostumei-me a visitar o Foto Cine Clube de Natal. Alguns meses depois dessa primeira visita o clube abriu vagas para o curso de iniciação a fotografia que regularmente promovia todos os anos, com vagas bastante limitadas. Fiz a inscrição e frequentei certamente todo o curso.
Lembro-me bem, entre os mais ou menos dez inscritos que frequentaram regularmente o curso, da presença do casal Lolita e Joanilo de Paula Rêgo, pais do fotografo Giovanni Sérgio, e de outra pessoa, gerente de agência de um banco, de cuja imagem eu guardo na memória, mas não consigo me lembrar seu nome, e que veio a ser membro da diretoria do clube. Durante o curso, que teve aulas orientadas por Wharton Cordeiro, Valdir, Cação e Mário Justino, vez por outra, aparecia de súbito o veterano fotógrafo, de origem portuguesa, Francisco Namorado, ícone local da fotografia, cujo mérito já era reconhecido nacional e até internacionalmente. Fiz o curso e me associei ao Foto Cine Clube de Natal, e daí então passei a frequentar suas reuniões semanais. Pelo recente e imponderável interesse que me ocorreu pela arte da fotografia e sobretudo por influência de alguns associados do clube que me eram mais próximos, eu fui motivado a formar uma pequena biblioteca sobre o assunto e ainda fiz assinaturas de revistas que tratavam de arte e técnica fotográfica, entre elas a Iris Foto, da editora Iris, e Fotoptica, editada pela empresa de Thomas Farkas, grande fotógrafo e incentivador do cinema brasileiro, que vim a conhecer, através de Paulo Emílio Salles Gomes e Guido Araújo, numa das memoráveis Jornadas de Cinema da Bahia. A minha biblioteca até que cresceu bastante, e chegou a ter algumas dezenas de títulos, certamente quase tudo que a editora Iris havia publicado sobre fotografia no Brasil. Lembro-me de alguns títulos que mais consultei: Tudo sobre iluminação, Tudo sobre revelação, Tudo sobre lentes, Tudo sobre filtros, Tudo sobre enquadramento, O que é exposição, O que é profundidade de campo, Tudo sobre filmagem, Tudo sobre tudo etc. Deixei quase todos esses livros para o ainda informal Departamento de Cinema e Fotografia da Fundação José Augusto, entregues aos cuidados de amigo, o inolvidável Carlos Lira.
O Foto Cine Clube de Natal, em 1966, salvo engano, mudou sua sede para um conjunto de salas no primeiro andar de um prédio situado na esquina da Rua João Pessoa com a Rua Princesa Isabel. Os novos encargos com aluguel, a inadimplência dos sócios em decorrência do aumento exagerado das mensalidades e outros fatores de menor valia levaram a devolução da nova sede e, hora desabrigado, certamente a diretoria foi levada a cessar todas as suas atividades. O acervo do clube foi distribuído pelas casas dos seus sócios mais ativos e daí tudo se desagregou, sendo, portanto, selada a sua morte, e consequente apagão de sua existência na memória do movimento de cinema e fotografia do Rio Grande do Norte.
O Foto Cine Clube, entre suas realizações, promovia anualmente o Concurso Estadual de Fotografia. Não consigo me lembrar da natureza ou valor dos prêmios que eram atribuídos aos vencedores, mas, com certeza, o concurso era bem acolhido e recebia considerável número de inscritos. Eram selecionadas as fotografias para o primeiro, segundo e terceiro lugares do certame, e também duas ou três menções honrosas. Os critérios de seleção eram rigorosos e o julgamento era precedido de uma discussão aberta com a participação dos associados. Num desses concursos, eu participei de quase todo processo, da seleção à premiação, e, então, eu pude verificar o rigor e profundidade da análise e avaliação do material inscrito, para que daí fosse selecionadas as fotografias de melhor qualidade. E, também, constatei a seriedade com que a comissão julgadora conduzia o curso da escolha dos finalistas ao prêmio; por sua vez, cada um dos integrantes da comissão expunha com clareza as razões que nortearam a escolha das fotografias vencedoras, e detalhava criteriosamente os aspectos estéticos, técnicos e de conteúdo que foram levados em conta para que fosse definida a classificação: primeiro, segundo e terceiro lugares, e menções honrosas. Era um momento único para se aprender como se faz a leitura técnica e estética de uma fotografia.
Av. Duque de Caxias (Ribeira) - Foto de Jaeci Emerenciano Galvão |
Eu suponho que os fotógrafos que fundaram o Foto Cine Clube de Natal tiveram como modelo ou referência um clube que já existia em Pernambuco desde o início da década de l940, e que havia promovido o Primeiro Salão de Arte Fotográfica do Recife, cujo nome era Foto-Cine Clube do Recife. Do corpo de sócios do Foto Cine Clube de Natal faziam parte os profissionais mais respeitados no campo da fotografia no Rio Grande do Norte, e ainda alguns amadores, sobre cujo saber não havia questionamento. Lembro-me ainda de alguns nomes mais notáveis: Francisco Namorado, João Alves de Melo, José Seabra, Emílio do Vale, Jorge Mário, Jaeci Galvão, Mário Justino, Eraldo Porciúncula(?), Valdir, Cação, Wharton Cordeiro, Lolita e Carlos Lira. Alguns desses profissionais tinham nos bairros e centro da cidade suas lojas e estúdios: Jaeci Galvão, Rua João Pessoa; Emílio do Vale, Irmandade dos Passos, Praça Pe João Maria; Jorge Mário, Presidente Quaresma, Alecrim; José Seabra, Avenida Deodoro; João Alves de Melo, Rua Dr. Barata, Ribeira. João Alves de Melo e José Seabra foram também precursores da arte cinematográfica em Natal.Os dois realizaram dezenas de documentários, e estes filmes são certamente essenciais para o resgate de fatos e personalidades da cidade nos anos 30, 40 e 50 do século passado. José Seabra fez também filmes de ficção, entre eles “Amor Mascarado”, que teve sessão de lançamento no Cine Rio Grande e chegou a ser distribuído em Pernambuco. O acervo documental, material e iconográfico do Foto Cine Clube de Natal é sem dúvida muito importante e pode pela ação do tempo vir a se perder, o que torna urgente o seu resgate para que parte essencial da memória da fotografia e do cinema no Rio Grande do Norte seja preservada.
2 comentários:
Parabéns pelas preciosas informação que dividiu conosco!
Parabens Pedro pela lembrança perfeita. fiz parte dessa historia com muito orgulho! Mário Justino.
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