domingo, 1 de abril de 2012

Artigos - Um soneto inédito de Deífilo Gurgel - Nelson Patriota

Deífilo Gurgel

Se todo poeta se torna, com o passar dos anos, um metafísico, um filósofo condenado a formular insistentemente perguntas irrespondíveis, não é o caso, então, de censurar o poeta Deífilo Gurgel por ter se dobrado ao metafísico em sua última fase. O soneto “Solidão”, datado de 4 de agosto de 2009, e que nos foi oferecido pelo autor para o n. 4 da Revista do Conselho Estadual de Cultura (ainda inédita), tem em seu último terceto uma síntese, porém, antimetafísica (um tento para Deífilo), comparável àquela de “Preparação para a morte”, de Manuel Bandeira, em sua lucidez chã, sem véu de alegoria. Diz o verso: “Um dia a Morte, monja silenciosa, / me levará também, só, entre rosas, / para a outra margem desta solidão”.



Citemos, porém, os dois quartetos e o terceto faltantes, haja vista que “Solidão”, até onde sabemos, permanece inédito: “Com que festejo, agora, esta chegada /de volta à minha terra, ao chão comum, / se todos já partiram, um a um, / levados pelo Vento, para o Nada? // Com quem dividirei minha risada, / se não encontro mais, aqui, nenhum / dos velhos companheiros de jornada, / que o Vento arrebatou, frágeis anuns? // De que me vale perguntar à Morte / por que os levou, para que Sul ou Norte, / se a Morte não responde à indagação? [...]”.

Mas a poesia de Deífilo Gurgel, vasta vaga que se espraia em tantas margens, comporta a cada arremetida um modo de ser e de ver que se desdobra e se diversifica sempre segundo uma lógica própria que lhe é exclusiva. Ao escrever “Uma história da poesia brasileira”, o carioca Alexei Bueno antologiou, dentre os poetas norte-rio-grandenses vivos, apenas Deífilo Gurgel, representado no livro pelo soneto “A praia”. Bueno justificou a escolha sob o argumento de que se tratava de “um dos sonetos mais belos de nossa poesia”. Diva Cunha e Constância Lima Duarte, em sua “Literatura do Rio Grande do Norte: antologia”, também se curvaram ao encanto dos sonetos de Deífilo, e o mesmo aconteceria com Assis Brasil, em seu livro “A Poesia Norte-Rio-Grandense no século XX”, entre outros.

A rigor, Deífilo Gurgel não poderia ser alinhado ao lado de poetas do lado soturno da vida, como uma leitura descontextualizada do soneto “Solidão” poderia sugerir. Nascido e criado numa praia, acostumado à luz abundante e ubíqua que recobre nossa região, ele teria naturalmente que ser um poeta do lado ensolarado da vida, como, de fato, foi. Dito de outra forma, era uma pessoa alegre, otimista e confiante no trabalho que desenvolvia desde muitos anos, fosse na seara da poesia, fosse naquela outra do folclore, da cultura popular, com seus romanceiros, seus autos populares, que encarava como seu verdadeiro trabalho, por requerer método, pesquisa e análise. Em contraste, a poesia às vezes é puro diálogo interior.

Durante alguns meses do ano de 1999, pude conviver de perto com Deífilo Gurgel, privando de suas orientações e de seu saber, quando trabalhamos na feitura do livro “400 nomes de Natal”. O livro foi planejado para celebrar os 400 anos de fundação da cidade de Natal, que se festejariam no ano seguinte. Rejane Cardoso, responsável pela coordenação do projeto, além de Manoel Onofre Jr. e Jardelino Lucena, dividiram conosco os ônus desse livro ambicioso e temerário, que reduz à mesma estatura personagens díspares e desiguais da história potiguar.  
Mais tarde, eu reencontraria Deífilo Gurgel no Conselho Estadual de Cultura, ao lado de outros companheiros dessa frágil nau que, no fim das contas, é qualquer instituição cultural pública. O velho poeta não se queixava de nada; via com naturalidade a passagem dos anos que, afinal, é uma herança comum a todos os que têm a fortuna de envelhecer. Essa é uma daquelas lições de vida que não se esquece.

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