quinta-feira, 26 de julho de 2012

Artigos. Eugênio Sales: o cardeal dicotômico - Douglas Naegele

Dom Eugênio Sales


O egoísmo dominante nos indivíduos e países impede uma justa distribuição dos recursos naturais. Cada um pensa em si e em sua nação, sem atender ao bem comum. Aqui se coloca o empobrecimento do Terceiro Mundo, em benefício dos mais ricos. E, no Brasil, a concentração de riquezas é crescente. Busca-se, em vez de justiça social, a diminuição dos que deveriam igualmente participar desses dons que Deus criou para todos os seus filhos”. (Cardeal Dom Eugênio Sales, Jornal do Brasil, 13/8/1994).

Dicotomia, em Teologia, é o princípio que afirma a existência única, no ser humano, de corpo e alma, o que significa que o humano pode, e deve, ser essencialmente espiritual ao mesmo tempo em que não pode, nem deve, separar-se das obrigações terrenas.

Dom Eugênio Sales era assim, capaz de enfrentar os “vorazes gorilas” da ditadura brasileira, dando cobertura e abrigo a inúmeros dirigentes comunistas brasileiros e latino-americanos, enquanto combatia abertamente a chamada “esquerda católica” dentro das CEBs, que ele mesmo ajudara a criar. Apesar de signatário do Concílio Vaticano II, pelejou junto à cúria romana contra a Teologia da Libertação, que ele julgava ser “uma radicalização esquerdista estranha à fé católica”.

Breve biografia

Nascido em Acari, interior do Rio Grande do Norte, em 28 de novembro de 1920, foi batizado Eugênio de Araújo Sales. Filho de Celso Dantas Sales e Josefa de Araújo Sales, irmão de Heitor de Araújo Sales, hoje Arcebispo Emérito de Natal, Eugênio iniciou seus estudos em Natal, no Colégio Marista, de onde foi direto para o Seminário Menor da Praínha, em Fortaleza, no Ceará, onde cursou Filosofia e Teologia entre os anos de 1931 e 1943.

Foi ordenado sacerdote, ainda no ano de 1943, na Igreja Matriz de Nossa Senhora das Graças, na pequena Acari, a mesma igreja onde fora batizado. Em 1º de junho de 1954 é nomeado Bispo Auxiliar de Natal, em 15 de agosto é ordenado Bispo Titular da sé de Thibica (diocese honorifica na Tunísia).

Em 1962 foi designado administrador apostólico da Arquidiocese de Natal, função que exerceu até 1965. Em 1964 foi nomeado administrador apostólico da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, função na qual permaneceu até 29 de outubro de 1968, quando da sua nomeação a Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, pelo Papa Paulo VI.

No consistório do dia 28 de abril de 1969, presidido pelo Papa Paulo VI, Dom Eugênio de Araújo Sales foi nomeado cardeal, do título de São Gregório VII, do qual tomou posse solenemente no dia 30 de abril do mesmo ano. Neste consistório foi também nomeado cardeal o brasileiro Dom Vicente Scherer.

No dia 13 de março de 1971, o Papa Paulo VI o nomeou Arcebispo do Rio de Janeiro[2], função que exerceu até 25 de julho de 2001, quando da sua renúncia, e que foi aceita pelo Papa João Paulo II.

Episcopado e contribuições

Quando era arcebispo de Salvador, foi um dos criadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da Campanha da Fraternidade. Enquanto esteve à frente do Arcebispado do Rio, ordenou 169 sacerdotes, um número recorde, frente às outras Arquidioceses e dioceses brasileiras.

Foi um dos primeiros bispos brasileiros a implantar o Diaconato Permanente, ministério clerical que pode ser concedido a homens casados, segundo a restauração do Concílio Vaticano II. Foi membro de onze congregações no Vaticano.

Sua vida apostólica foi marcada pela defesa da ortodoxia católica. Combateu com firmeza a esquerda católica, a Teologia da Libertação e o engajamento político das Comunidades Eclesiais de Base.

Por outro lado, assumiu a defesa de refugiados políticos dos regimes militares latino-americanos entre 1976 e 1982. Montou uma rede de apoio a estes refugiados juntamente com a Cáritas brasileira e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que consistia em abrigá-los, inicialmente na Sede Episcopal (Palácio São Joaquim) e posteriormente em apartamentos alugados para tal finalidade. Além disto, financiou a estadia destes refugiados até conseguir-lhes asilo político em países europeus. Foram asiladas mais de quatro mil pessoas. Usou sua autoridade para este fim, inclusive enfrentando os militares por diversas vezes. Ao assumir tal tarefa, telefonou para o General Sílvio Frota e disse-lhe: “Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que eu estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final”

Também atuou junto aos militares na libertação de diversos acusados de subversão, bem como se recusou a celebrar missa pelo aniversário do Ato Institucional Número Cinco, pedida pelo General Abdon Sena, de Salvador.

Foi um dos brasileiros que mais ocupou cargos no Vaticano: foram onze cargos nas congregações, conselhos e comissões.

Sua ação social abrangeu a criação de centros de atendimento a portadores de Aids, a pastoral carcerária, um núcleo de formação de líderes na residência do Sumaré.

Sua renúncia foi solicitada em 1997, quando já completara 75 anos. Mas por indulto especial do Papa João Paulo II, seu amigo pessoal, foi autorizado a permanecer à frente da arquidiocese até completar 80 anos. Sua aposentadoria foi finalmente aceita no dia 25 de julho de 2001, quando Dom Eusébio Oscar Scheid, então Arcebispo de Florianópolis, foi nomeado o seu sucessor. Dom Eugênio permaneceu de 25 de julho até 22 de setembro de 2001 como administrador apostólico do Rio, nomeado por João Paulo II.

Em 22 de setembro, na presença de grande número de bispos e sacerdotes, entregou o governo da arquidiocese, através da passagem do báculo (cajado simbólico do pastoreio do povo de Deus, utilizado pelos bispos) a Dom Eusébio, até então não revestido da dignidade cardinalícia, que só viria a obter em 2003. Ainda permaneceu residindo no Rio de Janeiro, no Palácio Apostólico do Sumaré, e permaneceu em funções no Vaticano. Possuiu os títulos de Cardeal Protopresbítero (o mais antigo em idade e/ou nomeação entre os Cardeais Presbíteros) e Arcebispo Emérito (aposentado) da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Palavras do Testamento

“Dirijo-me em primeiro lugar a Deus a quem me entrego inteira e absolutamente. Consagrei-me à Igreja e renovo essa doação integral. Nunca me arrependi de tê-la feito. Tudo o que escrevi, disse e ensinei fica submetido ao Magistério eclesiástico. Deverá ser corrigido, em caso de discrepância da minha parte. Reafirmo minha Fé Católica. Creio em tudo que a Igreja ensina e como ela ensina. Proclamo a plena aceitação do Mistério da Trindade, da Encarnação, Redenção e demais que são parte do conteúdo de nossa Doutrina. Quero morrer sempre fiel ao Papa, Sucessor de Pedro. Não leve mágoas. Peço perdão a quem ofendi. Procurarei reparar os sofrimentos com minhas orações. Aceito plenamente a vontade de Deus (...). No céu, onde espero ser acolhido por meu Pai, o Senhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo que recebi”. (Rio, 7/10/2003)



Douglas Naegele é teólogo e psicanalista, responsável pelo site: Douglas Naegele: Psicanálise e Teologia - Um olhar junguiano (www.douglasnaegele.com) Artigo publicado no jornal Algo a Dizer, edição de Julho de 2012: www.algoadizer.com.br.

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